crítica

De amor e trevas – Amós Oz

Alguns livros nos marcam tanto, que se torna difícil falar sobre eles. Por outro lado, temos certeza de que um livro nos marcou e se tornou um livro da vida quando, passado algum tempo, ainda lembramos dele com carinho, citamos frases suas, recorremos a ele quando precisamos de uma palavra de consolo ou mesmo quando precisamos lembrar que o nosso sofrimento não é o maior do mundo. Este é o caso do maravilhoso De amor e trevas (Companhia das Letras, 2002) do escritor israelense Amós Oz, uma das minhas melhores leituras de 2022. Até o momento, eu não me conformava por não ter escrito uma resenha sobre ele e, verificando a lista de favoritos do ano, resolvi escrever as resenhas que estava devendo por aqui. Nada mais justo que começar por Amós Oz, uma das minhas atuais obsessões literárias, o autor que mais li em 2022. Então, tentemos falar um pouco sobre De amor e trevas.

Classificado como autobiografia, o que encontramos neste texto são as memórias do autor. De forma bastante fragmentada, ele compartilha com o leitor suas agruras e alegrias, fazendo a partir de suas vivências reflexões muito fortes sobre a vida, sobre a literatura e claro, sobre o Estado de Israel. Para quem não sabe, Amós Oz nasceu em Israel, antes mesmo do país ser considerado um território independente. Ou seja, ele vivenciou a promulgação do Estado de Israel e sofreu na pele as consequências cotidianas dos conflitos israelo/ palestinos. Porém sua vida não se resume a isso: Amós teve uma trajetória cheia de vicissitudes, passando pelo riso e pela tragédia, enfrentando os seus demônios e ao final, cumprindo a missão que seus pais lhe incumbiram: ser um erudito e um escritor de sucesso.

Filho de judeus europeus, que devido ao antissemitismo tiveram de deixar sua pátria, Amós cresceu em um apartamento pequeno, cercado por livros e pelas dores de seus pais. É irônico dizer isso, porque como dizia Portinari “se não fossem as desgraças, não haveria a arte”, mas talvez a essência do escritor e da pessoa que foi Amós Oz está na sua trajetória de vida e principalmente na sua infância vivida neste cubículo junto aos pais e suas frustrações. Digo isso porque suas memórias são específicas dessa fase de sua vida e percebemos muito de sua postura na velhice, nas entrevistas e discursos que proferiu ao longo de sua vida adulta, nascendo em sua infância triste. Em um trecho de suas memórias, ele reproduz uma fala de sua mãe que é muito pertinente aqui:

a hereditariedade e o meio que nos alimenta, assim como a nossa classe social, são como cartas de baralho que nos são distribuídas aleatoriamente antes do jogo começar. Até aí não há nenhuma liberdade de escolha – o mundo dá, e você apenas recebe o que lhe foi dado, sem nenhuma outra opção. Entretanto, (…) a grande pergunta é o que cada um de nós consegue fazer com as cartas recebidas. Pois há os que jogam muito bem com as cartas nem tão boas, e há, pelo contrário, aqueles que desperdiçam e perdem tudo, mesmo com cartas excepcionais! E esta é toda a nossa liberdade: a liberdade de jogar com as cartas que nos foram dadas”. (OZ, 2002, pág. 196)

Esse trecho é significativo para a história do autor porque desde que ele se entende por gente, há duas cobranças de seus pais em sua vida: a primeira, um medo muito grande de que o pequeno Amós desejasse ir embora de Israel para a Europa. Esse medo era justificado por causa do antissemitismo e por tudo o que eles passaram na Rússia, na Polônia e na Áustria antes de chegarem a Israel. Uma das frases mais repetidas por Oz em suas obras é “Judeus, vão embora para a Palestina” seguida de “Judeus! Saiam da Palestina”. Isso é muito triste porque o povo judeu fica sempre em um não-lugar, procurando entender qual é a sua missão nesse mundo e em qual lugar eles cabem. Essa insegurança e esses questionamentos permeiam toda a autobiografia de Oz.

A segunda cobrança de seus pais era: seja um grande acadêmico e escritor. Isso porque o pai do autor tinha como uma de suas maiores frustrações o fato de nunca ter conseguido ser um professor de literatura ou um escritor de sucesso. Ele trabalhou a sua vida toda na Biblioteca Nacional de Israel e, apesar de ler em 17 idiomas e falar fluentemente 11 destes, seu conhecimento e erudição não o levaram a uma carreira de sucesso em sua área. Fânia, a mãe de Amós, também não conseguiu seguir o caminho das letras e ser bem-sucedida profissionalmente. Fluente em 7 idiomas, muito inteligente e arguta, leitora voraz e de uma sensibilidade única, ela não se sentia encaixada na sociedade em que viviam.

Fânia deixou a Polônia, sua terra natal aos 17 anos para estudar na Áustria, pois em seu país havia cotas para judeus estudarem. Pouco tempo depois de estar na universidade de Viena, foi forçada a migrar para a Palestina pois o antissemitismo crescia vertiginosamente na Europa como um todo e os judeus estavam inseguros e com muito medo de morrer. Em muitos livros que já li sobre o tema e mesmo aqui em De amor e trevas, fica muita clara a omissão dos países aliados em ajudar verdadeiramente os judeus nesse momento do auge do antissemitismo. Tentaram enviá-los para o Marrocos, para as ilhas Malvinas e finalmente para a Palestina. As nações europeias tratavam o povo judeu como se fossem coisas, objetos e não pessoas que estavam sofrendo, sendo rejeitadas em todos os lugares e que passaram a pertencer a um não-lugar constante. Essas situações acachapantes, as quais a maioria de nós não conhece e por mais que tenhamos empatia, não sabemos o que é vivenciar uma coisa dessas, marcaram a vida e as escolhas dos pais de Amós.

Seu avô tinha horror da Europa. Ele se lembrava com carinho da Rússia antiga, do tempo de Tolstói e Dostoievski e sentia saudades. Porém, quando alguém mencionava voltar para lá depois do fim da Segunda Guerra, ele dizia que não, que preferia continuar em Israel e que lá era a sua pátria agora. Já a avó de Amós, uma mulher obcecada por limpeza e que dá ao texto os momentos mais cômicos da história familiar deles, diz algo que é crucial no pensamento e na vida do Amós Oz adulto: “se já não lhe restam lágrimas para chorar, então não chore! Ria! ” (OZ, 2002, pág. 97). E assim é contada essa história, que faz muito jus ao título: de momentos cômicos, mesclados às dores da vida.

Apesar das idiossincrasias que cercam essa família e da situação específica de vida que eles têm, esse é um livro muito fácil de provocar identificação e reflexões no leitor. Isso porque ele nos mostra momentos muito cotidianos, cercados pelos conflitos históricos, ambientando a sua infância dentro de um contexto macro, que envolve a sociologia, a política e a economia da época. Esses relatos são preciosos historicamente falando, mas também de modo subjetivo. Observando o sofrimento de Fânia quando fica sabendo que todas as suas colegas de classe morreram vítimas do nazismo, fica muito claro ao leitor que as dores fazem parte da vida de todos nós. Além disso, algumas pessoas parecem ser contempladas com sofrimentos muito maiores que os nossos, o que também fica bastante explícito nessa autobiografia.

Quando Amós se coloca como a criança que foi um dia e relata a sua dificuldade em se relacionar com as pessoas à sua volta, tanto os familiares, quanto os muitos amigos de seus pais e seus colegas de escola e vizinhos, percebemos que os problemas de uma infância solitária podem se agravar quando o indivíduo está inserido em um contexto hostil, onde as pessoas não o aceitam ali, onde ele é e sempre será visto como um estrangeiro. Acompanhar o resultado da independência do Estado de Israel narrada pelo autor é fascinante. É um momento histórico, mas que tem um significado enorme para os judeus que viviam na Palestina naquele momento. Em sua inocência infantil, Amós achou que depois dessa determinação da ONU, os conflitos israelo/ palestinos teriam fim. Mas sabemos bem que ali eles apenas se agravaram e que essa seria e continua sendo uma guerra inglória, onde não há vencedores, tampouco culpados ou inocentes: todos precisam caminhar em um campo minado o tempo todo.

Os desdobramentos dos conflitos israelo/ palestinos e as mortes que se seguiram a partir desse contexto foram demais para Fânia. Ao longo das memórias do autor vamos entendendo que ela sofria de depressão, o que na época não era visto de forma natural, mas como algo estranho e perturbador. Aos poucos ela foi negligenciando a vida, a rotina, abandonando as pessoas à sua volta, se afastando de todos, se isolando em sua poltrona de leitura, lendo de forma compulsiva, se autoflagelando, até que um dia ela tirou a própria vida com uma overdose de medicamentos.

Amós Oz tinha apenas 12 anos quando isso aconteceu e o escritor só falou sobre o assunto neste livro de memórias, décadas após a morte da mãe. Os anos que se seguiram à tragédia foram muito ruins para ele e para o pai. Como já era de se esperar, Amós se sentiu rejeitado pela mãe, abandonado, não compreendia o que ela fez até passar à fase seguinte do luto que é a culpa. É muito triste ver como ele e o pai tentavam lidar com a situação, sem falar sobre o assunto, cada um na sua solidão. O pai tentava manter os rituais, como espremer as laranjas e esquentar o suco no fogo para evitar uma constipação, algo que ele sempre fazia tanto para o filho quanto para a esposa (os dois detestavam o suco quente, mas tomavam para agradar ao pai), porém, isso já não surtia o mesmo efeito na relação afetiva entre pai e filho.

Aos quinze anos, Amós Oz resolveu romper relações com a família. O jovem presenciou muitas discussões em sua casa, principalmente da família de sua mãe acusando o seu pai de tê-la matado, por ter casos extraconjugais ou mesmo por negligência. Ele também não ficava para trás e os acusava de volta. Porém, Amós já havia presenciado muitas discussões seguidas de cobranças de sua avó materna, que acreditava que Fânia havia feito um mal casamento e que vivia em uma situação periclitante por escolha própria. Além do mais, haviam as cobranças constantes de que o jovem reparasse de alguma forma as frustrações de seus pais e que fosse um homem de sucesso. Ele foi, porém, à sua maneira. Nesta época, Amós deixou a sua casa e se mudou para um Kibutz, buscando a vida simples do campo e a subsistência coletiva.

A experiência nas comunidades judaicas foi importante para a sua formação. Ele se adaptou bem lá, porém, sentia falta dos livros – para uma criança que desejava ser livro, ele ficou até muito tempo afastado deles. Dessa forma, lia escondido no banheiro após o seu turno de trabalho e um tempo depois, escreveu o seu primeiro romance neste mesmo banheiro, Meu Michel, que fez bastante sucesso em Israel. Assim, começava a cumprir sua primeira missão dada pelos pais: ser um grande escritor e acadêmico. Já a segunda missão também foi cumprida com louvor – ele nunca abandonou o Estado de Israel, lutou por ele até o fim da vida, de forma pacífica, procurando sempre encontrar um jeito de conviver bem com os palestinos e compartilhar com eles o mesmo espaço.

Amós Oz sempre foi um grande leitor e sempre refletiu muito sobre a literatura. Talvez essa seja uma característica das pessoas que possuem uma mente inquieta, das pessoas como a Fânia que questionam tudo e desejam ir sempre até o âmago das experiências e da vida. Oz considera que “a única viagem da qual nem sempre voltamos de mãos vazias é a viagem para dentro de nós mesmos, onde não há fronteiras nem alfândegas e podemos chegar até as estrelas mais distantes” (OZ, 2002, pág. 234). Esse tipo de viagem da alma, a literatura nos proporciona sempre, muitas vezes nos ajudando a elaborar melhor os nossos sentimentos, questões e conflitos internos que temos e sempre teremos. Por isso, ao ler De amor e trevas, sua lista de desejos vai aumentar consideravelmente e não só isso: o autor nos ajuda a revisitar algumas de nossas obras favoritas como Crime e Castigo, Pais e filhos ou Adeus às armas.

Quando Fânia tirou a própria vida, durante a sua fase de revolta, Oz fez a seguinte reflexão:

embora os livros possam mudar ao longo dos anos, assim como as pessoas, a diferença está em que, enquanto as pessoas sempre nos abandonam quando percebem que não podem obter nenhuma vantagem, prazer, interesse ou pelo menos um bom momento de nós, um livro nunca vai nos abandonar. (…). Eles nos esperam até por dezenas de anos. Não se queixam. Até que numa noite, quando de repente você vier a precisar de um deles, mesmo que seja às três da madrugada, e mesmo que seja um livro que você tenha desprezado e quase apagado de seu coração por muitos e muitos anos, ele não vai decepcioná-lo – descerá da prateleira e virá conviver com você num momento difícil” (OZ, 2002, pág. 319)

Muitas passagens desse livro me marcaram profundamente. Mas, não posso deixar de lembrar de uma das que mais gosto: do pequeno Amós pedindo aos pais as coisas que mais gostava quando tinha de fazer algo que o desagradava: tomar sorvete de baunilha lendo um livro querido. Acho que essas insignificâncias da vida, que nos passam tão despercebidas, são as que nos constroem todos os dias e que nos definem como indivíduos. Na verdade, quando deixamos de pensar em grandes conquistas, em grandes competições e somos apenas nós mesmos, não queremos muito da vida, talvez um pouco de paz de espírito, um sorvete de baunilha e um livro querido. Leiam Amós Oz! Leiam De amor e trevas!

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