literatura

Eneida – Virgílio

Pode até soar ridículo, mas sempre acreditei que existe um destino e que cada um de nós tem um a cumprir. Temos o nosso livre arbítrio sim, fazemos nossas escolhas e colhemos os frutos delas, mas ao meu ver, aquilo que tem de acontecer, vai acontecer mais dia menos dia. Alguns encontros que temos na vida, parecem verdadeiros Déjà Vu e isso é impressionante e inexplicável do ponto de vista racional: parece que tinha que ser. Estava escrito. E essa é a principal mensagem que esse poema épico do Virgílio deixou para mim: por mais que as coisas estejam difíceis, por mais que elas não aconteçam conforme a nossa vontade, o que está fadado a nos acontecer, no momento certo, acontecerá. Mesmo que a vida, o destino ou as pessoas ao nosso redor tenham atitudes que possam nos prejudicar, nada pode deter o destino.

Ah, mas que mensagem vazia e insubstancial! Afinal, vivemos na época da produtividade excessiva, onde cada um de nós é senhor do seu próprio destino, onde não existe mais Deus ou nenhuma força oculta que nos guie. Então, chegar alguém aqui e dizer o contrário, parece pueril e tolo. Mas, na verdade não é. Eneida está longe de ser um livro raso, vazio de sentido ou romântico. Muito ao contrário: é uma épica latina que conversa bastante com a atualidade por se tratar de uma figura heroica humanizada, falha, cheia de imperfeições e com críticas do poeta muito sutis, mas que fazem referência a temas caros à literatura contemporânea. Porém, ele produz também uma função afetiva no leitor, que é a mensagem subliminar, aquela que nos toca de forma profunda, nos faz além de admirar e respeitar a obra, também amá-la. E neste caso, a mensagem de esperança em relação ao destino foi a que bateu mais forte em mim e me fez amar e favoritar essa obra-prima.

Na Eneida, acompanhamos a trajetória de Eneias, filho de Vênus e Anquises, que no início do poema está navegando pelo mar de Tróia após a tocaia dos gregos através do cavalo. Segundo o professor Rodrigo Tadeu, a Eneida seria uma espécie de funfic da Odisseia de Homero, pois ela segue a partir do fim dessa grande obra. Após perder a guerra de Tróia, Eneias e sua comitiva saem em busca de uma nova terra, onde possam fundar um novo reino, uma nova Troia. A partir dos Fados (oráculos revelados ao longo do poema pelos deuses do Olimpo), o herói sabe que precisa chegar a um determinado lugar, onde será a sua nova morada. Porém, ele terá uma grande antagonista, que na verdade tem um certo problema com sua mãe, que é Juno. Esta fará todo o possível para dificultar e atrapalhar os planos de Eneias, mesmo sabendo que o seu destino está traçado e que ele vencerá a guerra de qualquer forma.

As armações de Juno fazem um diálogo com a Ilíada e a Odisseia de Homero, pois lá o herói Ulisses também é perseguido por muitas aflições enviadas pelos deuses e que atrasam a sua volta para casa, além de criar muitas situações insólitas para ele. Outras passagens da Eneida também dialogam com os textos de Homero, como a descida de Eneias ao inferno para conversar com seu pai, onde mais uma vez ele vê o futuro traçado para a sua dinastia e a ênfase dos seis últimos cantos da obra dedicados às batalhas entre o herói e seus opositores.

A trajetória de Eneias é permeada por muitos acontecimentos marcantes. Algumas tempestades desviam o curso das naus, já nos primeiros cantos da epopeia a esposa do herói se perde da comitiva e ele não consegue salvá-la. Anquises morre também e vários entreveros, em sua maioria provocados por Juno, atrasam a chegada de Eneias à Itália, onde fundará a nova Troia. Junto com a tropa viaja também o pequeno Ascânio, filho de Eneias e Creusa, que será o grande antecessor de nomes que conhecemos bem como Júlio César e Otávio Augusto, reis de Roma. Aliás, a Eneida foi um poema épico feito sob encomenda por Otávio Augusto, com o intuito de unir a mitologia greco-latina à História da Itália, algo que Virgílio faz muito bem, dando à atual dinastia um passado heroico.

Porém, Eneias é um herói falho. Não encontramos em Eneida personagens maniqueístas, onde de um lado figura a bondade absoluta e de outro a maldade sem limites. Os personagens criados por Virgílio e mesmo os já existentes de outras epopeias e da mitologia grega, são heróis falhos, dúbios, humanizados. Em diversas passagens o poeta faz alusões aos estupros de Júpiter, às violações que ele fez às mulheres mortais, às suas traições à sua esposa e tantas outras trapalhadas feitas pelo grande deus do Olimpo. Ele também não perdoa a sua misoginia e o preconceito que muitas vezes demonstra aos amores homoafetivos. Como podemos observar, há mais de 2.000 anos alguém já trabalhava assuntos tão contemporâneos na literatura.

Além disso, o poeta também mostra a diferença de gênero em diversas passagens do poema. Em alguns momentos, ele toma a palavra através de uma invocação para fazer as suas observações e digressões sobre temas complexos, tais como os casos de Cassandra, que é uma deusa que tem o dom da clarividência, mas foi amaldiçoada por Júpiter, fazendo com que ela fale o que vê no futuro, mas ninguém a leva a sério. Ela é desacreditada. Isso tudo porque Cassandra não aceitou a sua corte. O poeta também conta a história e dedica mais da metade do canto XI da Eneida à Camila, uma amazona muito corajosa e valente que perde a vida de forma traiçoeira em uma batalha contra Eneias. O que ele quer mostrar nesse trecho da obra é que apesar de ser bem mais nobre que muitos dos companheiros de Eneias, Camila foi morta por ser mulher. A passagem onde ela sofre a tocaia, reflete o feminino nessa amazona: ela está distraída, vendo os adornos de um guerreiro e o seu opositor, de forma covarde, atira uma flecha fatal em Camila.

Todas essas mensagens subliminares e descritas de forma sutil, porém bela, fazem com que o leitor do século XXI se encante com a Eneida e a respeite muito como uma grande obra da antiguidade. É possível pensarmos em tantas coisas que enfrentamos atualmente e que já aconteciam naqueles tempos, mas que muitas vezes achamos que são assuntos modernos, da contemporaneidade. Mas não são. Virgílio se mostra um homem humano, que se preocupa com as pessoas e assim ele imortalizou a sua obra, como já dito aqui há mais de 2.000, como algo atemporal e inesgotável. Seus personagens são todos dúbios, todos cheios de camadas. Erram, acertam, são capazes de gestos nobres e belos ao mesmo tempo em que são vingativos e hostis. Matam por que precisam, mas também matam pelo prazer de matar. Lutam pelo poder. Sentem inveja uns dos outros, sentem medo, fraquezas, inseguranças. Se perdem, muitas vezes não sabem o que fazer em determinadas situações. Porém também fazem coisas muito parecidas com o que fazemos no nosso dia a dia: festejam, bebem, cantam, dançam…. Enfim, temos aqui muitas situações humanas, cheias de idiossincrasias e de uma beleza real e possível.

Outra situação muito triste, que dá o tom de tragédia ao canto IV da Eneida, é o encontro entre Eneias e Dido. A rota do herói de Troia é mais uma vez desviada por Juno e assim as naus troianas vão parar em Cartago na África. Lá Eneias conhece Dido, uma rainha muito poderosa e, devido às armações de Juno, se apaixona por Eneias. Os dois ficam juntos e por isso a rainha exige que ele se case com ela, afinal, naquele tempo, essa atitude consistia em uma desonra. Mas, alertado pelos Fados, Eneias descobre que esta não é a nova Troia e que ele precisa ir embora cumprir o seu destino. Dido, abandonada, comete suicídio em uma passagem cinematográfica. É um livro muito triste, comovente e cheio de simbolismos e significados. É interessante como Virgílio através das invocações e do discurso indireto livre mostra a sua lamentação por essas perdas e pelo fato das pessoas se colocarem em situações desconfortáveis ou até mesmo trágicas por imprudência ou por sentimentos viscerais, os quais não conseguimos dominar. Ele demonstra a sua chateação, ao mesmo tempo em que mostra que o destino precisa se cumprir, ainda que custe a vida de pessoas valorosas e importantes.

Após tantas desventuras, Eneias já bastante fragilizado emocionalmente resolve descer ao Inferno para falar com o seu pai. Essa é uma passagem emblemática do Canto VI da Eneida, pois serviu como inspiração para o poeta Dante em sua célebre A Divina Comédia. Assim, ele descobre que o local da nova Troia é na Itália e para lá parte em busca dos seus objetivos. Há outros desvios, alguns enganos, mais intervenções de Juno, porém, a comitiva de Eneias chega a Lavino, onde o herói precisa se casar com Lavínia, filha do rei Latino, formando assim uma aliança entre troianos e latinos, sendo esta a nova Troia e futura Roma. Porém, Lavínia já era prometida de um outro rei, chamado Turno. E esse será o grande antagonista de Eneias. Em meio a essa batalha que será relatada nos cinco últimos livros da Eneida, aparecem muitos guerreiros valorosos, muitas coisas importantes acontecem e os sentimentos humanos são explorados de várias formas.

Encontramos nessa reta final do poema todos os tipos de seres humanos que possamos imaginar: altruísmo, generosidade, afeto, ódio, vingança, raiva, imprudência, inveja, ciúmes, relações homoafetivas, misoginia, preconceito, paixões desmedidas, rancor, culpa, alegria, tristeza, honra, traição, tocaia, covardia, coragem, valentia e decência. Os guerreiros da Eneida são todos eles valorosos. Apesar de alguns serem vaidosos demais ou até mesmo inescrupulosos, a sua grande maioria são pessoas comuns, que prezam pela honradez e que são fiéis ao seu grupo. A lealdade é uma característica bastante ressaltada nesses cantos do poema. Outro aspecto inerente ao ser humano é a súplica de alguns nos momentos de sofrimento intenso. Essas situações são colocadas no poema com o intuito de mostrar a piedade de Eneias – o pio Eneias. Esta é uma das principais características do herói troiano.

Entretanto, ao perder Palante, um guerreiro jovem, que foi enviado pelo pai para dar reforços à comitiva de Eneias em um momento de aflição, ele perde essa capacidade de ser piedoso com o inimigo. É tomado por uma fúria enorme e só deseja matar e se vingar. É impressionante como Virgílio consegue passar essa dor do protagonista de forma visceral e ao mesmo tempo humana, porque todos nós estamos sujeitos a passar de um sentimento bom ao seu oposto em questão de segundos. Palante é um personagem importante na obra porque ele simboliza o filho de Eneias, Ascânio, que não poderia estar nessas batalhas, sendo retirado delas por sua avó Vênus – na Odisseia, o mesmo acontece com Eneias. Isso porque se Ascânio morresse na guerra, o destino não se cumpriria e Roma não seria fundada por seus descendentes. Dessa forma, Palante representa juventude, o futuro dessa aliança entre troianos e latinos.

Outro ponto que merece destaque na Eneida é o acordo que Júpiter e Juno fazem com o intuito de cessar a guerra. Neste caso, Juno teria de parar de atrapalhar os Fados para que Eneias vencesse a batalha e tomasse posse do seu reino. O que ela pede ao deus do Olimpo é que os latinos não percam a sua essência, que continuem falando a sua língua, mantenham a sua cultura, as suas vestimentas e que o nome da Itália seja preservado, ou seja, não passe a chamar Troia. Esse acordo é fundamental para o futuro da Itália. Essa determinação de independência cultural se sobrepôs e se manteve durante toda a colonização romana na posteridade. Em muitas passagens do poema, Virgílio une o presente em que ele está escrevendo a obra (reinado de Otávio Augusto) e o passado heroico de Eneias e consequentemente de Ascânio. Assim, doze gerações separam Eneias do Rei Otávio Augusto.

Como a obra se propõe a contar a história de Eneias, Ascânio aparece apenas como criança, iulo Ascânio. Assim, ele não possui a mesma humanidade de seu pai, ou seja, ele pode ser visto como um herói maniqueísta por seu descendente Otávio Augusto, que desejava ter uma origem nobre, ligada às mitologias greco-latinas. Virgílio atende tanto às expectativas do rei, como também não foge à sua essência como poeta. É lindo! É sensacional.

Dizem os estudiosos que essa é uma obra inacabada. Fico me perguntando em que ela poderia ser melhorada ou trabalhada. Para mim, é perfeita, sem defeitos. Um livro para diversas releituras, que inspirou Dante em sua obra-prima, produziu poemas contemporâneos através de alguns de seus versos, tratando sobre assuntos atuais como as Fake News. Sim, temos as Fúrias na Eneida que ajudam a Juno a propagar mentiras por aí e atrapalhar os planos do herói. Por isso, creio que a Eneida é uma das maiores obras que já li na minha vida: além das maravilhosas símiles que o autor faz com temas da natureza, aluindo aos seus poemas anteriores, Bucólicas e Geórgicas, ele também nos contempla com o que a humanidade tem de mais valoroso: os sentimentos, o livre-arbítrio e o destino inexorável.

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