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Fazendo as pazes com o passado

Imagine que você foi agraciado com uma nova chance. Daquelas saídas direto dos filmes de ficção científica, onde você pode entrar na máquina do tempo e alterar aquele momento da sua vida onde tudo desandou, onde as coisas deram errado. Esse é um tema muito recorrente no imaginário popular, pois todos nós, em algum momento, desejamos ter essa possibilidade. Geralmente, apelamos à essa opção quando a vida está ruim, tudo está dando errado e devido à nossa dificuldade em lidar com os problemas, recorremos ao passado como culpado de tudo.

Por outro lado, quando a vida vai bem, o emprego está ótimo, a família também, nos sentimos confortáveis com a nossa existência, raramente pensaríamos em alterar nosso passado. Afinal, ele nos trouxe até aqui. Se por acaso entrássemos nessa máquina do tempo, é provável que mudaríamos algum fato específico, uma escolha que hoje consideramos fundamental e que foi ruim ou mudaríamos o pior dia de nossas vidas, algo relacionado à tristeza, dor e sofrimento. Mas será que essa mudança seria a solução dos nossos problemas todos? Porque se pensarmos bem, depois de uma escolha malsucedida, vêm outras que podem ter o mesmo impacto no nosso presente.

O conceito de cancelar ou de apagar fatos ruins do nosso dia a dia é muito quimérico, prova disso é a abordagem do escritor Aldos Huxley em seu livro Admirável Mundo Novo (Biblioteca Azul, 2014), onde todos eram felizes, mas essa felicidade não bastava, não era real. Assim como observamos também no filme Click (Columbia Pictures, 2006) onde o protagonista acelerava todos os momentos fastidiosos ou tristes do seu cotidiano, perdendo toda a vida e se transformando em um homem solitário, doente e infeliz. Ou no filme Show de Truman (Paramount, 1998) que retrata um reality show sobre a vida de um homem real que nunca saiu de um estúdio desde o seu nascimento. Desculpem o spoiler, mas, esse é um filme antigo e creio que a maioria conhece. Essas reflexões servem para nos mostrar que os sofrimentos fazem parte da nossa jornada e nada que fizermos vai nos poupar deles.

É a partir dessa premissa que Stephan King, através de uma abordagem histórica muito bem-feita, construiu seu livro Novembro de 63 (Suma, 2013). Nesse romance o escritor conta a história do professor Jake Eppin, um homem comum, solitário, com uma vidinha organizada, mas que sonhava em ser escritor e que recebe a missão de voltar no tempo e impedir o assassinato de John Kennedy. Em sua jornada, acompanhamos o protagonista vivendo em um tempo diferente do seu, já sabendo o que o futuro reservava, sem poder contar nada disso a ninguém. Nesse novo mundo ele reaprende a viver sem tantas tecnologias, convivendo mais com as pessoas, realizando ações que em sua vida real ele nem pensaria em realizar, se apaixonando por uma mulher muito sofrida, mas uma das melhores personagens criadas pelo King.

Além de todas essas vivências, Eppin vai tentar “ajudar” algumas pessoas que ele conhece no presente e que passam por sofrimentos, problemas que ele considera injustos. Utilizando de seu poder para modificar o passado, ele interfere em muitas vidas e isso traz consequências funestas para os envolvidos. Até mesmo a morte de John Kennedy, quando impedida, se transforma em uma desgraça no futuro. Ou seja, a mensagem que King nos deixa através desse livro maravilhoso é a de que por mais que modifiquemos as coisas, outras piores podem nos acontecer. Os sofrimentos fazem parte da vida e na verdade, cada um de nós está exatamente onde deveria estar. Nada deve ser modificado.

Paul Auster, contemporâneo de King, aborda esse mesmo tema de outra forma, mas deixando uma mensagem parecida. Em seu livro 4321 (Cia das Letras, 2018), o escritor apresenta quatro possibilidades de vida para um mesmo personagem, Archie Ferguson. A diferença é que, quem toma decisões diferentes é o seu pai, Stanley Ferguson. A partir dessas quatro escolhas, o autor conta a vida do personagem desde a infância até a idade adulta, passando por diversas situações diferentes, porém, convivendo com as mesmas pessoas centrais. Suas experiências em cada vida são muito parecidas, mudando a forma como ele reage diante da dor, as bases para escolha de faculdade, os relacionamentos com as pessoas, a forma como lida com o dinheiro e o modo de encarar a vida.

Esse romance de Auster, que podemos dizer contém quatro narrativas dentro de uma, é extremamente reflexivo e nos mostra o quanto as nossas escolhas interferem na vida dos outros. Assim como em Novembro de 63, quando tomamos decisões baseadas em nossas vivências e nestas incluímos outras pessoas, transformamos suas vidas, às vezes, de forma irreversível, sem considerar o que elas queriam de verdade. Em um diálogo do romance de King, um dos personagens questiona Eppin sobre a sua decisão de modificar o passado sem consultar os envolvidos. Para o professor aquela era uma decisão brilhante, enquanto para o principal interessado não era nada bom.

Auster mostra de forma magistral que a vida de Ferguson não seria tão diferente com alterações no passado. Ele conviveria com as mesmas pessoas, seria filho do mesmo casal, teria um relacionamento complicado ou melhor, ausente, com o pai nas quatro vidas, se envolveria romanticamente com Amie, sofreria por sua causa e passaria por todo o turbilhão político da década de 1960, se envolvendo direta ou indiretamente dependendo do caso. Não vou dizer mais sobre as quatro vidas de Archie aqui antes que eu acabe dando spoilers sobre o livro.

Já em Novembro de 63, King aborda a questão de que os sofrimentos fazem parte da vida e que de uma forma ou de outra eles vão acontecer. Quando fazia uma alteração no passado, esta abalava a vida de várias outras pessoas que ele nem conhecia e na maioria das vezes, essas mudanças eram para muito pior: se impedia um acidente com consequências superáveis, outra tragédia muito maior acontecia depois, sem que ele soubesse, não podendo evitar e que levaria essa pessoa em questão a sofrimentos muito piores.

Vista dessa forma, a viagem no tempo e a possibilidade de alterar o passado não são nada legais. Elas trariam muito mais dor para a humanidade que a consciência de viver bem o presente para evitar futuros arrependimentos. Sob outra perspectiva, a interferência no passado é bastante desigual e egoísta. Até mesmo quando achamos que estamos pensando no bem do outro, estamos na verdade preocupados com o nosso próprio bem-estar. O que realmente precisamos é aceitar as coisas da vida, nos sentirmos gratos pelo que temos e fazer as pazes com o nosso passado.

Em uma reunião na escola de minha filha, o coordenador dela disse uma coisa que guardei para a vida. Ele se referia aos rompantes da adolescência e me lembrou que nós não nascemos com quarenta anos. Ou seja, para termos a maturidade que consideramos ter hoje, precisamos ser crianças, adolescentes, jovens adultos e finalmente adultos. Em cada fase, fizemos nossas bobagens, dissemos coisas agressivas aos outros, falamos pelos cotovelos, não demos a devida atenção às pessoas que gostamos, terminamos relacionamentos que poderiam ter dado certo, escolhemos o curso universitário errado (ou não) …. Fizemos e acontecemos. E o resultado somos nós. Então porque brigar tanto com o passado? Precisamos ser mais gentis com o nosso eu do passado para que ele nos deixe em paz e, gerenciar o nosso eu do presente para que ele não destrua vidas e as chances dos outros.

Sempre me questionei se minhas escolhas eram egoístas ou se eram altruístas, coletivas. Penso que em sua maioria são individualistas sim, infelizmente. Mas, procuro repensar e mudar isso todos os dias. Na verdade, acho que a nossa sociedade está muito adaptada ao antropocentrismo. Então, para nós é natural agir pensando em recompensas e méritos totalmente pessoais. Quando nos deparamos com pessoas que não agem assim, nos assustamos porque nos causa estranhamento. Outro dia, ouvindo um podcast do Mamilos, escutei um pastor dizendo que a nossa relação com Deus é de troca. Que o tratamos como se fosse um pai, ou um chefe. Para começar, nos dirigimos a Ele quando precisamos, depois tentamos barganhar nossos pedidos em troca de orações ou bom comportamento e por fim, quando não conseguimos a “graça”, nos voltamos contra Ele, como se fosse o culpado de tudo.

Ora, se agimos assim, como podemos pensar no próximo? A pandemia de covid-19 nos mostrou muito de nosso egoísmo. Cada pessoa pensava no seu mundinho, nas interferências em sua vida e não nas dos outros. Era mais ou menos como se o que fosse bom para mim, teria de ser para os outros. Assim, mesmo com várias pessoas morrendo, os hospitais lotados, os médicos suplicando colaboração, víamos os bares lotados, festas clandestinas, pessoas circulando sem máscaras na rua, aglomerações de todos os tipos. E quando questionadas, essas pessoas diziam: “ah, não estou aguentando mais ficar em casa”; “estou com depressão e ir ao bar me ajuda um pouco”; “você conhece alguém que morreu de covid”?

Toda essa digressão é para dizer que, pensando muito bem, mudar o passado é uma atitude egoísta e sem méritos para o todo. Sem as dores do dia a dia, não crescemos. Se optarmos por acelerar todos os momentos bobos e chatos de nossa vida, não vamos viver nada. As pessoas morrem. Algumas cedo demais e outras mais tarde e temos que aceitar isso. O que não podemos fazer é deixar para estar com elas segundos antes de morrerem. Por que nesse caso, é tarde demais. Alterar o passado não vai nos impedir de errar novamente e para quem acredita em destino, se algo tem de nos acontecer, vai acontecer de qualquer jeito, independente do que fizermos para detê-lo. Então, nos perdoemos, acreditemos ter feito o que podíamos fazer naquele momento e vamos deixar a vida acontecer, fazendo parte dela e repensando sempre nossos conceitos e escolhas.

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