crítica

Grama – Keum Suk Gendry-Kim

Você já ouviu falar sobre as “mulheres de conforto”? Estas foram pessoas de origem asiática de baixa renda, que viviam em situação de vulnerabilidade e foram subtraídas de suas famílias para servirem como escravas sexuais aos exércitos japoneses durante o período da Segunda Guerra Mundial e do Império Japonês. De acordo com a jornalista e quadrinista Keum Suk, é correto afirmar que existiram essas casas de conforto em “todos os países e regiões em que ocorreram guerras de invasão japonesa”. (YUN, 2020, pág. 483).

Este sistema se dividia em quatro etapas, com o intuito de eximir o Império Japonês das responsabilidades legais por esse crime sexual e dificultar as denúncias, a fuga das mulheres e até mesmo a localização dessas casas de conforto. A primeira etapa consistia em instalar a casa. Posteriormente, um gerente era designado para esse local. Um outro grupo sequestrava e prendia as mulheres, que seriam transportadas por terceiros e levadas até a casa de conforto. Dessa forma, uns não sabiam sobre o trabalho dos outros e não se conheciam diretamente, ou seja, era difícil rastrear essa trajetória e chegar aos culpados para puni-los. Entretanto, é difícil falar em punição quando se trata de um regime autoritário e dominador. Não existe lei e nem direitos em sistemas como o Império Japonês foi um dia.

Outro ponto crucial para essa desgraça ter acontecido durante tantos anos e com tantas vítimas, era a situação de miséria em que viviam muitas das famílias asiáticas. A maior parte das histórias que ouvimos sobre esse período tenebroso, relatam as dificuldades financeiras das famílias muito numerosas, a exploração da mão-de-obra e os empecilhos em conseguir um trabalho estável e bem remunerado que possibilitasse a manutenção de todos os filhos e do sustento da casa. É por isso que muitos pais venderam suas filhas ou as deram em adoção para famílias mais abonadas, acreditando que neste novo lar, elas seriam mais felizes, passariam por menos privações e teriam o direito a uma vida digna. Muitas famílias foram enganadas dessa forma e tiveram suas meninas perdidas para sempre para a escravidão.

Nesta História em Quadrinhos (HQ), criada pela jornalista e quadrinista Keum Suk Gendry-Kim, acompanhamos a trajetória de uma sobrevivente das casas de conforto, Ok-sun Lee, que foi “adotada” por uma família que prometeu a ela e a seus pais que realizariam o seu maior sonho, que era estudar, quando na verdade a transformaram em uma escrava de serviços domésticos aos 14 anos. Depois de sofrer constantes maus-tratos nesse restaurante, ela decidiu fugir e voltar para casa, onde foi novamente recebida, mas precisou voltar a trabalhar de forma escrava para os então patrões do seu pai. Por não ceder aos assédios do chefe, ela precisou ir embora para a capital, tentar a vida em outro lugar. Lá, foi subtraída por soldados coreanos, a mando do Império Japonês e levada junto a mais 5 garotas para uma casa de conforto.

A vovó, como é chamada por todos na ONG onde vive atualmente, contou à jornalista os entreveros pelos quais passou durante os três anos em que viveu sob a tutela do gerente da casa de conforto, os maus-tratos, a dívida eterna que eram obrigadas a assumir todos os dias, as doenças venéreas que contraiu ali, as mortes que presenciou e os estupros constantes dos soldados que chegavam a um número alarmante de 30 a 40 vezes por dia. Depois de tanta dor, quando o Império Japonês caiu, após os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki, ela e mais cinco colegas foram libertadas da casa de conforto e puderam partir em busca de uma vida nova. Entretanto, sofreram as humilhações de serem apontadas nas ruas como devassas, prostitutas e vagabundas que não mereciam viver.

Ok-sun Lee viveu um tempo nas ruas de Shangai como mendiga, depois reencontrou um coreano que era também escravo do Império Japonês e dizia-se apaixonado por ela. Os dois se casaram, porém, mais uma vez, o destino não estava a favor da vovó.  O seu marido se alistou no exército coreano em uma frustrada tentativa de vingança contra o Japão. O que aconteceu com ele, vocês terão que ler a HQ para saber, mas Ok-sun trabalhou fervorosamente e incansavelmente para sustentar os pais doentes de seu marido e para manter a sua nova família. Após dez anos vivendo assim, ela foi aconselhada por uma tia a se casar com outra pessoa.

Ainda assim, a vida não lhe sorriu. No segundo casamento, o alcoolismo dominou a sua existência, através de seu marido. Muitas vezes, ela quis ir embora, mas, compadeceu-se de seus enteados que não tinham mais ninguém no mundo e precisavam dela como mãe para cuidar deles. Essa vida miserável durou mais 50 anos. Os tão sonhados estudos vieram bem mais tarde, quando a vida lhe deu uma brecha dentre tantos afazeres e ela pode frequentar a escola noturna e aprender a ler e escrever.

Já idosa, Ok-sun Lee resolveu retornar à Coreia e procurar sua família. O reencontro foi bom nos primeiros dias. Mas, quando a vovó deu entrevistas e contou a sua história, seus irmãos, que foram educados dentro das teorias de Confúcio – “pensador e filósofo chinês que pregava uma vida rodeada de preceitos morais. Considerava a justiça e a sinceridade elementos básicos das relações sociais” (YUN, 2020, pág. 484) – não aceitaram as falas e confissões da irmã. Se chocaram com o fato dela acusar os pais de a terem vendido a outras famílias em um momento de vulnerabilidade. Para seus irmãos, a mãe era uma pessoa santa, que após o sumiço de Ok-sun, passou os seus dias rezando por sua volta até o fim.

A história de Ok-sun Lee é muito tocante e muito triste. Dá uma enorme piedade quando ela diz que desde o dia em que nasceu, nunca conheceu a felicidade. Ou quando ela relata que sente inveja das pessoas que têm família e que se reúnem em volta de uma mesa para compartilhar os bons momentos com os seus. No nosso pedestal de privilégios, não somos capazes de avaliar a dor de pessoas que passam por situações como a de Ok-sun. É triste pensar que uma criança – uma não, milhares – foi subtraída de sua casa, de sua vida e transformada em objeto sexual para o prazer e a bestialidade de homens adultos, que sabiam exatamente o que estavam fazendo ali. Todos foram coniventes, cúmplices e participaram desse horror que a humanidade carrega nas costas.

A autora dessa HQ aborda muito a situação de vulnerabilidade da mulher através das tradições e da cultura milenar asiática. Onde uma situação que não foi escolha de Ok-sun, a definiu como alguém que não merece fazer parte da sociedade, que deve viver à margem. A reparação para esse crime de guerra ainda não veio, apesar das sobreviventes e alguns de seus familiares lutaram dia após dia por um pedido formal de desculpas e por uma indenização do Governo Japonês. Mas o Governo Coreano, em 1979, assinou um documento de paz com o Japão, colocando um ponto final nesse triste episódio. Por questões políticas e econômicas, essas mulheres foram silenciadas e esquecidas, como se nada tivesse acontecido.

Este não é um crime que desculpas resolvem. E muito menos um crime que pode ser esquecido. As consequências dessa brutalidade ressoam na vida das sobreviventes até os dias atuais. A vulnerabilidade das mulheres continua sendo um assunto que precisa ser tratado com respeito e divulgado com mais ênfase. Recentemente, vimos um mau-exemplo disso no Brasil e que está sendo tratado de forma correta e decente: o ex-deputado estadual Arthur do Val disse em um áudio que “as mulheres ucranianas são fáceis porque são pobres”. Essa fala infeliz retoma o caso das mulheres de conforto. Se elas não fossem miseráveis, não seriam vendidas por seus pais e não cairiam em mãos de sádicos que pensam como o ex-deputado. Ainda bem que ele está sofrendo as devidas punições e responderá por seu crime. Porém, o mais importante é saber se ele compreendeu a gravidade do que disse e pensou. É dessa forma que se inicia o ciclo da violência contra a mulher.

O título da HQ é muito simbólico e muito bonito:

Depois de esse frio cruel passar, sem dúvida vai chegar uma carta do sul. Uma carta do Sol, avisando sobre a chegada da primavera. No fim do longo inverno, os galhos frágeis tremem. Novas vidas lutam para brotar de dentro para fora. O solo por muito tempo adormecido, vai despertar, e a pequena grama vai se reerguer em meio às folhas secas, queimadas pelo frio. Mesmo derrubada pelo vento e pisoteada por muitos, a grama sempre se reergue. Pode ser que ela te cumprimente de forma tímida, passando de raspão pelas suas pernas” (GENDRY-KIM, 2020, pág. 474/477).

A grama, metáfora para todas as mulheres de conforto, vence a guerra e a dor e sempre se reergue ainda que machucada, queimada e ferida. Resiliência é a palavra que define essas guerreiras. À todas as sobreviventes e vítimas de mais essa bestialidade humana, todo o meu respeito.

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