crítica

Guerra e paz – Liev Tolstói

Considerado pelo público e pela crítica como um dos maiores romances da literatura mundial, Guerra e paz (Companhia das Letras, 2017) é uma epopeia que abarca a história de cinco famílias, em particular de três delas, que representam ordinariamente símbolos da mesma Rússia: alienação, intelecto e ativismo com fundo histórico das guerras napoleônicas. Conforme já dito na resenha da Biografia do autor e dos Contos Completos, volumes 1 e 2, Tolstói foi militar na guerra da Criméia por uma década, tendo, portanto, experiência no front para nos contar essa história de forma crítica e contundente, mostrando os grandes equívocos provocados pelas guerras em geral. Anteriormente, escreveu os Contos de Sebastopol, narrando todo o seu horror diante da guerra e as mazelas pelas quais passavam as pessoas que se viam ali por um ideal romântico, que na prática, não tinha sentido nenhum.

 Tolstói foi um grande autodidata e também um homem de mente inquieta. Estava sempre se questionando a respeito de sua própria incapacidade em seguir as regras morais nas quais acreditava. Por isso, suas obras são compostas por muitas digressões filosóficas, que proporcionam ao leitor gatilhos para reflexões sobre temas espinhosos, em sua maioria, relacionados à moral e à ética. Aos 34 anos, casou-se com Sofia, que na época tinha 17 anos e era filha do médico do tzar. Ela o ajudou na composição das personagens femininas de Guerra e paz, principalmente na construção da personagem Natacha, uma das grandes protagonistas da história, e que representava a alienação em relação à guerra, focando seus esforços no amor romântico, conquistando muitos homens que frequentavam os salões de Moscou e de Petersburgo. Além disso, Sofia também copiou o romance de mais de 1000 páginas por sete vezes, até que estivesse totalmente pronto para ser publicado.

Os grandes protagonistas de Guerra e Paz são Natacha Rostov, a qual conhecemos ainda na infância, filha de um casal de classe média da Rússia e que com o passar dos anos e os desdobramentos da guerra, perdem suas propriedades e grande parte do seu dinheiro. Natacha simboliza a alienação diante da guerra, as pessoas que ficam em suas casas, participando de jantares, bailes, cuidando da rotina, enquanto os homens estão no front. Esse grupo de pessoas não se interessa pela guerra, além de não verem nela nenhum sentido. Outro grande protagonista do romance é Pierre Bezukhov, um alter ego de Tolstói. Inicialmente, ele tem afinidades pelas ideias de Napoleão, porém, ao longo da trama vai mudando de opinião, passando por grandes transformações, sempre em busca de um ideal ético e moral, representando a Rússia intelectual.  Por fim, o outro protagonista de destaque é Andrei Bolkonski, aquele que acredita na guerra e deseja salvar a pátria através do poder bélico. Naquela época, existia um ideal romântico em relação às batalhas, como se elas fossem sanitarizadas e belas, levando Andrei, um protótipo do militar racional e tantos outros personagens a se alistarem voluntariamente com o intuito de lutar pela pátria.

A história de Guerra e Paz se inicia com um parágrafo em francês, algo que pode causar um certo estranhamento, porém, se justifica pelo fato da influência que a França exercia na Rússia no início do século XIX. Os costumes franceses foram incorporados na capital Moscou e nas grandes cidades russas, assim como o idioma, os ideais e a própria educação, que vinha das preceptoras francesas. A ambientação tem início em julho de 1805, em um sarau aristocrático na cidade de Petersburgo, onde os protagonistas discutem sobre a inevitabilidade da guerra. Através dos comentários de Andrei e de Pierre, é possível saber qual o pensamento de cada um diante da catástrofe anunciada:

Napoleão é grande porque elevou-se sobre a Revolução e suprimiu seus abusos, preservando tudo o que nela havia de bom” comenta Pierre, para o assombro de todos. Já o Príncipe Andrei afirma que “Recepções, mexericos, bailes, conceitos ociosos e futilidade – esse é o círculo encantado que me cerca. Estou indo embora para tomar parte na guerra, a maior que jamais houve”. Nesta época, o Príncipe Andrei era casado e tinha um filho recém-nascido. Apesar dos pedidos e súplicas de sua esposa e de sua irmã para que não ele não fosse para a guerra, ele vai, sem lhes dar ouvidos. Um tempo depois, sua esposa adoece e morre, sendo o seu filho criado e educado por sua irmã, a Princesa Mária, que também terá um certo protagonismo na obra, destacando-se por sua bondade e firmeza de caráter, principalmente nos momentos mais complicados da trama, tanto em relação às batalhas, quanto em relação aos dramas pessoais de cada um.

O romance é baseado em três anos chaves para a guerra: 1805, quando a Rússia, a Áustria e a Inglaterra se uniram em uma aliança contra Napoleão. Essa aliança fez com que a França criasse um bloqueio contra a Inglaterra, que não foi respeitado pela Rússia, provocando assim, em 1812 a invasão da Rússia pelas tropas napoleônicas. Para a crítica literária Jane Gleeson-White, o início da terceira parte do romance, onde o narrador diz “A Batalha de Borodino, com a ocupação de Moscou que se seguiu a retirada dos franceses, sem outros combates, é um dos fenômenos mais instrutivos da história” mostra o fascínio de Tolstói pelo fracasso da incursão francesa na Rússia, que lhes provocou um colapso psicológico maior que o militar. O autor cogitou escrever um romance psicológico sobre Alexandre I e Napoleão, mostrando as baixezas e o vazio de sentido de tudo aquilo. Essas ideias deram origem a Guerra e Paz. A guerra continuou até 1820, com o desenlace da vitória de Alexandre I sobre Napoleão.

No final do romance, há uma reflexão filosófica sobre o paradoxo entre a guerra e a paz, propostas por Sofia. Para a esposa de Tolstói, as digressões no meio do enredo do livro seriam muitas vezes desconfortáveis ao leitor que desejava saber o destino dos personagens principais e até mesmo o resultado da guerra. Foi uma boa sugestão, porque, ao fim do primeiro epílogo, onde as tramas dos personagens fictícios são finalizadas, Tolstói escreve um ensaio muito interessante falando sobre suas percepções a respeito do tema principal de seu romance. Além disso, o protagonista Pierre foi a voz das suas opiniões ao longo da trama e no primeiro epílogo, Tolstói mostra mais da sua visão de mundo patriarcal com o desenlace dos relacionamentos que seguem a ideia de que os homens são detentores dos conhecimentos e as mulheres são submissas e faltam só adivinhar seus desejos. Para aqueles que leram seus textos não-ficcionais e sua biografia, o viés ideológico de Guerra e Paz é bastante evidente.

Ao longo da vida, Tolstói se considerou um libertino por se deixar seduzir pelas mulheres e pelos prazeres da vida, tais como o jogo, a bebida e o dinheiro. Dessa forma, aliada à sua visão machista da vida, em seus romances, ele sempre pune as mulheres adúlteras. Temos como exemplos disso, Anna Kariênina, no romance homônimo e em Guerra e Paz, Helene Beluskhov, primeira esposa de Pierre, que vivia uma vida desregrada, voltada para os prazeres terrenos, onde ela protagonizou cenas interessantíssimas de uma pessoa que gosta de curtir a vida a partir da ideia de carpie diem ocidental. Assim como Anna Kariênina, Helene também tem um final trágico, pagando por seus pecados, como acreditava o autor. Já a protagonista Natacha, se arrepende dos seus erros e aprende com eles, recebendo não apenas o perdão da pessoa a quem mais ofendeu, como também tendo uma nova chance de recomeçar e ser uma pessoa digna, mais uma vez, sob a ótica do autor.

A questão do perdão é trabalhada a partir do protagonista Andrei, que inicia sua jornada com a ideia que defende a guerra pela guerra para a redenção, o amor ao próximo em forma de perdão. Apesar de não parecer, Tolstói sempre foi muito preciso naquilo que ele queria falar. Para ele não interessa um final feliz para os seus romances, algo que fica bem evidente no epílogo de Guerra e paz. Ele na verdade, aponta a direção do ultranacionalismo, que estava começando a despontar na Rússia quando o seu romance foi escrito. Na ocasião, houve ainda, em 1861 a libertação dos servos russos. O romance foi finalizado em 1863. Tolstói frisa bastante essa questão da servidão no país através do personagem Andrei, que libertou os seus servos no final do romance, como uma das mudanças radicais pelas quais ele passou, mostrando ao leitor um problema que precisava de atenção, de reflexão e de discussão em meio ao povo russo.

O título do romance nos leva a pensar criticamente sobre o direito e o não direito, sendo o primeiro representado pelas leis e regras sociais, ou seja, a paz e o seu oposto pela guerra, sendo esta a negação total do direito. Em uma sociedade onde as leis não são respeitadas e as pessoas não aceitam as regras de convivência, burlam todo o sistema, a única solução para se obter a paz, é a guerra. Dessa forma, Tolstói procura apresentar uma sociedade com as suas idiossincrasias e principalmente, seus problemas sociais e econômicos, que vinham sendo negligenciados através de uma romantização tanto das guerras quanto dos costumes herdados pelos franceses. Já discutimos aqui em outros textos a respeito da dubiedade do pensamento russo, que dividia sua população entre os eslavofilistas e os ocidentalizantes e claro, essa divisão de pensamento vai aparecer por diversas vezes em Guerra e Paz.

Assim, o autor nos mostra que muitos dos que vão à guerra não entendem bem por que vão. Apenas seguem as massas e ao chegaram nos fronts, percebem que jamais deveriam ter feito esta escolha, que a princípio, lhes parecia tão bela e tão honrada. Esse cenário de desilusão é trabalhado no romance através de duas vertentes: a primeira, quando Pierre vai ao campo de batalha com o objetivo de lutar pela pátria e também para ver como é a guerra. Ao chegar naquele lugar, ele apenas atrapalha todo mundo, pois não compreende nada, não consegue saber quem é quem. No lugar daquelas marchas organizadas, com homens limpos, belos e cheios de vigor, o campo de batalhas é um caos, cheio de sujeira, sangue, morte e desespero. A outra vertente utilizada pelo autor é através do irmão mais novo de Natacha que mesmo à revelia dos pais, sendo menor de idade, se alista para a guerra, acreditando ser esta uma luta justa, virtuosa, de acordo com a visão romantizada das batalhas que circulavam à época. Em um confronto mais violento, ele morre, sem conseguir sequer se defender, provocando imensa dor em seus familiares.

A desconstrução dessa romantização da guerra é um dos grandes objetivos de Tolstói ao escrever Guerra e Paz. Há algumas digressões filosóficas, com reflexões sobre as ideias das pessoas e suas contradições, principalmente voltadas para Pierre, que busca a todo custo um sentido para a vida. Depois de conhecer o front e ver com os próprios olhos a situação das tropas, ele define como sua missão matar Napoleão. Essa visão mistificada da morte do líder francês é uma metáfora que corresponde ao rompimento das influências francesas na sociedade russa. Tanto que, no início do romance, há inúmeros diálogos em francês e do meio para o fim, essa quantidade de inserções do idioma estrangeiro nas falas dos personagens vai desaparecendo aos poucos, até praticamente sumirem. A população russa vai se conscientizando devagar de que é importante manter os seus próprios costumes e hábitos, pois naquele momento, a França é o invasor, o inimigo da Rússia.

Para se ter uma ideia da dimensão dessa guerra, quando as tropas napoleônicas invadiram a Rússia, havia um contingente de 500 mil homens e a grande questão era como controlar essas pessoas? Por outro lado, enquanto tudo isso acontecia nas ruas, estradas e nos fronts, havia também uma alienação das elites e a forte manipulação das massas, sendo incitadas a se alistarem para lutar. De acordo com Gleeson-White,

Em Guerra e Paz, a alma da Rússia é incorporada pelo general Kutuzov, cuja consciência de seu próprio papel marginal no desenrolar dos acontecimentos é imensamente diversa do temperamento egoísta e dos sonhos heroicos de Napoleão, tal como Tolstói retrata. Kutuzov compreende que as batalhas são decididas não por indivíduos, não por generais, mas por ‘aquela força intangível chamada espírito do exército, e ele atenta para essa força e a dirige até onde seu poder alcança’. A interpretação do papel de Kutuzov feita pelo escritor russo contrapõe-se à visão comum da época, que considerava o velho general ultrapassado e ineficaz”. (GLEESON-WHITE, 2010, pág. 100/101)

É assim que Alexandre I vence a guerra: convence a população de Moscou a deixar a cidade – mulheres, crianças, mujiques, servos, todos vão para o interior, para as datchas, abandonando o centro de governo que seria tomado por Napoleão a fim de começar a governar. Porém, ao chegarem lá, não havia para quem governar e nem a quem combater. Além disso, chegaram durante o inverno rigoroso da Rússia, com a expectativa de uma superioridade em relação ao país, acreditando que todos seriam dóceis e submissos à sua invasão. Porém, a eslavofilia venceu, deixando-lhe apenas a cidade fantasma. Essa estratégia enfraqueceu as tropas napoleônicas, desmoralizando-as psicologicamente. Tolstói foi um grande adepto do realismo na literatura, dando voz àqueles que não têm voz, através dos livros e Guerra e Paz é um excelente exemplo dessa voz do povo russo.

A saída da aristocracia do meio urbano para o meio rural pode ser lida como uma forma de redenção que reflete o pensamento do autor. Os moscovitas saem de Moscou e vão para o campo, para as datchas, encontrando uma identidade russa e abandonando os costumes franceses. Aqueles salões do início do romance, que se parecem com as descrições de Balzac, mostrando como as ideologias francesas estavam incrustradas na vida da população russa, que tentava copiar o modelo de vida da França, abandonando suas raízes rurais, é derrubado pelo desejo de sobreviver, como uma redenção e volta às origens. De forma que a paz só é possível quando somos nós mesmos e quando conseguimos encontrar sentido na vida que temos, deixando de lado tudo aquilo que nos escraviza e nos leva para longe de nossas raízes mais profundas. Guerra e paz é um romance que fala sobre muitas coisas, que discute muitos assuntos e ao mesmo tempo, dá conta de mais uma página da nossa triste história de tantas batalhas inglórias que só geraram dor e sofrimento à população do mundo inteiro.

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