crítica

Crime e castigo – Fiódor Dostoiévski

Demorei para conseguir colocar no papel tudo o que significa esse livro tão complexo escrito por Dostoiévski. É claro que não vai caber tudo porque a cada texto de apoio, podcast, live ou aula sobre esse clássico, aprendo mais um pouco dele ou mesmo tenho uma nova interpretação da história. Então, aqui temos um tanto da opinião do pessoal da leitura coletiva, realizada com a Mell Ferraz e mais de 600 apoiadores, um pouco da visão das professoras Elena Vássena e Raquel Toledo e dos tradutores Irineu Perpétuo e Rubens Figueiredo, que ajudaram a compor a minha leitura dessa obra que tem tanto a dizer.

Crime e Castigo (Todavia, 2019), originalmente publicado em 1886, conta a história de Raskolnikov, um rapaz do interior da Rússia que vai para São Petersburgo cursar uma faculdade em busca de um futuro melhor. Com dificuldades em se adaptar à vida na cidade grande e hostil, cheia de miséria, fome, prostituição e morte, o protagonista se perde em meio às suas ideologias e acaba cometendo um crime. Crime este pelo qual ele vai pagar de diversas formas, principalmente, de forma psicológica.

Podemos considerar que esse romance folhetinesco segue a linha do que chamamos atualmente de “thriller psicológico”, uma história que vai se passar em grande parte na cabeça do personagem e explorar a sua culpa, a sua dor por um crime cometido e que não tem volta. Em torno de Raskolnikov, Dostoiévski criou uma gama de personagens complexos que vão dialogar com o protagonista sobre questões éticas, morais e principalmente, sobre os grandes temas da época: o niilismo, o utilitarismo e a eslavofilia.

Contextualizando a época e explicando esses conceitos, a Rússia vivia uma fase de mudanças. De um país tradicional, czarista, rural e muito religioso, se transformava em uma nação antropocêntrica, capitalista, urbana e moderna. A cidade de São Petersburgo, cenário do romance, era considerada a capital do progresso. Ela foi planejada pelo Imperador Pedro Grande em 1703, localizada em um ponto estratégico, muito frio, ao norte e com saída para o mar. Por se tratar de um local inóspito, que sofria com inundações e fora destruída e reconstruída muitas vezes, a cidade se transformou em um ícone na literatura russa. Todos os aspectos dessa inospitalidade de Petersburgo são muito explorados por Dostoiévski em Crime e Castigo e eles são muito importantes para o desenvolvimento da narrativa assim como os conceitos discutidos pelo autor.

A população russa, estava dividida entre os eslavófilos e os ocidentalizantes. Os primeiros prezavam pelas tradições eslavas e não aceitavam o progresso, enquanto os segundos eram a favor de uma Rússia mais progressista, adotando os valores europeus. Petersburgo era a representante dos ocidentalizantes, sendo que esta foi projetada com inspirações em Veneza e Amsterdã. O país estava começando a se industrializar, e assim, muitas pessoas saíam do campo e iam para as cidades em busca de trabalho e de riquezas. Como já é sabido, esse processo de mudança produz muita miséria e também o seu oposto, pessoas que lucram com isso, que ganham dinheiro às custas da dor dos outros e é aí que as discussões propostas em Crime e Castigo ganham vida.

Havia um grupo nessa época, que futuramente tomaria o poder, aqui representados por Raskolnikov, que eram adeptos ao niilismo, filosofia desenvolvida por Nietzsche que defende a ausência de tradições e a não existência, além de outros dogmas que levam ao aniquilamento, à redução ao nada. Assim, as atitudes do protagonista, são justificadas por essa linha de pensamento enquanto os demais personagens vão representar outras possibilidades de inteligência, abrindo um grande debate, que pode muito bem ser transportado para os dias atuais.  Outro conceito muito utilizado por Dostoiévski nesse clássico é o utilitarismo, ideia fundada na Inglaterra por Bentham e Mill e muito em voga na Rússia do final do século XIX, que prega o bem-estar individual acima de qualquer consequência moral, como se, parafraseando Irineu Perpétuo, “se eu estou bem, contribuo para que o mundo esteja bem”.

Só por esses comentários, já é perceptível que ler Crime e Castigo não é muito fácil. Mas, por incrível que pareça, a escrita de Dostoiévski é muito simples, fluida e a história lembra mesmo um novelão. Os conceitos citados acima estão presentes nos diálogos dos personagens e, compreendemos tudo quando sabemos dessas possíveis intenções do autor. Ele na verdade, após cumprir uma pena de serviços forçados na Sibéria, se tornou um homem bastante religioso e tradicionalista. Essa filosofia passa a fazer parte da sua obra e, para saber como isso acontece, só lendo Crime e Castigo até o final e tirando suas próprias conclusões. Não vou contar todo o enredo e também não vou mencionar os principais encontros e desencontros de Raskolnikov. Mas, ele vai “merecer sua felicidade através do sofrimento”, como dizia o próprio Dosto.

Confesso que antes de ter todas essas aulas de história da Rússia e fazer a associação aos conceitos propostos pelo autor, eu não tinha gostado tanto do livro. Mas, depois de todo esse aparato teórico, ele passou a ser um dos meus clássicos favoritos e não vejo a hora de ler mais livros do autor. Aproveitando a colocação do jornalista e tradutor Irineu Perpétuo, percebemos muitos utilitaristas em nossas rodas de amigos e muitos Raskolnikovs também. É triste não vermos tantas Sônias e tantas Dunias perto de nós, porque elas representam um pouco de lucidez, sabedoria e hombridade, qualidades em falta no mundo.

Para exemplificar, podemos ver esse conceito do utilitarismo todos os dias nos jornais e nas ruas, onde a ordem é ficar em casa e evitar a propagação do vírus da Covid-19. Porém, inúmeras pessoas se recusam a usar máscara ou saem para as ruas sem necessidade, se aglomeram, oferecem festas e zombam de quem está tentando fazer o mínimo pelo bem comum. E se olharmos com mais profundidade, vamos reconhecer que Raskolnikov pode ser qualquer um de nós, que está por aí lutando para sobreviver na cidade e que se revolta com as injustiças e desigualdades do mundo moderno e capitalista. Entretanto, esses conceitos estão tão arraigados em nós, que não os percebemos e muitas vezes, é difícil remar contra a corrente. Fica aí o questionamento de até onde somos capazes de ir para sobreviver? Raskolnikov tinha opções e quem não tem? Sim, Crime e Castigo desperta em nós muita humanidade, empatia e incômodos.

Ítalo Calvino em seu icônico Porque ler os clássicos(Cia das Letras, 2007) diz “É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível” e ainda “É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades” e assim, constatamos que Dostoiévski, além de um grande conhecedor da humanidade, foi também alguém que abriu debates que permanecem muito atuais. Leiam Crime e Castigo. Esse é um clássico para todo mundo!

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