O livro enviado pela TAG Inéditos no mês de março trouxe uma temática perturbadora e uma proposta ousada: duas amigas íntimas se veem em uma situação desesperadora quando a filha de uma acusa o filho da outra de estupro. Uau!! É de tirar o fôlego somente por ler essa premissa. Mas então começamos a pensar em como ela vai desenvolver algo tão complexo para que o livro não se transforme em um desserviço. E não é o que acontece aqui.
O leitor acompanha a história, que se passa em uma cidadezinha próxima de Londres, através das vozes de duas mães, Holly e Jules. As duas são amigas desde a época da faculdade, “madrinhas” dos filhos uma da outra e confidentes. Após a morte do marido e a dificuldade em superar o luto, tanto por parte de Holly quanto do filho Saul, Jules a convence a se mudar para a cidade onde mora com a família, a fim de recomeçarem e estarem mais próximas fisicamente.
Os problemas de Holly começam quando Saul não se adapta ao local e passa a ser conhecido como o “esquisitão” da escola. O garoto é julgado pelos colegas e também pelos moradores da cidade por não se enquadrar no padrão considerado “normal” para rapazes de 16 anos, o que leva a mãe a um dilema muito grande, questionando até que ponto foi bom se mudar para o interior. No entanto, Holly segue ministrando suas aulas na faculdade e em paralelo, oferece oficinas e palestras sobre a conscientização em relação aos direitos das mulheres, tentando romper a cultura do estupro e ajudar as vítimas. Por isso, é sempre achincalhada nas redes sociais e desrespeitada por aqueles que não veem sentido em seu trabalho voluntário.
Jules é uma mulher tradicional, casada com um homem bastante agressivo, que costuma ter acessos de raiva e precisou fazer terapias para controlar esses rompantes e continuar vivendo em sociedade. Eles são pais de Saffie, uma garota de 13 anos, bastante desenvolvida fisicamente para a sua idade e muito popular em sua escola. Através do ponto de vista de Jules, é perceptível ao leitor a superficialidade da vida que levam, o valor que dão ao dinheiro e aos bens materiais e principalmente, à reputação deles na cidade.
Neste cenário, Saul é acusado por Saffie de violenta-la em seu quarto, em um momento que as mães não estão presentes e que voltaram para casa tarde da noite, depois de beberem algumas taças de vinho. Tudo isso é importante para o que vem depois, porque a autora costura todas as pontas do romance com esses detalhes que parecem desimportantes, mas que serão fundamentais para o desenrolar dos acontecimentos. Na cabeça de Saffie, as duas amigas vão resolver toda a questão sem maiores dramas e ninguém mais ficará sabendo de nada. Mas, não é bem isso o que acontece.
Por mais que Holly acredite na inocência do filho, ela precisa acreditar também na menina que viu crescer e principalmente ser coerente com os seus princípios. Então, mesmo em uma situação desconfortável, ela questionará o filho, isso depois de desacreditar a palavra de Saffie para Jules, o que a deixa enlouquecida de raiva. Ao ser questionado e perceber o clima tenso em casa, Saul desaparece e a partir daí o leitor é tragado para uma trajetória de sete dias no inferno com essas duas mulheres.
Existem duas leituras para esse texto: a feita por mães e outra por não mães. Percebo que aqueles que não têm filhos focam a leitura no estupro em si e na solução desse acontecimento. Geralmente, esse público se solidariza com Jules, assim como a população da cidade toda também. Já as mães, se identificam e sofrem muito com a Holly. Não estou afirmando que o sofrimento da Jules era falso ou menor. Até porque, tenho uma filha de 14 anos e não imagino o que eu sentiria e faria se ela fosse violentada. E é aí que a autora acerta em cheio: todas as atitudes dos personagens são muito verossímeis, são atitudes que qualquer um de nós em situações parecidas poderíamos ter, dependendo do nosso grau de envolvimento com o ocorrido.
Porém, ela não para por aí. Hancock vai solucionar o caso de estupro sem julgar os envolvidos, ela não criou aqui nenhum tipo de herói, todos são falíveis, afinal, todos são humanos. Os eventos possuem justificativas para terem acontecido como aconteceram e o principal: o que ela nos apresenta a partir dessa acusação são as pessoas como elas são. A partir dessa premissa, os demônios de todos os personagens virão à tona e eles se mostrarão. O título do livro é bastante perspicaz em nos mostrar que não conhecemos por completo as pessoas com as quais convivemos e apenas em momentos de muita dor, elas se mostrarão.
Outro ponto abordado pela autora é a cultura do cancelamento. Ela mostra claramente como somos capazes de emitir julgamentos, opiniões e sempre parecemos saber mais que todas as pessoas. A falta de empatia, a facilidade em condenar os outros é instantânea, sendo algo que precisamos tomar cuidado porque um dia, quando talvez estivermos nesse lugar, seremos julgados com a mesma severidade. A maternidade é outro assunto muito explorado por Hancock. Tanto Holly quanto Jules se culpam por tudo o que aconteceu, se questionam o tempo todo onde erraram e o que deixaram passar. Como não perceberam seus filhos e tantas outras culpas que carregam ao longo da narrativa.
O que mais me arrebatou nesse livro foram os dias que sucederam o desaparecimento de Saul até o desfecho da história. Como mãe, senti muita empatia por Holly. O desespero dela sem saber onde está o filho, em uma cidade estranha, onde não tem amigos e que aos poucos todos a abandonam. O sofrimento dessa mulher chega a ser palpável, é possível sentir a tensão dessa mãe em cada página do romance. Jules sofre muito também, mas de forma diferente. Sinceramente, mesmo sendo mãe de menina e entendendo o suplício de ter uma filha violada, eu não consegui me conectar com a Jules e compreender cem por cento de suas atitudes. Mesmo em meio a tanta dor, ela ainda me parecia muito superficial e preocupada com as aparências. Porém, esta é a minha leitura. Vi que muitas pessoas compraram mais o posicionamento da Jules por ela ser a mãe da vítima.
Os personagens são todos extremamente bem construídos, verossímeis e críveis do início ao fim. São todos complexos demais, cheios de defeitos, frustrações, segredos, medos e conflitos. Apesar de ter simpatizado com a Holly, não a defendo de todo. Ela tem inúmeros defeitos, não aceitava que o filho poderia ser um predador sexual e sempre fugia dos conflitos e da dor ao invés de resolve-los. Destaco aqui a construção da Saffie, que a partir do meio para o fim do livro, ganha contornos de uma jovem comum, uma criança em um corpo de mulher e que não sabe lidar com isso.
Esse foi um livro que me prendeu do início ao fim. O ritmo de leitura é rápido, os capítulos são médios, intercalados entre a Holly e a Jules, sendo que a Holly tem mais espaço para contar a história, o final é satisfatório e a obra cumpre aquilo a que se propõe. É importante destacar que o enredo não é o estupro, mas o conflito entre as duas mulheres a partir da acusação e o desenrolar da história. Dentro desta premissa, o livro é bem fechado e levanta diversas reflexões no leitor e pontos para debates. Ótima opção para grupos de leituras coletivas, pois o que não faltam são temas para conversar sobre.