crítica

E o vento levou – Margareth Mitchel

Polêmico, amado por uns, odiado por outros, E o vento levou (Nova Fronteira, 2020), conta a história da Guerra Civil Norte-americana, através da protagonista Scarlett O’Hara e sob o ponto de vista de uma mulher branca, sulista e supostamente racista e escravagista. É importante ressaltar essas características do romance para deixar claro que, apesar de todas as descrições da narrativa que são ofensivas e que devem ser repudiadas por seu teor segregacionista, a prosa de Margaret Mitchel e o relato histórico presente na obra são grandiosos e as reflexões propostas através do comportamento de seus diversos personagens são infinitas, para o bem e para o mal.

Acompanhamos aqui a saga de Scarlett O’Hara, uma garota de 16 anos, mimada, voluntariosa, chata, superficial e extremamente vaidosa, onde a sua única preocupação é conquistar todos os homens jovens do condado, principalmente Ashley, um rapaz diferente dos demais, que gosta de ler, estudar e não se parece em nada com as tradições sulistas de caça, plantação de algodão, acúmulo e cultivo de terras e escravos. O problema é que neste exato momento, onde as pessoas vivem as suas trivialidades, a guerra civil está começando e muitas tragédias virão a partir desse acontecimento.

A Guerra Civil Norte-americana foi uma batalha sangrenta entre os estados do Norte (Ianques) e os estados do Sul, chamado “Exército Confederado”. Essa guerra aconteceu por motivos políticos, econômicos e sociais, devido as diferenças entre os dois grupos que divergiam sobre diversos aspectos governamentais e financeiros, mas que teve como grande mote o fim da escravidão. Os Estados Confederados do Sul viviam do cultivo de algodão e da renda de suas fazendas, em sua maioria adquiridas através do que chamamos aqui de uso capial, ou seja, sem muitos esforços pecuniários. Essa fartura e riqueza dos sulistas só era possível devido à escravidão: essas pessoas trabalhavam de graça, eram exploradas e dessa forma o dinheiro obtido com a venda do algodão ou mesmo dos escravos, ficava todo para a família aristocrata em questão.

Já nos estados do Norte, a escravidão não existia mais. Eles estavam começando um processo de industrialização e a vida nas cidades grandes já era intensa. Os negros libertos trabalhavam e recebiam salários, assim como algumas mulheres já iniciavam carreiras profissionais. As cidades do Norte precisavam de mais recursos, tanto financeiros como políticos e humanos e assim a guerra foi travada. Diferente dos povos do Sul, os nortistas se prepararam para o embate: tinham tropas organizadas, representavam um número maior de integrantes e simpatizantes. Contavam com o apoio de alguns países europeus e assim, venceram a guerra civil. Os sulistas por sua vez, acreditavam no poder do sobrenome, da árvore genealógica, dos “valores e tradições” e da honra. Mas, esses componentes não vencem uma batalha bélica.

Através de Scarlett e de suas atitudes, seu comportamento, falas e ações, a autora discute temas muito relevantes tais como o papel da mulher na sociedade, o movimento de desruptura entre as gerações, a perda de entes queridos, a situação das viúvas nos estados do Sul, patriotismo, ética, moral, honra e o valor das amizades e dos laços que construímos ao longo da nossa jornada terrena. Utilizando a guerra como pano de fundo, Mitchel também nos mostra as dificuldades enfrentadas por todos em um momento como esse: a escassez, o número imenso de feridos, pessoas mutiladas, sobreviventes confusos e totalmente fora de si, a falta de recursos para cuidar dessas pessoas, o serviço voluntário ofertado pelas mulheres nos hospitais como uma forma de contribuição na guerra. O aquartelamento de soldados, a tomada e destruição das cidades e em meio a todo esse cenário desolador, o cidadão comum, tentando viver o seu cotidiano.

Alguns personagens que co-protagonizam essa obra merecem um destaque. A começar por Melanie, uma moça muito apegada às tradições sulistas, patriota, porém, de um coração enorme. Ela é delicada, sincera, autêntica e tenta na maior parte do tempo, ser uma pessoa justa. É incapaz de fazer comentários jocosos ou grosseiros, dando a impressão de ser apenas uma tola, quando na verdade ela enxerga muito mais as pessoas à sua volta do que podemos imaginar. Consegue ter uma percepção gentil e positiva dos outros, quando até eles mesmos não conseguem ver nada de bom em si mesmos. Melanie é casada com Ashley e ao longo do romance se torna a maior “antagonista” de Scarlett. Porém, o seu papel nessa história é muito maior que esse estigma de ser aquela que atrapalhou o afair entre a protagonista e seu herói: Melanie é um dos pilares tanto de Scarlett, quanto de Ashley e mesmo do romance em si.

Outro personagem muito importante e que protagoniza diálogos memoráveis, sendo quase a voz da razão em meio a tanto bairrismo é Rett Butler. Esse homem se transformou em um pária da sociedade depois de se recusar a casar-se com uma moça com quem saiu e demorou a voltar com ela para casa. Foi renegado pelo pai e consequentemente por sua família e assim começou a ganhar dinheiro de forma escusa: jogos de azar, atravessando o bloqueio na guerra e vendendo produtos raros para quem tinha condições de comprar e se aliando a quem lhe convinha, desprezando as regras éticas e morais que solidificavam as relações tradicionalistas da Geórgia.

Através desses quatro personagens principais Scarlett, Rett, Melanie e Ashley a história se desenvolve e ganha fôlego, mostrando o ponto de vista dos habitantes da Geórgia e seus sentimentos em relação à guerra, à escravidão e às tradições. Apesar dos termos racistas utilizados pela autora (principalmente na narrativa), ela consegue promover muitas discussões que infelizmente ainda são atuais. Um dos principais tópicos desenvolvidos por Mitchel é o lugar da mulher na sociedade e o empoderamento feminino. Scarlett, após perder os pais, assume a administração da fazenda onde nasceu, que foi totalmente destruída pelos “ianques”. Em sua célebre frase “eu jamais passarei fome novamente”, ela se posiciona de forma controversa aos seus vizinhos e faz tudo o que pode, desconsiderando todos os valores éticos e morais, passando por cima de tudo e de todos para ter dinheiro.

Essa atitude de Scarlett choca a sociedade e a coloca à margem. Seus métodos não são ilibados, entretanto, o fato dela ser mulher e assumir papéis masculinos tem um peso maior que a sua falta de honestidade. Outro ponto importante abordado pela autora é a morte de crianças na guerra. Em algumas passagens do romance os personagens refletem sobre aqueles que há poucos meses estavam brincando, correndo pelos campos, cavalgando e paquerando e que agora estão mortos. Mortos por uma guerra sem sentido e infrutífera. Ela também mostra de forma contundente as dificuldades para reconstruir um estado após bombardeios constantes e uma destruição sem fim. A corrupção começa a aparecer a partir da escassez e da concentração de recursos financeiros nas mãos de poucas pessoas. Assim também se acentuam as desigualdades sociais.

A libertação dos negros também é uma questão delicada e que foi abordada pela escritora, sob o ponto de vista de pessoas brancas, racistas e a favor da escravidão. Portanto, é um lado da história. Mas, que nos faz refletir sobre uma liberdade perversa, que não dá condições a essas pessoas de conseguir um bom trabalho, de estudar e ter algo fundamental que caminha junto com a liberdade: a dignidade da pessoa humana. A partir desses relatos, ela aborda também o surgimento da Kux Kux Klan, defendendo-os, colocando-os como defensores das vítimas de abuso e violência, que de acordo com o seu ponto de vista, ficavam impunes. Como diz a maravilhosa Chimamanda Ngozi Adichie, não podemos acreditar em uma história única. É importante saber os dois lados da mesma história. Assim, o leitor crítico do século XXI pode mensurar o que vai guardar dessa narrativa e o que vai repudiar.

E o vento levou é uma história potente, muito bem escrita, envolvente e que traz um relato histórico sobre a Geórgia do final do século XIX. De acordo com a autora, tudo o que ela contou nessa narrativa é proveniente de histórias que ela escutou de seus antepassados e retrata a vida dessas pessoas. Apesar de ser um romance segregacionista, há na sua prosa muitas discussões pertinentes, seus personagens são muito bem construídos, os diálogos são ótimos e nos fazem pensar sobre todo o processo dessa guerra, a reconstrução das vidas devastadas e os motivos que levaram os Estados Confederados do Sul a lutar por algo tão insólito. É um lado de uma história, que até hoje conserva raízes nessa parte dos Estados Unidos. Sou uma grande fã de romances históricos e gostei muito da experiência de leitura desse clássico. Quero deixar claro que não concordo com o ponto de vista da escritora e que repudio com todas as forças toda e qualquer manifestação de racismo. Porém, não posso desmerecer esteticamente esta obra que me fez parar tudo o que eu estava lendo para me dedicar a ela. Esse é um mérito do bom escritor: prender o leitor mesmo quando ele discorda de seus personagens e ponto de vista.

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