crítica

Enfermaria nº6 e outros contos – Anton Tchekhov

Nascido em Tangorov, no ano de 1860, Anton Tchekhov foi médico, escritor e dramaturgo russo, considerado um dos maiores contistas de todos os tempos. Sua fama em narrativas curtas vem do estilo adotado pelo autor em pegar assuntos triviais e contar histórias simples a partir deles, de forma humanística, levando o leitor à identificação ou à empatia por personagens comuns, sem nada de extraordinário em suas vidas medíocres. Tchekhov criou dessa forma um novo estilo de contos, os contos da vida comum, que tem como protagonista o homem ordinário e as situações do dia a dia.

Para Thomas Mann, Tchekhov “se equipara ao que há de melhor e mais poderoso na literatura europeia, com uma obra que abriu mão da monumentalidade épica e encerra em si toda a vasta Rússia de antes da revolução, com sua natureza eterna e suas eternas condições sociais desnaturadas”. Essa definição do autor por Mann se confirma no conto Sem Título, contido nessa antologia:

No século V, como ainda hoje, o Sol nascia todas as manhãs e punha-se todas as noites. De madrugada, quando os primeiros raios de sol trocavam beijos com a aurora, a terra despertava, o ar enchia-se de sons de alegria, de êxtase e de esperança; e quando caía a noite a terra sossegava e mergulhava no melancólico crepúsculo. Todos os dias e todas as noites se assemelhavam”.

Descrições como a acima citada, marcam bastante essa coleção de histórias curtas do autor, selecionadas pela LeBooks Editora. De acordo com os editores, os 6 contos contidos nessa coletânea refletem “um dos traços mais marcantes de Tchekhov, que o destaca mediante outros escritores russos, pois suas histórias não são moralizantes. O leitor tem permissão para tirar suas próprias conclusões, podendo assim, mudar o sentido da história, dependendo de quem a estiver lendo”.

Essas descrições de paisagens bucólicas e campestres serviam de palco para a ação dos personagens mais variados criados pelo autor. O conto que abre a coletânea e também dá nome a ela, considerado por Thomas Mann e também por mim uma obra-prima, A enfermaria nº6, tem como tema as fronteiras entre a sanidade e a insanidade humanas, que nas palavras de Irineu Franco Perpétuo, “é uma espécie de versão russa de O alienista de Machado de Assis, que abriria as portas para os escritores dos séculos XX e XXI descobrirem que a enfermaria dos desprovidos de razão é o mundo em que vivemos”.

Há uma abordagem sobre a loucura, amparada no sentido da inteligência, do pensamento crítico, que difere “o louco” dos demais e leva o indivíduo ao cárcere. O enredo desse conto gira em torno de um médico respeitado, que trabalha em um hospital comum, até que um dia, é criada uma nova ala, onde são colocados alguns homens com características parecidas, mas que estavam de certa forma incomodando pessoas importantes do vilarejo. Havia ali um ex-funcionário público, um senhor muito inteligente que gostava de ler e discursar pela cidade e alguns outros que já não conseguiam mais se expressar com clareza. Tchekhov não se limita às descrições sobre o estado físico dessas pessoas, mas mergulha fundo em suas vidas anteriores à internação e à sua humanidade.

O médico em questão, protagonista do conto, se aproxima de um dos internos, desenvolvendo com ele uma amizade e discutindo assuntos existenciais e filosóficos, fato que chamou a atenção dos seus colegas de trabalho que imediatamente o afastaram das suas atividades profissionais e não somente delas, mas também da vida como um todo. Estando este médico desprovido de seus ordenados mensais, de seus amigos e familiares, ele se tornou um pária em poucos dias e dessa forma, mostrou-se desesperado em relação a seu futuro, dando aos seus desafetos a oportunidade perfeita para questionarem a sua sanidade mental e colocá-lo na Enfermaria nº 6, ala dos “loucos”. É uma narrativa muito fluida e ao mesmo tempo muito reflexiva. Destaquei diversos trechos dela e pretendo reler esse texto muitas vezes ao longo da vida.

O próprio Tchekhov disse uma vez como escrevia e desenvolvia os seus contos

Quer se queira quer não, a primeira coisa que a gente faz, quando escreve um conto, é cuidar dos seus limites: entre uma quantidade de heróis e semi-heróis, você escolhe apenas uma personagem, coloca essa personagem sobre um fundo e passa a desenhar e dar realce somente a ela, enquanto as demais são espalhadas sobre esse fundo, como moedas miúdas, formando algo parecido com a abóbada celeste: uma lua grande, em volta dela, uma porção de estrelinha bem pequenas”.

Assim, Tchekhov cria um desenvolvimento psicológico dos personagens mesmo em narrativas curtas, mostrando os costumes da época: ortodoxia religiosa, honra da mulher, no sentido de ser apenas uma figura de submissão, de santidade e de maternidade; a falta de liberdade da mulher em fazer suas próprias escolhas, sendo obrigada a realizar casamentos arranjados pelos pais, o que trazia uma grande infelicidade, que era sempre jogada para debaixo do tapete. Todas essas vicissitudes tão corriqueiras não apenas na Rússia como em qualquer outro lugar do mundo, são apresentadas em seus contos de forma simples, em meio à vida cotidiana dos personagens, que podem se um camponês, um frade, um boticário, um funcionário público ou qualquer outra pessoa comum. Em suas palavras:

O personagem deve ser Irônico (deixou claro que ao contrário do que acontece na narrativa ocidental – é possível uma épica genuinamente satírica), ambíguo (quando escrevo, eu confio inteiramente no leitor, supondo que ele mesmo acrescentará os elementos subjetivos que faltam ao conto) e sem pretensões a pregar verdades absolutas (eu acho que não são os escritores que devem resolver questões como Deus e o pessimismo, etc. O que cabe ao escritor é apenas representar quem, quando e em que circunstâncias falou ou pensou sobre o assunto. O artista não deve ser juiz de suas personagens e daquilo que dizem, mas tão somente testemunha imparcial

Brigas por heranças e religião, avareza, cobiça, inveja são os temas abordados no conto O assassinato, que me lembrou muito os documentários do ID, com um final de redenção, igual a Crime e Castigo. Através da religião, o assassino se arrepende e sente vontade de voltar a viver uma vida justa e reta. Neste caso, em Sacalina, não é possível. O sistema prisional da Rússia naquela época era muito rígido, com penas abusivas de prisão perpétua e serviços forçados. Ainda neste ambiente, o autor descreve sentimentos de melancolia e a paisagem campestre com maestria e beleza.

Outra presença garantida em suas histórias são os sentimentos humanos universais e atemporais: o quanto nossas ações impactam na vida do outro? Quando ser severo com alguém e quando ser condescendente? O que vale mais? A tolerância e a compaixão ou a severidade e o castigo? O mendigo, conto muito impactante e reflexivo, traz em seu enredo um advogado que tenta dar uma lição em um pedinte que a cada encontro inventa uma história triste para lhe pedir esmolas. Cansado de observar essa situação, o protagonista lhe oferece um trabalho e essa oferta muda totalmente a vida desse mendigo. Este conto é um verdadeiro “nocaute literário” nas palavras da Isa Lubrano.

Nos contos A mulher do farmacêutico e A corista temos mais uma vez a situação da mulher no mundo, o seu apagamento, silenciamento, subalternidade, impossibilidade de escolhas e divisão entre as “honradas” e as “da vida”.  Esses contos são bastante conhecidos e figuram em praticamente todas as coletâneas de Tchekhov justamente por tratarem sobre temas tão importantes e fundamentais ainda nos dias atuais. Em A mulher do farmacêutico, temos uma jovem senhora que é casada e explorada por um homem muito mais velho que ela e que, passa todos os seus dias presa em um Botica, trabalhando enquanto o marido dorme. Fica implícito no conto que essa moça deseja ardentemente um outro estilo de vida, talvez uma redenção, uma salvação ou apenas uma oportunidade de ir embora desse lugar, abandonando uma vida sem sentido. A importância dessa história simples e curta é que ela representa a vida de muitas mulheres pelo mundo a fora.

Já em A corista temos como protagonista uma prostituta que tem um caso com um homem casado e é procurada pela esposa desse homem, lhe cobrando os “presentes” que o marido lhe deu. A esposa adota uma postura rígida, grosseira, cheia de julgamentos e preconceitos contra a corista e, esta por se sentir bastante diminuída, acaba por ceder e lhe entregar todos os seus bens (objetos esses que nem foram presentes do marido da “nobre” senhora). O final deste conto é muito impactante no sentido de nos fazer refletir sobre as nossas hipocrisias, em como somos ridículos e nos julgamentos sem precedentes que fazemos sobre as pessoas. Infelizmente, essa divisão entre mulheres de bem e mulheres da vida ainda é muito comum em 2022, século XXI, mais de cem anos após a escrita dessa narrativa de Tchekhov. O que nos mostra que pouco mudamos e que evoluímos apenas em ciências e tecnologia, porque em matéria de alma e conduta, continuamos os mesmos homens das cavernas.

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