crítica

Gostaria que você estivesse aqui – Fernando Scheller

Nostalgia, saudades, empatia, memórias afetivas, compaixão e muitas outras emoções representam um pouco do que senti lendo esse romance maravilhoso do escritor brasileiro Fernando Scheller, enviado aos associados da TAG Inéditos no mês de maio, onde foi realizada uma curadoria voltada à Literatura Brasileira.

Ao ler a sinopse do livro e só mesmo de olhar para a sua capa, já senti que precisava ler esse romance imediatamente, não tinha como esperar. E essa é umas das coisas que mais amo na Literatura: quando um livro te chama e você vai, mergulha em suas páginas e sai delas transformado, ou ao menos tocado por seus personagens, com suas histórias e conflitos, dramas e medos, sua humanidade.

Eis o que o leitor vai encontrar nas páginas do livro Gostaria que você estivesse aqui (TAG, 2021): personagens reais, verossímeis, humanos e atemporais; narrativa polifônica em terceira pessoa; enredo fascinante e o principal, a captação de um sentimento coletivo da época retratada por Scheller, a icônica década de 1980. Quem viveu esses anos incríveis, assim como eu, vai se sentir realizando uma viagem no tempo. O leitor é imediatamente transportado para essa realidade, para esse momento do Brasil pós-ditadura, do nascimento do rock nacional, do surto de aids, do movimento das diretas já. E tudo isso ambientado na maravilhosa cidade do Rio de Janeiro, palco de grandes acontecimentos artísticos e políticos, mas principalmente, palco da vida de pessoas comuns, local onde nasceram e cresceram muitas pessoas anônimas, que vivem a sua rotina em meio a um turbilhão de mudanças e de transformações.

O livro conta a história de cinco protagonistas, junto a vários coadjuvantes não menos importantes, no período de uma década, começando no réveillon de 1979/ 1980 e finalizando na virada dos anos 1989/ 1990. As histórias desses personagens vão se cruzar ao longo da narrativa e uns farão a diferença na vida dos outros, em vários sentidos. Essa narrativa começa e termina com Inácio, um garoto de 17 anos que passou no vestibular da UFRJ para engenharia e sai para comemorar junto à garota dos seus sonhos, Baby. Nessa festa, ele conhecerá aquele que será o seu melhor amigo da vida, César, um estudante de comunicação apaixonado por música e que está descobrindo a sua sexualidade. Ele é filho de Selma, uma mulher muito sofrida, casada com Roberto, um homem parado no tempo, cheio de preconceitos e que tem dificuldades de enfrentar os conflitos da vida, preferindo abandoná-los a resolvê-los. Por fim, acompanhamos a saga de Rosalvo, um homem simples que saiu do interior de Minas com destino ao Rio de Janeiro, para vingar a morte da filha Eloá. Pouco depois de se instalar na Rocinha, ele conseguirá um emprego de porteiro no prédio de Selma e César.

Através de Inácio, temos a trajetória de um garoto se transformando em um homem de família. Este é um personagem muito rico porquê de início, ele parece uma pessoa imatura e até mesmo bobo, entretanto, à medida em que os anos vão passando, ele toma das rédeas da própria vida e se mostra um homem sólido, forte e íntegro. A relação dele com os outros personagens, como o seu pai, por exemplo, é muito bonita. Durante a leitura, me flagrei lembrando do meu próprio pai e dos seus ensinamentos, modo de viver, aquele limbo entre ser uma pessoa moderna e um homem conservador. Mas, que consegue transmitir para os seus filhos os valores que serão importantes para a vida adulta. Em um certo momento, Inácio diz que está se transformando no pai e, essa sensação de pertencimento, de ter conseguido cumprir sua missão de se tornar uma pessoa de bem a partir dos valores aprendidos em casa, é algo que acontece com muitos de nós, chegarmos à vida adulta e perceber um pouco de nossos pais em nós.

Inácio também é um ótimo amigo para César. Apesar de perceber que este nutre sentimentos amorosos por ele, Inácio não se intimida e continua próximo, participando da vida de César. Ele aceita este homem como ele é, com toda a carga dramática que este carrega, os estereótipos, os preconceitos e o estigma. Inácio será peça chave na trajetória de César, inclusive um esteio para Selma quando sua família se desmoronar e o sentimento de solidão a invadir. O grande amor de Inácio é Baby, uma menina cheia de dúvidas e de personalidade oposta à de Inácio. Ainda assim, ele é determinado e persistente. Não desiste de seu amor. É compreensivo com suas idas e vindas, afinal, ele tem a capacidade de compreender as falhas humanas, tão recorrentes em nossas vidas.

A história de Baby também é bastante intensa e muito bem construída. Ela representa uma geração de mulheres que precisou lutar contra a não-vida: mulheres que se casavam por interesse ou por segurança econômica, mulheres que dependiam do marido para respirar, mulheres que eram caladas e compensadas com joias caras, cortinas bonitas, tapetes persa e uma bela vista para o mar. Sua mãe, representa essas pessoas que eram totalmente infelizes, mas preferiam a mentira à uma vida mais simples, em um bairro longe do mar, onde suas vizinhas e colegas ainda viviam. Infelizmente, muitas famílias foram constituídas dessa forma, dentro do vazio de sentido. E essa falta de conexão com a realidade, constitui a identidade de Baby. Ela não quer ser como a mãe, quer ser independente, mas não sabe como ou por onde começar. Ela tenta de todas as formas tomar suas próprias decisões, fazer escolhas, mas se perde e acaba deixando a vida leva-la. Essa inquietação de Baby é muito significativa, principalmente para a época retratada no livro.

César é um personagem riquíssimo também. Para quem se lembra dos acontecimentos da década de 1980, vai perceber que ele é um símbolo, que representa a luta de muitas pessoas contra a aids, mas principalmente contra o preconceito. A forma como o autor contou a história desse personagem foi muito digna e muito bem-feita. Me emocionei diversas vezes lendo sua trajetória, as conquistas no setor musical, a sede de viver que acompanha esse personagem o tempo todo. O sentimento coletivo das vítimas da aids, algo que sempre me despertou uma imensa compaixão. Muitas vezes, lendo os capítulos do César, me lembrava de Cazuza, de Fredy Mercury, de Caio Fernando Abreu, Renato Russo…. Tantas pessoas queridas que perdemos para a aids. E o estigma, o preconceito estavam ali, mas de forma respeitosa, sem ultrapassar limites. César me acompanha ainda hoje nos meus pensamentos, como alguém que eu gostaria de ter conhecido.

Selma é uma mulher e tanto! Representa tantas outras de nós, que é impressionante. A sensibilidade da personagem, sua coragem para enfrentar os desafios propostos pela vida, mesmo quando ela está desmoronando. A trajetória dessa personagem é belíssima. Logo no início da narrativa, seu marido Roberto sai de casa e resolve viver uma farsa ao lado de sua secretária, adotando seus dois filhos. O abandono de Roberto é muito significativo porque ele representa a vergonha, o medo do enfrentamento, a vida de aparências. Selma fica com um apartamento enorme, cheio de coisas que para ela não significam nada, que representam a vida de casada, que não existe mais. Ela está escrevendo sua tese de doutorado, estudando o livro Ifigênia e comparando-o com outras tragédias clássicas. O fascínio da personagem e o sentimento de empatia com aqueles que são marcado pelo destino, pela tragédia, dão o tom da dor que ela mesma enfrentará no futuro. Ela é uma mãe real, visceral e fantástica. Porém, mesmo com tantas qualidades, Selma também erra. Afinal, não temos heróis nessa história e sim seres humanos.

Rosalvo tem uma missão: vingar a morte de Eloá, antes Marquinhos, sua filha caçula. Fugindo do preconceito arraigado do interior de Minas, Eloá vai para o Rio de Janeiro em busca de uma vida livre e termina assassinada. Seu pai, que não entende muito bem a vida da filha, mas a ama incondicionalmente, vai atrás de seu algoz. Em sua busca, conhece pessoas muito interessantes, que vão transformar sua vida, tais como sua esposa Elza. Esta é uma mulher muito valente e alto astral. Dribla as dificuldades da vida com bom humor, perseverança, samba e um chope gelado. Gosta de ostentar os “restos dos ricos do Leblon” que o marido Rosalvo leva para casa, para dar a sensação de fartura. Eis uma forma de nos mostrar o quanto somos ridículos ao oferecer para o porteiro do prédio, ou para as pessoas que trabalham para nós nossos lixos, como se isso fosse muito legal e generoso. Quando na verdade, o que não serve para nós, não serve também para o outro só por estar em uma situação desvantajosa.

Rosalvo e Elza vão formar um casal que se contrapõe. Enquanto um é alegre e cheio de vida, o outro é fechado e cheio de dor, mágoas e revoltas. Através deles conhecemos muitos outros moradores da Rocinha, enfrentando suas agruras, subindo e descendo o morro para trabalhar e ganhar o pão de cada dia. Conhecemos também um pouco da vida difícil e cheia de preconceitos dos transexuais, que em muitos casos, ao se revelarem para suas famílias eram colocados para fora de casa, precisando enfrentar a vida nas ruas, terminado por se refugiarem nas drogas, na prostituição e no submundo. Muitas dessas pessoas não chegavam aos 30 anos devido às suas condições de vida. A forma como o autor tratou esses assuntos tão delicados foi extremamente respeitosa e reflexiva. Esses personagens também me acompanharão por muito tempo.

O livro é maravilhoso, recomendo para todo mundo porque creio que além das histórias cativantes, da escrita muito bela, do cenário perfeito e dos personagens muito bem desenvolvidos, ele também traz informação, reflexão e cumpre sua missão de humanizar. Esta obra será lançada pela editora Harper Collins e espero que todos os leitores desse site tenham a oportunidade de ler essa obra prima.

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