crítica

Grande sertão: veredas – Guimarães Rosa

“Então, não sei se vendi? Digo ao senhor: meu medo é esse. Todos não vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma… Meu medo é este. A quem vendi? Meu medo é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, é sem nenhum comprador”.

A partir de um narrador pouco confiável, o leitor adentra o Sertão. Este sertão nos será mostrado através das memórias de Riobaldo, um jagunço e professor que viveu muitas aventuras e desventuras ao longo de sua travessia pelo interior do Brasil, mas que pode ser muito bem utilizado como uma metáfora para a vida. Ao longo dessa trajetória, o leitor será apresentado a muitos outros personagens interessantes que compõem esse sertão e ao enredo central da obra: a vingança do bando de Riobaldo contra os Hermógenes, que mataram Zé Bebelo, ex-chefe da jagunçagem. Dentre esses personagens, encontra-se Diadorim, o melhor amigo e o grande amor do protagonista.

Através da ambiguidade, o autor vai nos guiando a uma reflexão sobre temas universais, tais como o bem e o mal, o real e o imaginário, a vida e a morte, a saúde e as doenças. O duplo é um dos recursos mais utilizados por Rosa para questionar a existência de Deus ou do diabo. Desde o início da narrativa, Riobaldo levanta essas questões metafísicas, demonstrando uma certa dúvida em relação à sua veracidade. Ao mesmo tempo, ele afirma que a presença dessas entidades é palpável, como se de alguma forma elas estivessem ali, mesmo não sendo vistas.

Entretanto, a sua dúvida maior é em relação ao bem e ao mal que carregamos dentro de nós. Ele não tem certeza se nós decidimos ser bons ou maus ou se o meio em que vivemos exerce algum tipo de influência sobre as nossas ações. A trajetória dos personagens é marcada pela perda, pela fome, miséria, doenças e lutas. Dessa forma, é complicado afirmar que as situações vividas não modificam o indivíduo. Por isso, em Grande sertão, tudo “é e não é”. Não existem certezas e essa ambiguidade é muito marcada na narrativa fragmentada e oral utilizada por Guimarães Rosa.

Ter coragem é uma das principais características para um jagunço no sertão e essa coragem é testada durante toda a travessia. Até o meio do livro, o leitor se sente um pouco perdido na narrativa, que vai e volta no tempo. Após a morte de um personagem importante, há um divisor de águas e o texto ganha um pouco mais de fluidez e linearidade, seguindo a sequência dos acontecimentos.  Essa marca vem do suposto pacto que Riobaldo faz com o diabo para vencer o bando dos Hermógenes e a partir daí ele começa a ter mais coragem, no sentido de se libertar para agir, para fazer o que precisa e quer fazer, sem o julgo da culpa ou do remorso. O problema é que, com as mudanças em suas atitudes, Riobaldo se afasta de Diadorim, que está ao seu lado o tempo todo.

Esse afastamento se deve a diversos fatores, tais como suas questões por se sentir atraído por outro homem, além de não querer envolver Diadorim em sua maldade, ou seja, no pacto. Ele quer manter o amigo longe do mal e não o macular com o que fez ou pensa que fez. O personagem Diadorim é uma grande representação do duplo e das ambiguidades da obra. O próprio nome do personagem pode ter um duplo sentido, como dia (de diabo) ou dia (de sol, de luz). Fica a critério do leitor decidir para que lado vai.

Oposições e repetições, aliteração, sonoridade e uso do tempo psicológico são as marcas desse texto tão rico e que tem tanto a nos ensinar. É impossível não se ver pensando sobre as questões colocadas por Riobaldo, que na verdade, está dando voz a quem nunca pode contar suas histórias e ele narra toda essa epopeia a um interlocutor letrado, o qual não conhecemos, mas que está ali o tempo todo, escutando as divagações do protagonista. A recriação desse ato de contar casos e histórias foi magnífica, o que torna esse livro único e difícil de reproduzir, até mesmo de traduzir, pois todos os recursos de escrita se perdem nesse caso. Quando o lemos, temos a sensação de estar mesmo escutando alguém nos contar um conto através de suas memórias, que oscilam, vacilam, falham. Por isso, o texto é marcado por “é e não é”.

Utilizando como ponto de partida o sertão do Brasil, Guimarães Rosa conduziu o leitor a uma profunda reflexão sobre medo e coragem, afirmando o tempo todo os perigos da vida e que para atravessar esse “sertão”, que podemos ler “mundo” é preciso ter coragem, mirar e ver. Não existem sentimentos mais ambíguos e comuns que esses dois, medo e coragem. Sentimentos seculares que acompanham o homem e muitas vezes, definem o seu destino diante da vida, das escolhas e das batalhas que preferimos lutar. Ele fala sobre todas as pessoas e o seu íntimo, suas experiências. Temos aqui uma recriação do mundo através do sertão. Partimos do local para falar sobre o universal, abordando as diferenças sociais, as epidemias, a fome e a justiça ou a falta dela.

Não sabemos se Riobaldo fez mesmo um pacto com o diabo, o fato é que sua vida mudou após o seu possível encontro com ele. Riobaldo mudou, na verdade. Uma das chaves de leitura para essa dúvida cruel é refletir sobre quais os pactos fazemos todos os dias e com quem fazemos. Não precisamos firmar um pacto fáustico para vender a nossa alma, podemos simplesmente vende-la ao compactuar com erros, fazer coisas imorais ou ilícitas quando ninguém está nos vendo, trair, furtar, levar vantagens indevidas, mentir e tantas outras situações em que falhamos conosco mesmo, nem precisa ser com os outros. Creio que a maior mensagem que Grande Sertão e o eterno professor Riobaldo nos deixam é que “é e não é” e que tanto o bem quanto o mal vivem dentro de nós, cabe a cada um escolher suas batalhas e procurar agir com hombridade mesmo nas sombras.

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