crítica

Entre amigos – Amós Oz

Depois de ler a biografia do Tolstói, o livro de ensaios O ponto zero da revolução da Silvia Federici e De amor e trevas do próprio Amós Oz, fiquei bastante tentada em ler Entre Amigos (Cia das Letras, 2016), que conta histórias sobre a vida no Kibutz – “comunidades democráticas voluntárias israelenses onde as pessoas vivem e trabalham em conjunto para produzir economicamente. São baseadas nos princípios da igualdade social e da propriedade comunal” (Site Israel Land of creation). Para quem ainda não sabe, Amós Oz viveu em um kibutz dos 14 aos 40 anos, contribuindo para a comunidade e experienciando situações muito relevantes para a construção do seu pensamento, de suas ideologias e de suas escolhas de vida.

Amós Oz foi um escritor israelense muito profícuo, ativista político, defensor da paz e da dignidade humana. Bastante conhecido mundialmente, deixou uma vasta obra entre romances, contos e ensaios, escritos onde ele dialoga com o leitor, levando-o sempre à reflexão sobre a condição humana, os sentimentos e ações inerentes ao homem e as possíveis razões para tantos conflitos que acontecem no mundo inteiro, motivados pela inveja, pelo ódio, pelo fanatismo e pela falta de humor.

Entre Amigos pode ser compreendido como um conjunto de contos que dialogam entre si, onde os personagens transitam de uma história à outra. Há uma sequência de ações e assim, o leitor consegue saber mais sobre o desfecho dos protagonistas dos contos anteriores. O tema em comum é a vida no kibutz. Baseado em sua experiência nessas comunidades israelenses, o autor descreve com maestria a história de muitas pessoas, algumas que escolheram estar ali, enquanto outras, não escolheram essa vida, mas estão lá por algum motivo. As regras de um kibutz são apresentadas de forma orgânica e assim o leitor não tem dificuldades em compreender como funciona tudo por ali e como se dão as dinâmicas da convivência diária.

Viver em um kibutz basicamente é abrir mão de todas as suas vontades individuais em prol da coletividade. Nestas comunidades fechadas, existem casas familiares e outras acomodações coletivas. Assim, pessoas solteiras ficam nas acomodações e casais, em suas próprias casas. Ninguém tem a posse de nada no kibutz: tudo é de todos. As tarefas são feitas em rodízio, todas elas. Assim, a cada período um mesmo indivíduo passará por diferentes atribuições, tais como cuidar da horta, alimentar os animais, construir cercas, fazer reparos simples, cozinhar, lavar, cuidar das crianças, fazer a ronda noturna, garantindo a segurança do local, etc. Há aqueles que são especializados em determinadas profissões que exigem formação ou habilidade, tais como médicos, veterinários, sapateiros, farmacêuticos, engenheiros, professores, dentre outros.

As crianças vivem na escola comunitária: pela manhã, vão para suas casas ver os pais um pouco, depois cumprem a sua jornada de estudos, voltam para casa dos pais à tarde, tomam banho, jantam e voltam para a escola para dormir. Esse é um dos pontos de maiores conflitos dentro dessas comunidades: algumas pessoas são a favor da educação coletiva, ou seja, as crianças do kibutz pertencem à comunidade e não aos seus pais. O argumento dos fundadores baseia-se no fato dessas crianças representarem o futuro do kibutz. Elas serão a força de trabalho no futuro e se passarem a ser educadas de forma individual, em pouco tempo, os kibutzim não existirão mais. Afinal, a sua essência está na negação dos desejos individuais em prol dos coletivos.

Existem as lideranças dentro da comunidade que são responsáveis pela organização do lugar e também pela distribuição de tarefas. Porém, as decisões maiores são tomadas sempre em conjunto, através de deliberações e votações do conselho, que é constituído por membros mais antigos da comunidade, junto a alguns mais jovens que se destacam de alguma maneira por seu ativismo ou interesse na manutenção do kibutz. Essas comissões decidem por exemplo se um jovem pode ou não estudar fora para cursar uma faculdade e qual o curso ele fará. Tudo isso acontece porque como já mencionado antes, as pessoas que optam em viver no kibutz não devem se ater aos seus desejos individuais, mas sim aos coletivos. Então, se a comunidade vai custear os estudos de um jovem, esse investimento deve trazer algum retorno para o bem comum, para o kibutz e não para essa pessoa como um indivíduo.

Como também já apontado antes, a permanência na comunidade é voluntária. Muitas crianças nascem em um kibutz e depois resolvem sair de lá e viver no vasto mundo. Ninguém é impedido de deixar a comunidade, porém, é obvio que os integrantes do local tentam de todas as formas convencer a pessoa a ficar. Quando um jovem alcança a maioridade e termina os estudos escolares, ele é designado para o rodízio de tarefas comuns por três anos. Assim, os líderes podem observar em quais áreas essa pessoa se identifica mais para quando chegar o momento decisivo de escolher uma profissão ou decidir por estudar ou não, esses conselheiros podem orienta-lo de acordo com as suas observações. Muitos jovens não aceitam esses três anos de imersão nas tarefas do kibutz e assim optam por ir embora de vez. Enquanto outros, já adaptados com essa vida, permanecem ali e seguem o seu destino.

Mostrando essa dinâmica de vida em comunidade, parece mágico e fácil e atraente e perfeito. Porém, na prática não funciona assim. Nas palavras do próprio Amós Oz, “O kibutz muda um pouco as disposições da sociedade, mas a natureza humana não se modifica, e essa natureza não é fácil. Não se pode abolir de uma vez por todas a reles inveja e a mesquinhez numa votação de instituições do kibutz” (OZ, 2016, pág. 122). E dessa forma, pode-se compreender que conflitos existem e em grandes quantidades nessas comunidades criadas com o objetivo de auxiliar a criação do Estado de Israel. Em hebraico, kibutz significa grupo e isso mostra que a sua intenção é boa, firme e honesta, porém, com o passar do tempo e as mudanças ocorridas no mundo desde então, muita coisa dessa essência pura da ideia do kibutz se perdeu.

Entre Amigos é composto por oito histórias de pessoas que vivem em um kibutz. Cinco delas me marcaram profundamente e vou comentar um pouquinho com vocês a fim de refletirmos sobre a vida e sobre as pessoas. O primeiro conto que me chamou a atenção chama-se Duas mulheres. Conhecemos aqui um casal que está se separando e quando o marido se despede da esposa, sendo totalmente franco com ela em relação ao seu novo affaire, ela bastante preocupada com a saúde e as assincrasias do seu ex, escreve um bilhete para a nova esposa dele, dando algumas dicas sobre como lidar com o companheiro, alimentos que deve evitar e os remédios que precisa tomar. Achei esse ato tão tocante e sensível, que talvez, ele represente a alma de um kibutz, de uma abnegação total da individualidade em prol do outro. É um forte exemplo de altruísmo e de bondade, sentimentos que estão faltando no mundo há muito tempo.

O conto que dá nome ao livro, Entre Amigos, conta a história de Nahum, um homem muito sofrido, que tem apenas uma filha viva. Ela é bastante querida na comunidade, mas logo que sai do exército, resolve morar com o seu antigo professor, uma figura que aparecerá em várias outras histórias dessa antologia. Nahum é incitado pelos colegas do kibutz a “fazer alguma coisa” pois “um cara muito mais velho pegou a sua filha e a levou para a casa dele”. Nahum acredita que o amor é livre, uma das grandes bases do kibutz. Mas, por outro lado, sente um enorme constrangimento em ver sua filha sendo falada, criticada por todos como se tivesse feito algo muito errado. Sua grande questão em relação a tudo isso foi a forma como as coisas aconteceram: ela nem contou para ele que iria morar com o professor de má reputação. Neste conto, percebemos uma característica muito forte do kibutz: as pessoas não se tocam. Na verdade, elas têm uma certa ojeriza ao contato físico com as outras. Os sentimentos são guardados e nunca manifestados, as relações familiares são frias, distantes e impessoais. Isso me impressionou muito. Principalmente pela forma como o autor descreve essas situações: de forma sensível, mostrando que mesmo quando as pessoas não estão demonstrando o que sentem, elas sentem alguma coisa. História belíssima, de uma profundidade enorme e cheia de camadas para discussões.

No conto Pai, além de recebermos várias indicações literárias, acompanhamos Moshe, um jovem que está indo visitar o pai doente no hospital. Ele deixa o kibutz em um final de semana com o objetivo de ver o pai, mas, o seu trajeto é marcado pelas reflexões que ele faz através das coisas que vê na estrada e dos livros que lê. “A partir do que lia nos livros ia chegando cada vez mais à simples conclusão de que a maioria das pessoas necessita de mais afeto do que aquele que podem obter” (OZ, 2016, pág. 48).

Moshe é apaixonado por uma garota do kibutz, mas mantém esse sentimento em segredo. Os dois conversam bastante e esses diálogos o ajudam em suas considerações. Sua tarefa atual na comunidade é cuidar das galinhas do aviário e assim, ele tenta individualizar esses animais: “E veja-se que não há nem nunca houve duas galinhas que fossem exatamente iguais uma à outra. Para nós elas parecem todas a mesma coisa, e na verdade diferem uma da outra tanto quanto os homens ou as mulheres diferem entre si, e desde a criação do mundo ainda não nasceram duas criaturas exatamente iguais” (OZ, 2016, pág. 50).

Podemos interpretar esse questionamento de Moshe como uma crítica à coletividade do kibutz ou como as suas elucubrações o levam a questionar a sua individualidade. É evidente que o rapaz está em dúvida e, ainda confabulando sobre as galinhas, ele mostra a dificuldade que um indivíduo que nasceu em um kibutz encontra em sair de lá:

Já havia alguns meses que Moshe tramava abrir um dia uma das gaiolas às ocultas, tirar uma galinha, só uma (…)e libertá-la do lado de fora do kibutz. Mas o que faria uma ave abandonada na amplidão dos campos? À noite viriam os chacais e a fariam em pedaços” (OZ, 2016, pág. 51).

A metáfora das galinhas mostra o seu imenso desejo de tentar a vida no lado de fora, mas existe o medo de não saber como agir na sociedade capitalista e individualista. Além disso, seu pai é um dos pioneiros do kibutz e seria, de certa forma, uma traição a ele sair da comunidade e abandonar seus ideais e suas tradições. Moshe é um garoto muito inteligente e questionador. Sua história, assim como todas as outras contidas nesse livro, é narrada de forma magistral, com muita sensibilidade, contendo em uma narrativa curta de menos de 20 páginas, reflexões, um ápice, mas sem perder a fluidez e duas descrições fortíssimas de acontecimentos simples, banais, porém, imersivas, profundas e muito, muito tristes. Acho que esse foi o meu conto favorito dessa antologia.

Em Um menininho, conhecemos mais uma família infeliz, onde as pessoas mal se falam e não possuem nada em comum. Desse casal, onde o pai Roni é bastante extrovertido e brincalhão e sua esposa é o contrário disso, nasceu Iuval, um menino triste, solitário e cheio de problemas de relacionamento com os colegas. Enquanto o pai tenta lhe dar afeto e atenção, fortalecendo a sua autoestima, a mãe faz o contrário: bate nele, ofende e procura educa-lo com uma rigidez tamanha, que chega aos maus-tratos. Sua vida na escola é complicada. Nem os colegas e nem os professores gostam dele e assim, o tratam com diferença – em um local onde a igualdade é um dos seus mais fortes pilares.

Em uma noite, Iuval apanha muito na escola durante a noite e nenhum dos responsáveis faz nada. Ele acaba fugindo e indo para sua casa. Roni não suporta a situação e vai à forra, chegando às vias de fato com uma das crianças. Sua atitude não passa incólume pelo conselho do kibutz: ele perde o direito de se aproximar do filho, é colocado para fora de casa e sua vida passa a ser comentada no kibutz, assim como ele sempre fazia com a dos outros. É errado fazer comentários vis sobre os outros, porém, no caso dele, é revoltante saber que o bullying acontece nessas comunidades e nenhuma punição é aplicada aos responsáveis. Isso mostra uma das grandes falhas do sistema e principalmente, coloca em xeque a reponsabilidade daqueles que estão cuidando do futuro da instituição. Conto fortíssimo, escrito de forma impecável, transmitindo ao leitor sentimentos conflitantes, de repúdio e de solidariedade. Amós Oz realmente foi um exímio escritor.

O último conto da antologia chama-se Esperanto e sua função parece ser mesmo trazer algum tipo de esperança ao leitor. Fazendo um paralelo com a história da Torre de Babel, o narrador mostra que a nossa dificuldade em escolher as palavras que usamos e a forma como nos expressamos é a principal causa dos males da humanidade. Temos como protagonista desse conto um sapateiro do kibutz que está prestes a morrer. Ele passou por muitas experiências terríveis durante a Segunda Guerra Mundial e reflete um pouco sobre isso:

O homem é basicamente bom e gentil e honesto e é só o ambiente que nos corrompe. (…). Durante a guerra eu me escondi dos nazistas, mas várias vezes eu os vi bem de perto. Rapazes simples, de maneira alguma monstros, um pouco infantis, barulhentos, gostavam de fazer piada, tocavam piano, davam de comer aos gatinhos, só que tinham passado por uma lavagem cerebral. Foi só porque tinham passado por uma lavagem cerebral que fizeram coisas terríveis, apesar de pessoalmente não serem terríveis, e sim estragados. Ideais corrompidos os estragam. (…) a crueldade é mais disseminada no mundo que a compaixão, e às vezes a própria compaixão é uma forma de crueldade” (OZ, 2016, pág. 127)

Creio que não há forma melhor de finalizar essa resenha senão com esse trecho tão potente e tão reflexivo do autor. Livros como Entre Amigos servem para abrir a nossa mente e nos fazer pensar em quem somos e principalmente, em quem queremos ser. Recomendo demais essa leitura a todos.

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