opinião

Friends e seu fascínio eterno

O que leva uma série de TV a fazer tanto sucesso no mundo inteiro a ponto de impedir alguém de se matar? Qual é o limite tênue entre fantasia e realidade? Como unir seis indivíduos tão diversos em um único ambiente e criar uma história que dialoga com todo mundo, nos cinco continentes? Estou falando de Friends, série de TV norte-americana que foi ao ar entre os anos de 1994 a 2004, composta por 273 episódios e assistida na época de sua exibição por mais de 52 milhões de pessoas e exibida mais de 100 bilhões de vezes após a chegada dos canais de streamings. O enredo da sitcom é simples: seis amigos totalmente diferentes um do outro dividem apartamento em Nova York e compartilham suas alegrias e frustrações cotidianas, em meio a muito bom-humor e cenas hilárias, protagonizadas por Jennifer Aniston, Courteney Cox, Lisa Kudrow, David Schwimmer, Matthew Perry e Matt LeBlanc.

Porém, dentro desse contexto tão comum, eles conseguiram conquistar um público gigantesco e ainda hoje, quase 20 anos depois, prendem a atenção de jovens e adultos com suas histórias banais, mas que trazem um certo conforto, e principalmente, oferecem ao público algo crucial para o sucesso: identificação. Partindo da experiência individual de cada personagem, as histórias isoladas dos episódios tratam sobre algum tema universal, tais como gordofobia, bullying, competitividade exagerada, corrida em busca da fama e do sucesso, distúrbios alimentares, crises existenciais, depressão, frustrações, mercado de trabalho, assédio, feminismo, maternidade, preconceitos, expectativas versus realidade, sustentabilidade, dentre tantos outros temas importantes e que fazem parte do nosso dia-a-dia.

É fácil se enxergar em algum dos dramas dos personagens e essa característica, unida ao trabalho de direção, de elenco e principalmente à forma como temas tão sensíveis são tratados, com leveza, constituiu o sucesso estrondoso da série. Talvez eu, você e tantos outros já tivemos o nosso dia de Mônica competitiva/ obsessiva por qualquer coisa ou as dificuldades de Chandler em se relacionar com as pessoas; poucos de nós tivemos a oportunidade de crescimento pessoal como a Rachel ao passo em que vários indivíduos permanecem como são, assim como o Joey. É totalmente normal que tenhamos conflitos éticos e morais como a Phoebe ou que sejamos chatos e metódicos como o Ross.

Apesar de todas as identificações que sentimos como os personagens, saber um pouco sobre os bastidores nos ajuda a entender o sucesso estrondoso de Friends em um contexto maior que os estúdios de Hollywood: os seis amigos foram inspirados nas experiências pessoais e nos amigos dos produtores, que conseguiram fazer um recorte da vida de todos os indivíduos adultos, que é uma das mais importantes, quando estamos tentando encontrar o nosso lugar no mundo e engatar em uma carreira profissional. Eles dizem que essa é a “fase da vida onde os nossos amigos são a nossa família”. E essa ideia funcionou muito bem com aquele grupo de pessoas específico.

Ao ouvi-los contar sobre a escolha do elenco e as idiossincrasias de cada um deles, fica bastante óbvio que se fossem outros atores, poderia não ter funcionado tanto. Neste ponto entra algo sutil, mas poderoso que é o carisma de cada um deles, o que traz junto uma enorme responsabilidade sobre a vida das pessoas que muitas vezes não é mensurável. A produção do Reunion Friends 2021 ouviu fãs da série no mundo inteiro e alguns depoimentos me chamaram bastante a atenção. Uma pessoa disse que se não fosse a série, ela não teria superado a depressão; outra pessoa relatou que sentia como se Ross, Phoebe, Joey, Chandler, Monica e Rachel fossem seus amigos de verdade e que por isso desistiu de se matar. Vários entrevistados relataram identificação com o personagem Chandler, incompreendido por todos, usava o sarcasmo como escudo para se proteger das agruras da vida.

Falando em Chandler, o ator Matthew Perry em sua autobiografia afirma que Friends salvou sua vida duas vezes. Ele é dependente químico e luta contra o vício em álcool e opióides desde a juventude. De acordo com os seus depoimentos, Friends o impediu de abusar ainda mais das substâncias viciantes e lhe deu um propósito de vida por dez anos. Ele explica que havia um clima de verdadeira amizade e também de colaboração entre todos eles e além disso não havia uma quarta parede:

Mas não havia uma quarta parede a ser quebrada; na verdade, nunca houve. Fazia uma década que estávamos no quarto e na sala das pessoas; no fim, éramos parte da vida de tanta gente sem percebermos que nunca houve uma quarta parede a ser quebrada. Nós éramos apenas seis amigos próximos em um apartamento aparentemente grande demais, quando, na verdade, ele não passava do tamanho da televisão de alguém (…) Friends tinha sido um lugar seguro, um ponto de calmaria para mim; a série me dava um motivo para levantar da cama todas as manhãs; e também para pegar menos pesado na noite anterior. A gente se divertiu tanto. Era como se recebêssemos boas notícia todos os dias. Até eu sabia que só um louco estragaria um emprego como aquele. ” (PERRY, 2022, pág. 193/195)

Outro ponto interessante foi como a série incentivou o empoderamento feminino através da Monica, quando ela mesma toma a iniciativa de pedir Chandler em casamento, percebendo a sua dificuldade em se expressar. Naquela época, ainda não ouvíamos falar sobre o assunto, porém, assistindo a série hoje, na década de 2020, as nossas questões tão atuais estão representadas ali, de forma que elas sempre foram questões humanas e esse é o mistério do sucesso e do fascínio da série: o fato de tratar e abordar assuntos diversos, questões humanas de forma leve e despretensiosa, mas que gera identificação, tornando-se assim universal.

O fato de todos os atores escolhidos serem iniciantes também foi uma escolha perfeita nesse caso. Eles cresceram juntos e todos eram protagonistas. Trazendo esse contexto para a realidade, a conexão é imediata – somos todos protagonistas da nossa própria vida e as pessoas à nossa volta, os coadjuvantes. Criamos os nossos laços com elas, podendo ou não seguir juntos ao longo da vida. Com a série acontece a mesma coisa, não haviam privilégios e por isso o clima entre os atores e diretores era amistoso, fazendo toda a diferença em um programa de TV que durou dez anos e mudou a vida de muitas pessoas.

É interessante observar que nós estamos sempre buscando um certo alívio para as questões do dia-a-dia através da TV, dos jogos de futebol, dos livros, das músicas e quando encontramos algo com o qual nos identificamos, conseguimos nos enxergar naqueles personagens, naquele texto ou seja no que for, nos entregamos completamente a esse “ópio” e muitas vezes, inconscientemente, um personagem ou um grupo de elementos pode transformar a nossa vida. Os depoimentos dos fãs de Friends realmente são impactantes e nos levam a reflexões importantes sobre a mente humana.

Fenômenos como esse são raros, afinal, quantas sitcons foram gravadas ao longo dos anos e quantas delas fizeram todo esse sucesso? É interessante estudar e se aprofundar, principalmente ouvindo as pessoas e observando a reação delas diante de eventos como esse para compreendermos como se forma um cânone. É claro que, para os especialistas e críticos de arte e cinema, best-sellers e produções que fazem muito sucesso não pertencem a esse espaço de destaque das grandes obras. Entretanto, há também controversas. Muitas vezes uma obra de arte não precisa ser incompreensível ou esteticamente perfeita para tocar as pessoas. Na minha opinião, um cânone é formado por produções que se tornam universais, que dialogam com diversos públicos e que se tornam atemporais. Neste caso, a série Friends se encaixa em todas as categorias, pois dialoga não só com as pessoas da faixa etária dos 25/35 anos, como também com adolescentes e adultos em geral, além de ter envelhecido bem. Afinal, seus produtores abordavam assuntos que hoje estão em voga nas redes sociais e nas principais discussões do momento. Se você ainda não assistiu a esse fenômeno dos anos 1990, aproveite para se divertir um pouco. Todos os episódios estão disponíveis no HBO Max.

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