crítica

Crônica da casa assassinada – Lúcio Cardoso

Clássico da Literatura Brasileira, Crônica da casa assassinada (Cia das Letras, 2020) é um romance de fôlego que conta a história da Família Meneses através da personagem Nina como protagonista. Ambientado no interior de Minas Gerais, em uma fazenda decadente, o autor explora as mudanças sociais ocorridas no Brasil no início do século XX e a dificuldade das famílias aristocráticas, compostas por latifundiários em se adequar ao novo mundo.

Esse contraste entre o novo e o antigo é trabalhado a partir do momento em que Valdo, um dos irmãos Meneses, conhece Nina em uma viagem ao Rio de Janeiro. Eles se apaixonam, se casam e Nina vai viver na fazenda junto a Demétrio, irmão de Valdo, sua esposa Ana, Timóteo, o outro irmão e Bety, a governanta da casa. Já no início, ela percebe que não conseguirá viver ali, em um local tacanho, decadente, cheio de preconceitos e de rivalidades.

Nina tem uma história bastante triste. Dona de uma beleza singular, muito cortejada por homens mais velhos, precisou cuidar do pai, que estava bastante doente e para tanto, recorreu àquele que seria seu maior trunfo: a beleza e o poder de sedução. Fitzgerald em seu conto Uma página virada diz que “Há um preço a pagar por tudo que se soma à beleza – quer dizer, as qualidades que costumam substituir a beleza passam a ser defeitos quando somadas à beleza” e, ao ler essa descrição sobre os incômodos da beleza extrema, me lembrei de Nina e seu trágico destino e sobre a visão simplista e esvaziada que as pessoas tinham dela.

O livro começa no final da história, através do diário de André, filho de Nina e Valdo. Este, na minha opinião, é o capítulo mais bonito do livro. Ele conta um pouco sobre a relação conturbada entre mãe e filho e, a partir daí, já sabemos que Nina está muito doente e que vai morrer. O que vem a seguir, são depoimentos, confissões, diários e cartas de dez personagens diferentes, todos falando sobre Nina e sua relação com os Meneses. O leitor fica com muitas dúvidas, porque a história é fragmentada e só aos poucos conseguimos compreender o que aconteceu.

Apesar de ser a grande protagonista do romance, Nina não tem voz aqui. Todas as suas vicissitudes são narradas através de outras pessoas, colocando entre Nina e o leitor um filtro de preconceitos e julgamentos que não nos permite conhecer a sua visão dos fatos ou os seus pensamentos. Ao ler essas cartas, depoimentos, confissões e diários, conhecemos cada um dos narradores e vamos percebendo as suas questões, visão de mundo e idiossincrasias.

Dessa forma, pode-se dizer que o enredo do romance gira em torno desse conflito entre a modernidade representada por Nina e os velhos paradigmas, representados pelos Meneses. Nina é jovem, bela, cheia de vida e contrasta imediatamente com a decrepitude da chácara, do casarão onde vivem enclausurados Valdo, Demétrio, Timóteo, Ana e Bety. Valdo é um homem que está tentando se libertar dos antigos grilhões, sente um desejo de se modernizar, de conhecer outros lugares e outras formas de vida. Tanto é que viaja ao Rio e conhece Nina. Já Demétrio é um homem rancoroso, amargurado, preconceituoso, que não aceita as mudanças e vive em um mundo paralelo, onde ele e sua família ainda são poderosos e intocáveis na cidade. Por ser autocentrado e infeliz, ele transforma também a vida de sua esposa nesse inferno, onde ela somente existe, mas não tem vida, autonomia ou qualquer coisa que a classifique como um ser humano.

Cansada de toda essa infelicidade, Ana antipatiza com Nina desde o primeiro momento. Ela vê na cunhada toda a vitalidade e beleza que gostaria de ter. Sente um misto de raiva e inveja e assim, a relação das duas não será fácil. Já Timóteo é um homem que vive realmente escondido de todo mundo. Os irmãos alegam que ele tem problemas mentais, mas na verdade, suas agruras são outras, que dialogam com a realidade enfrentada pelo próprio autor, em relação à sua sexualidade. Bety é uma pessoa sensata, que procura conciliar as desavenças da família e compreender cada um deles, sem colocar julgamentos de valor em suas observações.

É importante notar que essa ação tem duração de vinte anos e sim, essas pessoas viveram por vinte anos odiando umas às outras, morando sob o mesmo teto, escondendo o irmão diferente, varrendo para debaixo do tapete todas as sujeiras e mazelas da família, ignorando as dificuldades de convivência e os conflitos que surgiam, evitando encarar os problemas, sem trabalhar, vivendo apenas da renda que aquelas terras um dia produziram e olhando para trás, como se o passado fosse uma espécie de lugar seguro, sem se desapegar dos velhos hábitos e não aceitando as mudanças e o progresso, o jeito novo de existir.

Pouco depois da chegada de Nina à chácara, há uma morte na fazenda, que é muito importante para o desenvolvimento das ações e para as decisões que serão tomadas a seguir. Em alguns momentos, o livro é repetitivo e moroso. A linguagem é um pouco forçada, perdendo parte da verossimilhança. Porém, da metade para o final, ele ganha força, a narrativa fica mais ágil, há uma descrição de decrepitude catártica nos capítulos finais, todas as lacunas do enredo são preenchidas e no final, tem um plot twist que vale a leitura. 

A narrativa do romance constitui um sério problema para mim. Apesar de trazer o ponto de vista de dez pessoas diferentes, em textos longos e bem elaborados, diferente de O som e a fúria, um romance que lembra um pouco o enredo de Crônica da casa assassinada, a voz dos dez narradores é igual. O uso de polifonia em um texto é complicado e precisa ser muito bem executado para dar certo e aqui não funciona. O leitor consegue compreender o enredo facilmente, porém, ele não sabe quem está narrando, precisa voltar o tempo todo no início do capítulo para ver quem está contando aquele fragmento da narrativa. Além disso, as cartas não parecem cartas e os diários não parecem diários. A impressão que temos é de que um narrador onisciente em terceira pessoa está nos contando essa trama, a cada capítulo sob um ponto de vista diferente, o que funcionaria melhor. E, confesso que só quando passei a desprezar o título dos capítulos, consegui mergulhar na história e finalizá-la.

Apesar dos problemas com a narrativa, Crônica da casa assassinada é um livro muito importante da nossa literatura. Mostra as nossas dificuldades em mudar, em sair da nossa zona de “desconforto”, em abrir mão de velhos conceitos, inclusive a dificuldade para os antigos latifundiários, que viviam de renda e não compreendiam que a partir do momento em que as cidades começaram a crescer e que a vida no campo entrou em decadência, eles precisariam trabalhar para se sustentar e não apenas viver de suas antigas fortunas, que claramente terminariam um dia.

O fato do autor colocar como protagonista uma mulher que não tem voz, remete diretamente à triste realidade da década de 1940, quando, o lugar da mulher, era em casa, cuidando dos filhos, seguindo normas e regras machistas e patriarcais, que as incomodavam, mas que pouco podiam fazer contra esse regime acachapante. O outro lado dessa moeda, são as mulheres condenadas à exclusão, que caem na boca do povo e se transformam em Madalenas, recebendo como castigo todos os males do mundo. A decrepitude de Nina pode ser atribuída a uma crítica social de duas vertentes: a primeira, sob o ponto de vista da alegoria dos antigos paradigmas sociais e a segunda, relacionada a uma crítica do autor em relação aos valores machistas e patriarcais, oriundas da religião, que culminam em uma morte anunciada para uma pecadora.

Lúcio Cardoso foi um homem cheio de assincrasias. Nasceu em Curvelo, interior de Minas Gerais, em 1912. Estudou em Belo Horizonte, no Colégio Arnaldo, uma escola católica tradicional da cidade, que nessa época funcionava como internato de meninos. Devido ao rigor das regras do colégio, Lúcio foi convidado a se retirar de lá por não se encaixar nos padrões exigidos pela direção. Caçula de seis irmãos, dentre eles um político notório, Adauto Lúcio Cardoso e uma escritora Maria Helena Cardoso, o jovem começou a escrever cedo. Deixou uma vasta obra, onde abordava as vicissitudes do homem moderno, com suas questões existenciais, através de dramas e sagas familiares, com descrições naturalistas e muitas críticas sociais. Lúcio foi uma das primeiras figuras públicas a assumir sua homossexualidade e sofreu as consequências disso, em uma época onde as famílias tinham o costume de esconder as suas diferenças em hospícios, porões, sótãos… Faleceu em 1968, aos 56 anos, no Rio de Janeiro.

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