crítica

Feras de lugar nenhum – Uzodinma Iweala

Nesta narrativa em primeira pessoa, o escritor nigeriano Uzodinma Iweala, conta a história de Agu, um garoto que é obrigado a entrar para a milícia, sem saber porque e qual o motivo da guerra travada. Após perder o pai e ser brutalmente arrancado de sua casa, ele se vê em uma situação de miséria, dor e sofrimento que parecem não ter fim. A proposta do autor no livro Feras de lugar nenhum (Nova Fronteira, 2005) é discutir os conflitos étnicos ocorridos na Nigéria após a saída do colonizador de seu país. Ele conta através da voz de uma criança uma trajetória de dor, abuso e sofrimento. Logo no início do romance ele propõe uma reflexão sobre o que é ser soldado: se deve matar, quem se deve matar e porquê. Essa questão será o fio condutor da obra.

“Não sou um menino mau. Não sou um menino mau. Sou um soldado e o soldado que mata não é mau. Digo isso para mim mesmo porque os soldados têm que matar, matar, matar. Então se mato, só estou fazendo o que é certo. Fico cantando uma música para mim mesmo porque ouço muitas vozes na minha cabeça dizendo que sou um menino mau. Elas vêm de todos os lados, zumbido no meu ouvido que nem mosquitos, e cada vez que ouço essas vozes, sinto meu coração ficar apertado e meu estômago embrulhado. Então canto, soldado soldado. Matar, matar, matar” (IWEALA, 2005, p. 37).

Agu convive com as vozes em sua cabeça que questionam o tempo todo suas ações e os acontecimentos à sua volta, que para ele não fazem o menor sentido. Em meio a toda essa desgraça, o garoto relembra momentos de vivência com sua mãe e seu pai, que era professor. Ele relata trechos bíblicos, lidos por sua mãe e esse deslocamento da narrativa é uma característica do entre-lugar proposto pelo filósofo Homi K. Bhabha, que estuda o movimento diásporo e discute as questões humanas relacionadas a esse fenômeno pós-colonial.

“Ela lia para mim a história [de] como Caim matou seu irmão Abel, e como Deus visitou Abraão, e como Jonas viveu dentro do peixe. Ela também lia sobre como Deus fez Jó sofrer muito, mas recompensou ele no final, e como Davi matou Golias. Cada vez que ela lia uma história, eu ficava imaginando que estava lá vendo o exército todo de ouro e bronze brilhando ao sol e Golias rindo até Davi cortar sua cabeça. Ficava imaginando todas essas coisas enquanto ela lia e ficava querendo ser um guerreiro. Enquanto minha mãe lia, eu apontava para cada palavra e perguntava o que é isso, o que é aquilo, então ela me dizia e eu aprendia. Fazíamos isso todas as noites até minha mãe dizer, bom Agu agora chega. Meus olhos estão cansados” (IWEALA, 2005, p. 40)

Apesar de trazer conforto, o texto bíblico mostra uma passagem de morte, de conflito, que combina com a situação de guerra em que o protagonista se encontra. Essa reflexão proposta pelo texto, está relacionada à invenção da tradição, que de acordo com Ranger:

“As tradições inventadas importadas da Europa, ao mesmo tempo que forneceram aos brancos modelos de “comando”, deram também a muitos africanos modelos de comportamento “modernos”. As tradições inventadas das sociedades africanas, inventadas pelos europeus ou pelos próprios africanos, como reação – distorceram o passado, mas tornaram‑se em si mesmas realidades através das quais se expressou uma incrível quantidade de conflitos coloniais” (RANGER, 2008, p. 220).

O que para Agu é um mistério, nós podemos compreender como um conflito ideológico e uma tentativa de dominação que vem da colonização e desse processo de aculturamento das populações colonizadas. Dessa forma, existe uma tradição inventada, que foi imposta pelos ingleses aos povos nigerianos. A partir do momento em que não há mais um dominador comandando as comunidades e as tribos existentes no país, elas entram em conflito para tentar ocupar uma posição de poder na sociedade que está começando a se redescobrir como nação. E assim surgiram as milícias e qualquer tribo diferente é considerada como inimiga. A partir da visão cristã, Agu se vê como o “lado certo” e por isso deve defender o seu povo como um herói, um soldado. Ao passo que ele não se sente confortável em matar seus semelhantes por considerar este um pecado, ainda sob a ótica do cristianismo.

Também relacionado a esse pensamento eurocêntrico, o narrador se mostra subserviente ao seu comandante, pois foi essa a educação que ele recebeu. Dessa forma, suportava todos os abusos praticados por essa figura de autoridade e poder, independentemente de ser certo ou errado. Na concepção de Agu, que ainda é uma criança, alguém que detém o poder dá as ordens e os comandados obedecem. Entretanto, ele se sentia sujo e infeliz por ter de se submeter a ordens às quais não concordava e principalmente que estavam sempre carregadas de um enorme vazio de sentido e que entravam em conflito com a sua formação cristã.

No final da revolução, Agu é resgatado por um grupo de voluntários americanos que prestam assistência às pessoas que vivenciaram a guerra e que sofreram consequências desastrosas devido a esse conflito. Mais uma vez, temos aqui a presença de um salvador branco, que geralmente não compreende os sobreviventes de guerra, possuem diversas teorias e pré-conceitos sobre aquelas pessoas e aquela nação, estão cheios de boas intenções, mas, não conseguem coloca-las em prática de forma humana, sensível e verdadeira. Em um trecho do final do romance, Agu diz:

“E todos os dias eu converso com a Amy. Ela é uma mulher branca americana que vem aqui ajudar pessoas como eu. Seus dentes são muito pequenos e sua língua é muito grande então ela fala pelo nariz, mas seu nariz também é muito pequeno então às vezes é muito difícil entender o que ela está dizendo. Na maioria das vezes ela não diz nada e fica sentada numa cadeira na minha frente. Fica sentada numa cadeira e eu fico sentado noutra cadeira e ela fica sempre olhando para mim como se olhar para mim fosse me ajudar. E diz fala, fala e acha que eu não falo porque sou como um bebê. Se ela está achando que sou um bebê, então não estou falando porque os bebês não sabem falar. Mas toda vez que estou sentado com ela acho que eu pareço um homem velho e ela uma menininha porque lutei na guerra e ela nem sabe o que é uma guerra” (IWEALA, 2005, p. 185)

Tratá-lo como um bebê é uma forma de diminuir o outro, colocá-lo como dependente, alguém incapaz de caminhar com as próprias pernas. Agu responde na mesma moeda quando diz que ela parece uma menininha e não sabe o que é uma guerra. Há ainda algo bastante significativo nesse texto, que é a constituição física do rosto de Amy: nariz e dentes pequenos, fala anasalada. Esta é uma forma de mostrar que do mesmo modo que os americanos colocam os nigerianos como inferiores, para os nigerianos, os americanos são inferiores em algum sentido. O processo diásporo e as migrações são muito complexos e trazem muitas reflexões e questões para discussão.

A principal função das obras pós-coloniais é colocar em debate essas tantas questões citadas acima. Os pré-conceitos, os estereótipos, as tentativas frustradas de ajudar pessoas que não se conhecem, apenas por se colocar em uma situação de superioridade racial ou em um lugar dominante. Por mais que estudemos ou que busquemos informações sobre os conflitos étnicos na África, nunca vamos saber o que se passa por lá e como essas pessoas sofrem. Existe um sentimento de empatia por todos eles, entretanto, não é a mesma coisa que vivenciar essas desgraças e ser arrastado para um poço sem fundo, onde só existe a dor. Reconstruir uma nação devastada pela colonização é uma tarefa árdua e que leva muitos anos para se realizar. Apesar de todo esse contexto, Feras de lugar nenhum aborda os sentimentos humanos em tempos de guerra.

Segundo o escritor angolano José Eduardo Agualusa, o livro de Iweala dialoga diretamente com o brasileiro muito conhecido nosso Cidade de Deus de Paulo Lins. De acordo com o autor, são histórias de crianças que tiveram sua infância roubada pelas milícias, suas famílias assassinadas a troco de nada e que foram obrigadas a participar de uma guerra armada que não lhes dizia respeito. A última frase de Feras de lugar nenhum é extremamente impactante e reflexiva. O narrador diz: “Sou todas essas coisas, mas uma vez, já tive uma mãe, e ela me amava”.

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