crítica

Felicidade demais – Alice Munro

Felicidade demais (Cia das Letras, 2010) é uma antologia de 10 contos da autora canadense Alice Munro, onde conhecemos as histórias de mulheres comuns e sem ligação umas com as outras. Porém, têm em comum o fato de em algum momento de suas vidas tomarem alguma decisão que mudará tudo para sempre. Munro deixa no leitor um certo incômodo, pois, aqui, ela vai expressar os sentimentos que procuramos guardar, que não queremos que alguém saiba que sentimos ou mesmo que não compreendemos bem o que é. A busca pela felicidade é o tema dessa coletânea e o ponto de convergência entre as personagens construídas pela autora. Mulheres cheias de diversidades, mas com alguma coisa em comum.

O primeiro conto do livro, Dimensões, conta a história de uma protagonista que vive em um relacionamento abusivo com o marido. Depois de se aproximar da mãe de uma colega de sua filha, as coisas saem do controle e a tragédia é iminente. No segundo conto, Ficção, encontramos uma professora que tem uma vida estável até que em uma tentativa de ajudar o próximo, tudo se modifica e ela precisa recomeçar. No conto Wenlock Edge, a autora apresenta uma narrativa insólita e próxima ao absurdo, mas que prende o leitor do início ao fim. Este é um dos contos mais perturbadores da antologia pois permite várias reflexões sobre a vida, sobre a maneira que enxergamos o outro e a nós mesmos. É também um paradoxo entre aquilo que fazemos realmente e o que queremos fazer de verdade.

Buracos profundos vai nos levar à reflexão sobre a fragilidade da vida, assim como Radicais livres, que mostram como tudo pode acontecer e mudar de repente. Ninguém está seguro, nada é certo o bastante para nos deixar relaxados. Munro discute bastante nesses contos a importância de estar atento, no sentido de viver da melhor forma possível, não sair de casa brigado com seus familiares, não deixar para demonstrar afeto no final da vida. São histórias curtas, mas cheias de significado e de mensagens ocultas nas entrelinhas. O que faz da autora uma mestra na arte de escrever pouco e falar muito, deixar que o leitor subentenda o que ela não disse. As interpretações abertas propostas por Munro são incríveis, constituindo um dos diferenciais de sua obra.

 Para os leitores que não gostam muito de enredos psicológicos, a autora nos presenteia com o conto Rosto, um dos mais impactantes da coletânea. Temos aqui um garoto que nasceu com uma mancha na face. Fica clara a forma como os pais não lidam com o assunto, preferindo ignorar o fato a enfrenta-lo. Até que a criança conhece uma amiguinha que mora em uma casa nos fundos da sua. E dessa forma, ele é obrigado a se enxergar de verdade, se olhar no espelho e ver o que ninguém queria lhe dizer. O conto é muito forte e contundente. Porém, Munro não nos decepciona e conta tudo isso com uma leveza ímpar, com uma sutileza que é impressionante e sem julgamentos.

Algumas mulheres é uma história que pode ser interpretada de diversas formas. A narradora é uma garota jovem, que está trabalhando como secretária em seu primeiro emprego. Sua função é auxiliar um doente terminal que vive com sua esposa, que trabalha o dia todo ministrando aulas na faculdade local e por isso, sua mãe se mudou para sua casa a fim de ajudar a cuidar do filho. A dinâmica familiar é razoavelmente tranquila até que entra uma massagista na história. Parece, a princípio, um conto clichê, mas está longe disso. A autora vai questionar criticamente (claro que cada um vai perceber isso à sua maneira, porque nada no texto de Munro é explícito) as tradições patriarcais e a “obrigação” da mulher de cuidar do marido, largar tudo para assistir o doente, além dos estereótipos criados ao longo dos anos sobre algumas mulheres mais extrovertidas.

Em Brincadeira de criança, o leitor é surpreendido no final do conto. A história é contada devagar, com algumas abordagens sobre o tema desenvolvido e não sabemos para onde ela está nos levando. O choque no final mostra como a narrativa é bem construída e verossímil, além de nos acompanhar por dias após a leitura. Madeira é um conto de ação, mas que mostra como uma distração ou uma desatenção pode causar um grande transtorno em nosso dia feliz. Munro vai abordar ainda a questão dos hobbies e do sentimento de escape que eles nos proporcionam e além disso, os hábitos das cidades pequenas, tais como o famoso “telefone-sem-fio” e as tradições cultivadas longe dos grandes centros urbanos. É um conto bastante bonito e muito simbólico.

Por fim, o conto que dá título ao livro é uma obra de ficção baseada em uma história real, da Sophia Kovalevsky, uma mulher russa que viveu na segunda metade do século XIX e deixou o seu país para estudar e trabalhar na França. Ela foi uma das primeiras mulheres que se tem notícia a ser admitida como professora universitária e sua área de estudos era a matemática. Munro pesquisou bastante sobre a vida dessa mulher incrível e com a autorização de sua família, escreveu um conto em sua homenagem, dando voz a alguém que estava esquecida e que poucos de nós ouvimos falar sobre.

Felicidade demais é um livro para ser lido devagar, para se refletir sobre ele e permitir que ele nos humanize. Para quem já leu Vida querida da autora vai conseguir fazer alguns links com as histórias desta antologia com os contos autobiográficos dela. Algumas mulheres desse livro me lembraram a mãe de Munro, no conto todo dedicado a ela de Vida querida. E o mais impressionante dessa obra é que cada leitor vai levar consigo algo diferente dela, através de suas vivências e experiências de vida. Isso me faz lembrar da Jéssica Mattos criticando escritores que explicam demais as coisas e não deixam espaço para o leitor ter a sua experiência com a recepção. Neste caso, para aqueles que gostam de subjetividade, lirismo, reflexão e muita abertura para interpretações, este livro é para vocês.

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