crítica

David Copperfield – Charles Dickens

Considerado pelo próprio autor como o seu livro favorito, David Copperfield (Zahar, 2021) traz alguns traços autobiográficos de Dickens em sua composição, além de uma trama envolvente, cheia de reviravoltas e escrita de forma magistral. Temos neste texto um romance de formação clássico, onde o protagonista que dá título ao livro conta ao leitor a sua história, de forma memorialística, mostrando que é possível ascender socialmente de forma honesta e íntegra, sem se corromper ou sucumbir às adversidades da vida:

aqui expondo sob a máscara de David suas primeiras referências literárias – encontra uma importante tradição, na qual são levados ao centro do palco personagens que vivem o trânsito da marginalidade à integração social no contexto de uma Inglaterra cuja aristocracia rural acossa o destino dos que vivem da terra, destituindo-os de um modo de vida para abandoná-los às estradas, onde viverão de roubos e pequenos serviços; às cidades, em que servirão de mão-de-obra barata às manufaturas; ou ainda às colônias e ao protetorado do Império, que, no século XIX, conhecia seu auge” (GAMBAROTO, 2021, pág. 17)

Através desse trecho do prefácio do livro, escrito por Bruno Gambaroto, percebe-se uma contextualização da época do romance na Inglaterra vitoriana: a revolução industrial estava começando e por isso muitas mudanças no estilo de vida da população. Apesar das novidades, a mentalidade das pessoas continuava a mesma, aristocrática, classicista, preconceituosa, julgadora e exploradora dos fracos e oprimidos. Dickens sempre abordou essas questões sociais em suas obras em parte por suas próprias vivências. Quando criança, seu pai foi preso por dívidas após falir. Isso fez com que tanto o autor quanto a sua família fossem morar na prisão com o pai, algo bastante comum na Inglaterra do século XIX. Na prisão, Dickens viu e vivenciou muitas situações que lhe inspiraram a lutar e a denunciar os abusos de poder e a exploração do proletariado em prol de uma classe favorecida e que não desejava perder os seus privilégios e nem pagar pelos serviços recebidos.

Por isso, personagens endividados, cheios de assincrasias, que no fundo são boas pessoas aparecem com recorrência em seus romances. Assim como as crianças exploradas e marginalizadas: Dickens precisou trabalhar desde muito cedo e por isso vivenciou essa exploração, sentiu na pele a perda dos direitos da criança, de estudar, brincar e principalmente de estar em um lugar seguro. Essas informações são importantes porque personagens com essas características vão sempre aparecer em seus romances e além disso, suas vivências trazem mais credibilidade e verossimilhança às ações do texto e às vicissitudes da obra. Ao ler David Copperfield pela primeira vez e sem saber de nada disso, o leitor pode presumir um certo exagero da parte do escritor. Porém, infelizmente, seus personagens e suas desventuras são baseados em fatos reais, observados ou mesmo vivenciados pelo autor. Portanto, é possível que tenham existido alguns David Copperfields por aí, o que até certo ponto, nos traz esperanças em um futuro melhor e mais justo, nos encorajando a seguir em frente, prezando a honestidade e a hombridade, valores que veem se perdendo ao longo do tempo. Essa é uma das principais características e funções de um romance de formação. Nas palavras de Gambaroto,

Nele, o protagonista não caminha pelos espaços rígidos da pobreza e da riqueza à espera de um destino melhor; cabe a ele, pelo contrário, por meio da prudência e do trabalho, produzir sua própria existência em adequação ao que reconhece ser a racionalidade virtuosa que fundamenta a vida social como um todo. Em David Copperfield, o protagonista reconhece o pragmatismo e a volatilidade do jogo social ao mesmo tempo que internaliza suas regras” (GAMBAROTO, 2021, pág. 18)

Essa análise do tradutor nos mostra que a história de David não é feita de acertos advindos de uma virtude exacerbada, mas que o protagonista para alcançar uma vida melhor e mais auspiciosa, precisou se adequar à sociedade a qual pertencia e isso lhe custou algumas escolhas e outras não-escolhas, o que faz parte do cotidiano de todos nós. O que diferencia esse personagem de muitas pessoas comuns é a forma como ele lida com as suas frustrações, com os problemas e com as decisões equivocadas que toma. Cada personagem coadjuvante dessa trama tem uma função na vida, no crescimento e desenvolvimento de Copperfield: sem eles, teríamos uma figura totalmente diferente daquela do final do romance.

Ele começa a sua narrativa com a seguinte frase icônica: “Se terei me revelado ou não herói da minha própria vida, ou se tal posição será ocupada por outra pessoa, caberá a essas páginas demonstrar” (DICKENS, 2021, pág. 31) e é exatamente o que faz o nosso narrador, conta a sua história desde o momento de seu nascimento. Filho de um casal tradicional da Inglaterra, David era uma criança feliz, tinha pais amorosos e uma babá que o ajudava em suas tarefas cotidianas. Até que um dia, por obra do acaso, seu pai morre. Um tempo depois, sua mãe começa a namorar um outro homem, que tinha como objetivo moldar a personalidade das pessoas à sua volta de acordo com as suas vontades. Esse homem chega à casa dos Copperfield acompanhado de sua irmã, uma mulher dura, amargurada que transforma a vida de todos em um verdadeiro inferno. Não demora muito para que a mãe de David também não resista às agruras da vida e termine falecendo, deixando o garoto órfão.

Seu padrasto, que já não gostava muito da criança, resolve tirá-lo da escola e manda-lo para uma fábrica, onde estavam contratando crianças para trabalhar em locais insalubres, algo bastante comum na era vitoriana. David começa a sua jornada de trabalho e conhece um dos personagens mais icônicos do romance: seu locatário, Sr. Micauber. Esse era um homem cheio de boas intenções, estava sempre tentando começar um negócio novo e para tanto, emprestava dinheiro de sua família e da família de sua esposa. Porém, todos esses empreendimentos davam errado e assim ele não conseguia pagar suas dívidas, enfrentando muitos problemas por isso. Cansados de tanto investir em negócios furados de Micauber, seus familiares passaram a evita-lo para não terem de negar novos empréstimos, levando esse homem bonachão a recorrer aos usurários e assim terminar por ser preso por endividamento.

David sempre compreendeu o Sr. Micauber. Eles ficaram amigos desde o primeiro encontro, onde o garoto viu ali uma figura paterna. E mesmo em meio a tantas dificuldades, esse homem nunca deixou David sem amparo ou sem comida. Estava sempre otimista, acreditando que as coisas iriam melhorar um dia, incentivando o garoto a seguir em frente e não desistir de suas ambições por causa de pessoas ruins como o seu empregador. O Sr. Micauber tem uma grande representatividade na obra e consegue transformar David de muitas formas, tanto que em diversas partes do romance ele cita os seus aprendizados com o amigo.

Cansado de ser explorado no trabalho, David procura Peggoty, sua antiga babá e que também é uma personagem fundamental na construção do romance, a fim de encontrar sua tia, irmã de seu pai, com o objetivo de lhe pedir ajuda para recomeçar sua vida. Nesse ponto do texto, David tem apenas 12 anos e já passou por muitas adversidades. Até conseguir chegar à casa de sua tia em Londres, o protagonista passa por muitas situações que mostram um pouco do mundo ao seu redor e a agressividade com que as pessoas resolviam seus problemas. Roubos, assaltos, especulação, golpes, dentre tantas outras formas de lograr os outros, eram comuns na Londres do século XIX. Com o êxodo rural, muitas pessoas chegavam à capital do Reino Unido e não conseguiam trabalho, nem lugar para morar e nem comida disponível. Assim partiam para a mendicância como uma primeira opção. Quando não conseguiam nada, passavam para a venda de seus poucos pertences, depois para o roubo e a prostituição. David foi confrontado com essa realidade ao chegar na cidade grande. Para ele, tudo isso era algo muito distante, que talvez nem acontecesse de verdade. Mas a realidade nua e crua lhe atingiu e dessa forma, chegou à casa de sua tia sem nada, com os sapatos rotos, as roupas rasgadas, sujo e com fome.

Para sua sorte, a irmã de seu pai era uma boa mulher e assim, David pode voltar a estudar e a ter a vida de antes, com a diferença de não ter mais os pais vivos. O tempo vai passando, David encontra muitas outras pessoas importantes em sua vida, passa por alguns revezes, é enganado por pessoas queridas, mas o destaque da vida adulta desse personagem é o odioso Uriah Heep. Esse personagem inspirou tantos outros na literatura contemporânea e até mesmo nomes de bandas de rock e músicas. Considerado um dos maiores vilões literários, Uriah tem características peculiares: aparentemente ele não é uma má pessoa, mas usa de subterfúgios para obter poder e informações úteis sobre os outros para usá-las a seu favor quando lhe aprouver. Além disso, também consegue estimular as pessoas a fazerem coisas que não queriam fazer ou que podem prejudica-las, claro que o com objetivo de se dar bem com essas atitudes imprudentes de seus amigos.

A maioria das pessoas não percebe quem é Uriah, mas David, desde quando o conheceu, percebeu que ele escondia alguma coisa, que não era uma pessoa de bem. Com o passar do tempo e o desenrolar dos fatos, Uriah se torna o maior algoz da vida de David, colocando pessoas muito importantes para ele em situações acachapantes, obrigando-o a se posicionar e desmascarar o vilão. Mas não se engane, leitor, se pensa que essas situações serão caricatas e forçadas. Não é nada disso e é justamente essa proximidade com a realidade que faz de Uriah Heep um dos maiores vilões da literatura: podemos encontra-lo no escritório onde trabalhamos, em meio aos nossos clientes, amigos e familiares.

Outra personagem que fará parte da vida de David, também baseada em situações da vida pessoal de Dickens é Dora, a filhaesposa do protagonista. Essa personagem é um contraponto à sobriedade do protagonista, que desde muito cede precisou se virar para conseguir sobreviver. Dora vem de uma família rica, é muito mimada e nunca cresceu de verdade. Sempre tem as suas vontades atendidas, quando não pelo pai, pelas amigas e parentes. David se apaixona por ela, que parece um bibelô e assim que consegue um trabalho mais sólido, casa-se com Dora. De tão infantil que ela é, pede para que o marido a chame por filhaesposa e que ele deve ter paciência com suas falhas e cuidar dela como uma criança. É o que ele faz, mesmo quando ela ultrapassa os limites, comprando itens supérfluos e caros, deixando as coisas da casa por fazer, vivendo uma vida de criança como se estivesse brincando de casinha.

Esse relacionamento é um tanto estranho porque Dora não combina com David, mas ainda assim, torcemos por eles já que se amam tanto. Essas incompatibilidades mostram a realidade da vida adulta, o que é ser responsável, pagar as contas todos os meses, cuidar de uma casa, manter as coisas funcionando. Essa dinâmica da vida é narrada com maestria pelo autor, ambientando a história do indivíduo dentro de um contexto maior, de um país em ascensão. A luta de David Copperfield para vender seus textos e viver com o salário de seus romances, mostra também a trajetória de Dickens, que escrevia contos e romances para serem publicados nos jornais. Seus amigos, que escolheram outras profissões, também estão ali, lutando para pagar as contas no final do mês e seguir o caminho certo, de uma vida honrada, simples, mas boa, da qual pode-se orgulhar.

Dickens também aborda outros temas importantes nessa obra como a situação da mulher na Inglaterra. E da mulher pobre. Em uma de suas desilusões com seus amigos, ele passa por uma situação bastante difícil, quando um rapaz de família rica engravida uma moça pobre, da família de Peggoty e simplesmente foge, deixando a moça sozinha para criar a criança. David tenta trazer o amigo à razão, mas nem ele, nem sua família se importam com o futuro da jovem, alegando que ela é a responsável por seus infortúnios e que um homem de uma classe social alta não pode se casar com uma moça pobre. Isso parece clichê, mas para a época, representava uma sentença de morte social. Uma mãe solteira na Inglaterra do século XIX, estava fadada à desgraça, não poderia mais trabalhar, nem entrar em determinados lugares porquê de acordo com os padrões sociais, ela estaria maculando o ambiente e a honra das mulheres “direitas”. Esse é um dos episódios mais tristes do livro, e que deu origem a um dos capítulos mais bonitos do romance, Tempestade.

Ler David Copperfield é uma lição de vida. Este é um romance que renova as nossas esperanças no ser humano, que nos faz acreditar que podemos ser bons e ainda assim viver e conviver em sociedade. Não é um livro onde os vilões se dão mal – Uriah Heep é desmascarado e preso, mas cumpre prisão domiciliar. Fica subentendido que ele voltará a praticar suas usuras e golpes naqueles que se aproximarem dele. O pai desnaturado que foge de suas responsabilidades termina sozinho, viajando pelo mundo. Também fica implícito que ele continuará a seduzir outras mulheres e que nunca assumirá as suas responsabilidades. Muitos personagens que praticaram más ações continuam suas vidas, sofrendo com a solidão ou com o peso de seus atos. Assim como David colhe os frutos de sua jornada: constitui uma família, tem um bom trabalho, fazendo o que gosta e tem também muitos amigos com os quais pode sempre contar. Da mesma forma como os ajudou, eles também estão ali por ele e assim deve ser a vida: justa, com os seus altos e baixos, compartilhada com aqueles que estão aqui para somar. Leiam David Copperfield! É um romance transformador e que envelhece como o vinho, muito bem.

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