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Dicotomias na literatura: uma discussão tendo como base temas abordados por Sigrid Nunez em seu romance “O amigo”

É bastante comum que nós leitores, de tempos em tempos, reavaliemos as nossas leituras e automaticamente, comecemos a levantar algumas questões que são importantes até por que, elas são recorrentes e geram boas discussões e reflexões sobre nós e sobre a nossa relação com os livros e a literatura. Algumas dessas questões vinham me acompanhando desde o final do ano passado, quando defini as minhas metas de leituras, fiz uma limpeza nas estantes, reavaliei as minhas compras de livros e repensei a minha participação em leituras coletivas. Esses incômodos ficaram guardados em uma caixinha até que escutei o áudiolivro O amigo da escritora norte-americana Sigrid Nunez. Seguindo a mesma vibe de A insustentável leveza do ser, o livro é um romance/ ensaio, onde a autora questiona uma porção de fatores relacionados aos processos de escrita, ao mercado editorial e consequentemente, sobre a nossa relação com os livros e com todo o cenário que os envolve.

A primeira questão que a autora levantou e que me chamou muito a atenção é se sentiríamos falta de novos romances, se no próximo ano não houver lançamentos de livros de ficção. Até agora eu não tenho uma resposta para essa pergunta, entretanto, concordo com a autora quando ela diz que atualmente é difícil um livro de literatura contemporânea, principalmente lançamentos, se tornarem um favorito ou serem no mínimo marcantes. Geralmente, não temos vontade de seguir com a leitura após os 30% do livro ou, se o finalizamos, ao fechá-lo, ele já foi esquecido. Neste caso, entra um contraponto muito debatido nas comunidades literárias entre as preferências das pessoas em lerem clássicos ou contemporâneos, algo que beira a rivalidade e o radicalismo.

Como a intenção aqui é o debate, pondero que, ano passado, dentre as minhas melhores leituras, está um lançamento que realmente foi transformador para mim. Porém, ao pensar nele, é um livro de não-ficção, jornalismo literário. O amigo, que motivou essa discussão aqui, é contemporâneo, é romance, mas tem mais características de ensaio que de ficção. Talvez, nesse caso, as autoras contemporâneas italianas estejam com a vantagem em me surpreender, porque nas minhas melhores leituras de 2022, estão a Elena Ferrante com a Tetralogia Napolitana e a Alba de Céspedes com Caderno Proibido. Os demais romances que figuraram nessa lista, são todos clássicos.

Por outro lado, li romances contemporâneos incríveis nos últimos meses, tais como A morte do pai de Karl Ove Ksnaugard, A elegância do ouriço da francesa Muriel Barbery, Os viajantes da norte-americana Regina Porter, Garota, mulher, outras da inglesa Bernardine Evaristo, Os anos da francesa Annie Ernaux, Domingo da brasileira Ana Lis Soares e Herança e testamento da norueguesa Vigdis Hjorth. Isso sem mencionar alguns escritores contemporâneos que são meus favoritos, como por exemplo Alice Munro, Amós Oz, Stephen King, Chimamanda Ngozi Adichie e Luca Di Fúlvio. Assim, fica bastante óbvio, que se não houverem lançamentos de literatura contemporânea, nomes como os citados acima, nunca farão parte de listas como esta.

Pensando sobre isso, percebo que há uns dois ou três anos, eu tenho consumido mais literatura clássica, principalmente calhamaços, por uma questão de preferência e principalmente livros de não-ficção à literatura contemporânea. Porém, alguns livros pós-modernos me surpreendem muito a ponto de eu deixar tudo o que estou lendo para me dedicar a um único texto. Da mesma forma, eu tive uma fase de ler praticamente só escritores novos, mas, se me perguntarem sobre os livros que li de alguns autores muito hypados, e me pedirem uma resenha ou um comentário sobre, não me lembro. Ou seja, eles são esquecíveis, algo que foi chamado recentemente de literatura fast food.

Esse termo se aplica a esses livros que são rápidos de ler, que abordam temas atuais e que estão em voga no momento, ao passo em que nada mais são que mais do mesmo. Nada trazem de novo, além de uma repetição das mesmas histórias, dos mesmos dramas e das mesmas questões. Em outros aspectos, tentam trazer uma nova roupagem para os romances policiais, romances históricos ou romances de formação, mas de forma rasa e panfletária, algo que torna a obra medíocre.

De acordo com a personagem de O amigo, essa é uma tendência do mercado editorial, afinal, eles precisam que os romances sejam lançados, independentemente de terem ou não qualidade e além disso, procuram agradar a um público leitor que espera dos autores um estereótipo: engajamento político, literatura que aborde temas atuais, como o racismo, questões de gênero, feminismo e outros assuntos que os agradem. Porém, não basta que o texto aborde esses temas – o escritor também tem que ter essa postura, ele tem que ser quase que o herói do seu livro, caso contrário, ele será cancelado.

Na era do cancelamento, muitas vezes é complicado discutir assuntos importantes e questões universais e atemporais, pois, algumas pessoas exigem de um escritor do século XIX uma postura do século XXI. Assim, os romances daquele autor, que podem ser obras-primas, que proporcionam muitas reflexões são esquecidos e banidos das bibliotecas porque eles não agiam de acordo com o que espera o leitor atual. Um bom exemplo disso é o romance A muralha, da Dinah Silveira de Queiroz. Este é um livro que tem uma qualidade estética excelente, mas não atende às expectativas do leitor engajado de 2023. Dentro do que ele se propõe, é um livro perfeito, bem escrito, com um desenrolar interessante da história, com personagens complexos e um contexto histórico ricamente pesquisado e adaptado. Quando vemos as notas dele nos aplicativos e os comentários das pessoas, percebemos que ele não envelheceu bem por ser uma ode aos Bandeirantes, sendo assim considerado um livro panfletário de direita.

Dessa forma, percebemos que ao mesmo tempo em que parecemos mais inteligentes e mais capacitados a opinar sobre literatura, estamos mais imaturos que nunca. Mal conseguimos conversar sobre os nossos gostos e desgostos com os livros porque somos mal interpretados ou ganhamos um desafeto e automaticamente, um cancelamento. Não é preciso que exista uma divisão entre aqueles que leem literatura clássica e os que leem literatura contemporânea. Na verdade, devemos ler o que sentimos vontade e aquilo que nos prende. Não adianta insistir em algo que está nos provocando desconforto e não prazer na leitura, trazendo para a nossa vida mais uma fonte de conflito e não um momento de descanso e relaxamento.

Assim, é mesmo necessário sair da nossa zona de conforto em relação aos livros? Por um lado, pode-se pensar que, se trabalhamos com eles, é importante conhecermos o que está no hype e também as tendências contemporâneas da literatura. Por outro lado, é notório que os produtores de conteúdo que mais são levados a sério e respeitados, são aqueles que têm identidade e não aqueles que expandem tanto os seus horizontes, que não constituem uma linha de pensamento e de trabalho. A principal tendência contemporânea é a especialidade em algo.

Como podemos observar, o mundo literário também é permeado por questões inerentes ao ser humano, que sempre vão existir como sempre existiram. Não basta ser leitor para ser iluminado e cheio de virtudes. Pessoas inteligentes e cultas também agem de forma irracional e cultivam seus preconceitos e suas ideologias dogmáticas até de uma forma mais incisiva e severa. Então, neste caso, a literatura não está cumprindo o seu papel humanizador? Certamente ela está, porém, cada pessoa tem o seu ritmo e a sua evolução pessoal e como aprendi tanto lendo livros como Banzeiro Òkòtó, O ponto zero da revolução e os Contos Completos do Tolstói, talvez aquilo que faça sentido para mim, não faça para o outro e está tudo bem.

Corroborando com essa questão da humanização através da literatura, das nossas vivências e do próprio tempo, Sigrid Nunez também aborda a questão das releituras dos nossos livros favoritos. Ela questiona se é mesmo necessário fazer esse movimento porque muitas vezes, aquele livro querido não vai sobreviver a uma releitura, sendo melhor guardar a lembrança bonita que temos dele. Por outro lado, é tão bom reler os nossos trechos favoritos dos romances, conversar sobre eles, fazer referências a eles, principalmente quando eles nos marcam tanto que somos capazes de citar suas sentenças sem nem ao menos consulta-los. E esses são os livros da vida, aqueles que nos marcam para sempre.

Olhando sob esse ponto de vista, me vejo muitas vezes indo ao Skoob retirar algum livro da minha lista de favoritos e sim, já vi outros leitores dizendo que fazem o mesmo. Esse movimento acontece porque às vezes, vejo um livro na minha lista de favoritos, tento me lembrar de algo sobre ele, personagens, enredo, tempo, ambientação e nada me vem à cabeça. Assim eu me pergunto: por que coloquei esse livro como favorito? E eu não sei responder. Talvez por que naquele momento eu gostei de ler aquele texto, mas depois, ele foi esquecido. A estratégia agora é esperar o final do ano e observar quais livros reverberam em mim após meses de sua leitura.

Outro ponto muito interessante que Nunez aborda em seu texto e que concatena com o tema anterior é a questão da crítica literária e do lugar de fala de cada pessoa que conversa sobre literatura. Ela deixa no ar a pergunta sobre a importância desse profissional e a influência que ele exerce sobre o leitor, sendo que muitas vezes, algumas críticas profissionais, feitas para jornais de grande circulação, são contestadas pelos escritores, alegando que o crítico não entendeu o que ele quis dizer. Esse é um terreno complicado porque estamos abordando a teoria da recepção, como um romance ou um texto qualquer é recebido pelo leitor. Essa recepção pode ser positiva ou negativa. No passado, antes da internet, os críticos ditavam o sucesso ou o fracasso de um livro.

Atualmente, existem inúmeras formas de buscar informações sobre uma obra e até mesmo contestar uma opinião com a outra. Porém, apesar de termos o mundo aos nossos pés, muitos de nós somos dependentes da opinião alheia para escolher nossas leituras, nossos autores favoritos, as editoras confiáveis… isso vai longe. Fora do âmbito literário, os internautas querem saber de tudo sobre a vida pessoal dos produtores de conteúdo e dependem deles para escolher até mesmo a marca de papel higiênico que vão comprar. E o que isso tudo quer dizer? Que não temos mais opinião própria? Que não temos autonomia? É notório que perdemos sim muito do nosso senso crítico e da nossa capacidade de pesquisar e de ir atrás das informações que desejamos obter.

O amigo além de abordar os temas relacionados ao mercado editorial, nos faz pensar sobre o nosso modo de vida atual, como as coisas mudaram e como nos organizamos como sociedade. Na faculdade de Letras aprendemos que qualquer pessoa pode aprender a escrever e se tornar escritor. Antigamente, acreditávamos que a pessoa deveria ter um certo talento, um dom para a escrita. Hoje em dia, existem inúmeros cursos de escrita criativa e a nossa narradora em O amigo, é uma professora dessa modalidade de curso na Universidade. Justamente por ministrar uma aula de escrita criativa ela se questiona muito sobre o assunto e observa os seus alunos, percebendo neles pouco potencial criativo e uma enorme dose de soberba para apontar as falhas dos autores indicados na bibliografia do curso.

É interessante pensar e falar sobre esse tema porque nas rodas de conversas sobre livros esses aspectos são perceptíveis. Em algumas reuniões, as pessoas se sentem intimidadas a opinar porque elas estão sendo julgadas. Mesmo que ninguém fale nada, os olhares de reprovação e as expressões corporais dos mediadores e dos participantes já inibem as pessoas em manifestar sua opinião e seu ponto de vista. É complicado estar em um grupo onde não se pode falar, onde há censuras. E esse é o maior contrassenso literário: se a literatura é liberdade, porque podamos as opiniões que são contrárias às nossas? Porque desmotivamos as pessoas a ler, já que quando elas vão se manifestar, os outros a oprimem com discursos de ódio e repressões?

Se pararmos para pensar sobre tudo isso, o assunto não tem fim. Nunez alega que a maioria dos escritores que deixaram legados de humanidade e empatia em forma de texto, na maioria das vezes, não conseguiram cumprir esse papel na vida real. A grande maioria dos autores e das pessoas que permeiam o mundo literário são vaidosas, inseguras, ciumentas, invejosas e arrogantes. Infelizmente, há muita gente assim, mas em contraponto, há pessoas legais que realmente se preocupam com a arte pela arte e não estão correndo atrás de uma fortuna. Nos Estados Unidos, país de origem da autora, os escritores ganham muito dinheiro. Aqui no Brasil, eles precisam ter uma atividade profissional que pague as contas e escrever por hobbie, muitas vezes arcando com os custos de publicação de suas obras.

Essa questão de os autores custearem a publicação de seus livros não é um tema atual. Jane Austen passou por isso, Mary Shelley também. As irmãs Brontë tiveram seus romances recusados várias vezes. Proust deixou seus originais do icônico Em busca do tempo perdido com André Guide e foi recusado sem que este tenha se dado ao trabalho de ler o manuscrito. Muitos autores contemporâneos se tornarão clássicos no futuro, terão o reconhecimento merecido ao longo do tempo, provavelmente, após a sua morte. Porém, assim como no passado, a grande maioria será esquecida. Então, é possível aprender a escrever em aulas de escrita criativa? O que vai falar mais alto: o dom ou a técnica? Não seria a obra-prima um conjunto dos dois fatores: técnica e talento?

Quando observamos escritores célebres como Tolstói por exemplo. Ele nunca fez aulas de escrita criativa, porém, gostava de ler e foi sem dúvidas, um grande observador do ser humano. Ao aprender na escola as técnicas de escrita, de coesão e coerência, unidas ao seu conhecimento de mundo, suas experiências pessoais e suas observações, ele escreveu obras que perduram no tempo, que mesmo hoje, em 2023, ainda têm muito a nos ensinar, que dialogam conosco como seres humanos, como indivíduos. Por isso, será mesmo que uma pessoa comum, que não tem aptidão para a escrita, se tornará um grande romancista como Tolstói?

Trazendo a discussão para os dias atuais, Aline Bei, escritora brasileira muito talentosa, faz aulas de escrita criativa com o objetivo de aprimorar suas técnicas de escrita, o que funciona muito bem para ela. Porém, o estilo de Aline é completamente particular, subjetivo, creio eu, que muito difícil de ser copiado ou até mesmo aprendido em aulas de escrita e redação. O mesmo acontece com a Carola Saavedra, outra grande escritora brasileira contemporânea. Ela também participa e ministra aulas de escrita criativa, mas os seus textos são cheios de um estilo que é próprio dela, que por mais que se ensine, não vão ser captados por uma pessoa que não tem talento para escrever. Portanto, acredito que as aulas de escrita criativa são válidas no quesito de aprimoramento de técnica, porém, não vão transformar ninguém em um grande nome da literatura.

Assim, ficam os questionamentos sobre o mercado editorial e sobre nós como leitores. Afinal, somos seguidores ou agentes da nossa própria vida? Vamos ler o que gostamos, independentemente de ser clássicos ou contemporâneos, ou vamos deixar que os influenciadores e críticos digitais decidam isso por nós? Se não houverem lançamentos de livros de ficção por um ano, eles nos farão falta? De quanto tempo um autor precisa para escrever um livro de ficção com personagens, ambientação e enredo bem desenvolvidos, que marquem o leitor? É realmente necessário saber mais sobre a vida privada de um escritor, como um stalker, para ter certeza de que ele escreveu um livro de autoficção? O que faz um livro permanecer no coração das pessoas e transformá-las? E a principal questão: o que estamos buscando quando lemos um livro?

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