crítica

Em busca do tempo perdido – Volumes 3 e 4 No caminho de Germantes/ Sodoma e Gomorra – Marcel Proust

No terceiro e no quarto volumes da série Em busca do tempo perdido, os temas que embasam esse grande romance são explorados pelo autor através dos personagens que vão aparecendo ou tendo suas histórias desenvolvidas ao longo da trama. A ambientação de No caminho de Guermantes, assim como de Sodoma e Gomorra, acontece durante a chamada Belle Époque – período de paz e otimismo vivenciado pelos europeus durante os anos de 1871 a 1914, onde os avanços científicos e tecnológicos tornaram a vida cotidiana mais fácil e trouxeram uma crença de prosperidade e esperança no futuro. Ao longo da prosa proustiana, vemos todas essas inovações, tais como a bicicleta, o avião, o carro e a máquina fotográfica presentes no dia a dia dos personagens. São nesses volumes em que aparecem as cenas clássicas de Albertine pedalando sua bicicleta em Balbec em contraponto com as pessoas que utilizam o meio de transporte para o trabalho, como as vendedoras de leite e frutas, por exemplo.

Há também um clima político tenso devido ao caso Dreyfus que estava acontecendo naquele período e que dividiu a sociedade parisiense em dois polos distintos: os dreyfusistas e os anti-dreyfusistas. Para quem não está familiarizado com o caso, Dreyfus foi um militar acusado de alta traição no ensejo do fim das guerras napoleônicas. O acusado era judeu e esse fato mudou toda a dinâmica do antissemitismo velado que ocorria na época. Após as denúncias, as pessoas se sentiam mais à vontade para manifestar o seu repúdio aos judeus e a demonstrarem o seu antissemitismo de forma clara, sem meias palavras. O caso Dreyfus ganhou uma repercussão maior quando o escritor Émilie Zolá escreveu um manifesto apoiando o militar acusado. O posicionamento do escritor fez com que a classe artística se dividisse e se posicionasse também e este é o principal assunto dos salões parisienses no volume três, No caminho de Guermantes.

O judaísmo é um dos temas principais trabalhados pelo autor, pois ele era filho de uma mulher judia com um homem cristão. Vários de seus personagens são judeus ou se casam com judeus e através deles, há uma grande discussão sobre a posição da Europa em relação a eles. No primeiro volume, No caminho de Swann, Charles, um judeu respeitado no meio social, se casa com Odete, que é uma mulher de “moral duvidosa”, perdendo assim o seu prestigio social. No terceiro volume, ele aparece novamente, já bastante debilitado pela doença e, em uma das cenas mais tristes e lamentáveis desse romance, Oriane e o Sr. De Guermantes o desprezam de uma forma grosseira, preferindo trocar os sapatos para irem a uma festa importante que parar dez minutos para conversar com um amigo que pode morrer a qualquer momento.

Esse comportamento das pessoas, que Proust enfatiza tanto nesses dois volumes da série, é totalmente proposital, que faz um contraponto com o período da Belle Époque: enquanto as pessoas têm grandes esperanças em um futuro melhor, o autor mostra que a sociedade não está preparada para nada disso. A cada dia, os personagens se mostram mais infantis, com mais dificuldades em lidar com as pequenas contrariedades da vida, mostrando-se sempre infelizes e não satisfeitas com suas conquistas ou com aquilo que possuem. Banalidades do dia a dia são para elas grandes problemas sem solução ou que consomem as suas energias de uma forma bizarra e desproporcional ao acontecimento. Por outro lado, quando as pessoas começam a morrer, a ficarem doentes, eles se comportam de forma banal, como se aquilo realmente fizesse parte da vida e fosse esperado.

A morte e a doença também são temas muito explorados pelo autor nesses dois volumes. Temos a morte da avó de Marcel, que será processada por ele de forma bastante particular, mostrando que cada um de nós vivencia um luto diferente e em tempos diferentes. Proust nos faz pensar que é preciso respeitar a individualidade de cada pessoa e não esperar comportamentos padrões para acontecimentos de grande impacto na vida dos personagens. Marcel, em um dos seus últimos momentos com a avó, a trata mal, está sem paciência com ela por andar devagar e demorar a se arrumar, atrasando-o. Ele queria provocar um encontro “casual” com Oriane e para isso, precisava sair logo de casa. A lentidão de sua avó o impede de ter esse encontro. A raiva o deixa cego e só muito tempo depois é que ele vai se dar conta de que aquela foi a última vez que saiu com a sua avó na rua. O autor faz uma reflexão bem bonita sobre a forma como utilizamos o nosso tempo:

Não aproveitamos quase nada da nossa vida, deixamos inacabadas nos crepúsculos de verão ou nas noites prematuras de inverno as horas em que no entanto nos havia parecido estar encerrando um pouco de prazer ou de paz. Mas essas horas estão absolutamente perdidas” (PROUST, 2016, pág. 313)

Marcel apenas se dá conta de que sua avó se foi para sempre, quando volta sozinho a Balbec e se lembra dela naquele mesmo hotel, naquelas mesmas praias, restaurantes e lugares. É assim que ele processa a sua perda e o seu luto. Assim como a morte está presente neste romance, as doenças também estão. O autor faz muitas referências aos novos tratamentos que vão surgindo ao longo do tempo e que em sua opinião, permitem que a pessoa prolongue o seu tormento. Marcel se questiona bastante sobre a efetividade dos tratamentos médicos e do direito do paciente em escolher como vai lidar com a sua enfermidade. Ele acredita que existe uma troca injusta na relação médico/ paciente, quando alguém está desenganado e o médico insiste em tentar alternativas fracassadas, prolongando assim as angústias de quem está sofrendo com a moléstia e também de quem está perto do paciente.

Em busca do tempo perdido é um romance de frustrações e isso fica bastante evidente nos dois volumes intermediários da série. Há sempre uma diferença cabal entre aquilo que acreditamos e esperamos e aquilo que realmente acontece. Os maiores exemplos em No caminho de Guermantes são o romance de Saint-Loup e Rachel, algo que para o leitor já estava fadado ao fracasso desde o princípio, porém, para Saint-Loup não. Ele vai até as últimas consequências em uma tentativa frustrada de se casar com a atriz que não o amava, mas gostava muito do seu dinheiro e da vida luxuosa que ele era capaz de lhe proporcionar. No final, quem pagou mais, teve o suposto amor de Rachel e não foi Saint-Loup. Para Marcel, essa frustração vem quando ele finalmente consegue adentrar os salões da Sra. De Guermantes. Ao longo do romance é criada uma ambientação de expectativas que são lentamente frustradas a partir do momento em que ele se aproxima dessa família e percebe que são pessoas fúteis e vazias.

Essas quebras de expectativas são o grande mote do romance: Proust tenta nos convencer de que vivemos eternamente um “Castigo de Sísifo”, onde as nossas expectativas sempre serão quebradas, mas para sobreviver, continuaremos criando uma realidade possível para nós. Para o autor, alguns fatos da vida são sempre os mesmos, desde que o mundo é mundo e que somos obrigados a conviver com eles, gostando ou não, que é o que ele chama de “Castigo de Sísifo”. Dessa forma, o amor, a realização dos desejos, as amizades, a morte, a doença, todos estes fatores são corriqueiros da vida e se repetem ao longo do tempo, em um looping infinito. Amamos alguém que não nos ama da mesma forma, as nossas expectativas são sempre maiores que a realidade dos fatos, nossos amigos nem sempre são leais, na maioria das vezes, não o são. A morte sempre vai chegar para nós e para os nossos entes queridos, mesmo que a medicina avance muito, ela não conseguirá impedir a morte e nem a proliferação das doenças. E o nosso maior “Castigo de Sísifo”, é não sermos capazes de expressar todos esses sentimentos através da linguagem, pois ela também é limitada e não dá conta de tanta complexidade.

O quarto volume da série, Sodoma e Gomorra, mostra a descoberta de Marcel sobre a homossexualidade. É importante salientar que Proust foi homossexual e que ele utiliza o romance para mostrar a complexidade dessas relações e as consequências delas em uma sociedade tacanha, retrógrada e preconceituosa. Ele se refere às pessoas que se relacionam com outras do mesmo sexo como “invertidos” e faz uma referência às cidades bíblicas de Sodoma, local para onde fora expulsos os homens gays e Gomorra, local para onde foram expulsas a mulheres lésbicas. Ao longo da prosa, o autor conta descoberta do protagonista, com todo o espanto que ela lhe traz. Ele segue o Sr. De Charlus e flagra o seu encontro com um jovem pianista em início de carreira e percebe que esse encontro não é apenas de amigos ou de negócios, mas sim um encontro amoroso.

Ao longo de Sodoma e Gomorra, acompanhamos o desdobramento desse relacionamento do Sr. De Charlus com Morel, que claramente não o ama, confirmando a teoria do “Castigo de Sísifo”, e assim como Rachel tem interesse apenas em se promover através desse homem que está realmente apaixonado por ele. Em Sodoma e Gomorra, o caso Dreyfus é solucionado, surpreendendo a todos os anti-dreyfusistas, quando o militar foi inocentado e o verdadeiro culpado foi acusado e teve a sua identidade revelada, sendo este um homem acima de qualquer suspeita, cristão e de moral ilibada na sociedade parisiense. Outro acontecimento importante de Sodoma e Gomorra e que terá suas consequências exploradas no quinto volume da série, é o romance entre Marcel e Albertine, que se reencontram em Balbec e depois de muitas desconfianças do protagonista, inclusive a respeito da sexualidade da namorada, eles voltam juntos a Paris.

Ao finalizarmos o quarto volume de Em busca do tempo perdido, fica bastante evidenciada uma de suas principais características: o mundo contido dentro de cada um de nós é o que vai ditar as nossas escolhas e também o nosso julgamento sobre os outros. Quando cada personagem desse romance se expressa, falando uns dos outros ou fazendo algum tipo de julgamento de valor do outro, ele está falando sobre si mesmo, sem se dar conta disso. O romance de Proust é longo e extenso para que todos esses personagens que a princípio parecem irrelevantes cresçam, vigorem e se desvaneçam no final, provando assim as teorias proustianas da eterna continuidade da vida e da repetição dos fatos do cotidiano através das pessoas e das gerações.  

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