crítica

Doutor Fausto – Thomas Mann

Sem dúvidas, a minha melhor leitura de 2021 até o momento, foi Doutor Fausto (Cia das Letras, 2015) do escritor alemão Thomas Mann. O livro traz tantos elementos interessantes, tantos personagens inesquecíveis e um enredo tão sensacional, que é difícil falar sobre ele. Mas, vou tentar colocar aqui minhas impressões, algumas chaves de leitura e o motivo por eu ter gostado tanto dele.

O leitor acompanha a história de Adrian Leverkünh, um músico bastante perspicaz, ambicioso e inteligente que deseja ser imortalizado através de sua obra. Vamos conhece-lo através de seu amigo Serenus, que é um narrador impagável, daqueles bem prolixos e que adora uma digressão. Ele apresenta Adrian para o leitor desde a sua juventude até o final de sua vida e ao longo da narrativa, vai nos indicando as tragédias que vêm pela frente.

Durante a juventude, Adrian já se destacava bastante por sua inteligência, por ser um grande autodidata e por seu interesse pelas artes, música, filosofia e política. Através de diálogos muito ricos, Mann vai debater todas essas questões nas vozes de seus personagens, mostrado alguns pontos de vista sobre diversos assuntos. Depois de um tempo na faculdade de teologia, Adrian resolve que não quer mais seguir a vida religiosa e que, na verdade, deseja ser músico, criar uma obra prima e ser reconhecido por ela. Porém, não é tão simples assim. Existem muitas pessoas tentado a mesma coisa e ser reconhecido, se destacar em meio à multidão é bem mais complicado que parecia a princípio para Adrian.

Para conseguir alcançar seus objetivos, o protagonista vai conhecer as pessoas certas, se cercar de outras que serão importantes e ainda assim, esse dia não chega. Após contrair uma grave doença, o tempo (ou a falta dele) passa a ser um problema na vida de Leverkünh e por isso, ele faz um pacto fáustico para ser eternizado através de sua música. Mas, esse pacto tem um preço e ele é alto. Adrian não pode amar ninguém até o fim de sua vida. Ele aceita esse acordo e segue em frente, produzindo cada vez mais, ao passo em que sua saúde se deteriora. O sucesso vem, mas ele não tem quase ninguém à sua volta. É um homem solitário, extremamente focado em seu trabalho e quase não se permite distrações.

A partir desse ponto, não vou falar mais sobre o enredo para não dar spoilers e estragar a experiência de leitura de ninguém. Portanto, falemos sobre os aspectos da obra que mais chamam a atenção do leitor, tais como a erudição de Thomas Mann, que fica     totalmente evidente nesse livro. Há referências aqui ao Fausto do escritor alemão Goethe, à Divina Comédia de Dante, às obras de Bethoveen e muitas outras. Ele é capaz de discutir sobre muitos assuntos complexos no livro, apresentando contrapontos para argumentação dos personagens e criticando fortemente a postura da Alemanha no período da Segunda Guerra Mundial.

Na verdade, fica muito claro ao final da leitura, que Adrian é uma alegoria à Alemanha Nazista, o que não é um spoiler, pois faz com que o leitor se atente aos pontos da personalidade do protagonista que se comparam à fase do país. O próprio narrador coloca alguns pontos sobre a guerra, suas consequências e seus efeitos na população e nas relações dos alemães com os outros países da Europa. A germanidade e o seu significado também são explorados por Thomas Mann nos monólogos de Serenus com o leitor e nos diálogos dos personagens.

A dúvida sobre a sanidade de Adrian é algo que permeia toda a obra. Seu comportamento frio e distante, apático e temperamental, ao mesmo tempo muito erudito, levam o leitor a desconfiar sobre a existência ou não do diabo. Apesar do músico começar a sua trajetória acadêmica cursando teologia, não existem evidências reais de que ele tenha feito um acordo com o demônio. O diálogo entre os dois, que é sensacional, é exposto através de uma carta que o próprio Leverkünh escreve a Serenus, mas ao final, ele não sabe se sonhou ou se realmente aconteceu tudo aquilo.

As fatalidades às quais ele será exposto podem ser simples ironias do destino ou mesmo coisas da vida e não se relacionarem ao suposto pacto. Mas essa discussão proposta por Mann é bastante inteligente porque nos leva à reflexão sobre o que podemos considerar como “venda da alma”. E também até que ponto somos capazes de ir para conseguir algo que queremos tanto, qual o nosso preço. É difícil sair dessa leitura sem acreditar que sim, o bem e o mal existem e talvez uma força superior esteja mesmo brincando conosco, como em um tabuleiro de xadrez, nos levando ao xeque mate.

Ainda podemos interpretar esse personagem e sua história como uma metáfora da vida. Todos nós desejamos ardentemente alguma coisa, seja tempo, imortalidade através do nosso trabalho, o amor de alguém, dinheiro, poder, dentre tantas outras. Esses desejos, geralmente relacionados ao mal, quando ultrapassam o limite da sanidade, passam a ser um problema e, se não resolvido, pode nos levar à loucura. Digo tanto no sentido figurado, quando no literal. Figurativamente falando, podemos tentar nos vender a alguém, oferecer algo que temos para conseguir o que o outro tem e que desejamos tanto. Literalmente, de tanto querer algo e não conseguir, a pessoa pode mesmo enlouquecer e perder a noção de certo e errado, de limites e terminar muito mal.

De qualquer forma, quando optamos por fazer alguma coisa errada, ilícita ou que vai prejudicar alguém, já vendemos a nossa alma, escolhemos o lado do mal. Lado este, que existe dentro de nós. Todos somos feitos de luz e escuridão e, de acordo com o momento ou a situação, fazemos nossas escolhas. Estas terão consequências, de acordo com as nossas ações. Portanto, se agimos bem, recebemos o bem, mesmo que não sejamos eternizados em nossa obra, ricos ou poderosos, seremos lembrados no coração daqueles que amamos. Por outro lado, se praticamos más ações, elas retornarão. E as lembranças que guardarão de nós, serão ruins, tristes e amargas, mesmo que estejamos imortalizados através de nossas obras. E temos inúmeros exemplos disso na vida real, basta olhar para o lado.

Talvez, as atitudes egoístas, individualistas e gananciosas de Adrian possam ser as grandes responsáveis por sua solidão e provável loucura. Serenus deixa claro para o leitor esses traços da personalidade do amigo, tanto que, em sua conversa com o diabo, este vai lhe dizer que desde sempre Adrian foi diferente, que ele não pertencia ao lugar comum e que sempre teve tendências a escolher o lado das trevas. Ele ainda sugere que pessoas muito inteligentes não pertencem à luz. Algo que eu discordo totalmente, mas, que deve ser considerado porque em certos casos, pessoas que são geniais, estão sempre sozinhas, marginalizadas, principalmente, pelo hábito constante de corrigir todo mundo e se mostrar superior. Adrian é descrito por Serenus como uma pessoa genial e arrogante. Mais um ponto para refletirmos sobre a obra.

A grandiosidade desse livro é tanta, que não cabe tudo nesse humilde texto. É uma obra para releituras e certamente em cada uma delas, uma chave nova se apresentará para o deleite do leitor. É o tipo de livro que fechamos e ficamos parados tentando entender o que aconteceu ali. Vez ou outra, lembramos de Adrian e seu destino trágico ou de Ignez, de Clarissa, do próprio Serenus nos contando essa história toda de forma impagável. As reflexões são diversas e a genialidade de Thomas Mann é um capítulo à parte. Somos surpreendidos a todo momento com alguma coisa nova e nada, absolutamente nada, está ali por acaso. No final, tudo faz sentido. E, que final. Os últimos capítulos são frenéticos, de uma beleza ímpar e de uma tragédia clássica. Por favor, leiam Thomas Mann!

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