crítica

Incidente em Antares – Érico Veríssimo

Para alguns leitores os clássicos são livros ultrapassados, que ficaram perdidos no tempo e muitas vezes, datados. Assim, quando falamos em uma obra escrita e publicada há 51 anos, pode-se pensar a princípio que se trate de um texto enfadonho, cansativo e cheio de idiossincrasias da época que talvez nem valha a pena ser lido. Esse definitivamente não é o caso de Incidente em Antares (Companhia das Letras, 2005): aqui encontramos um livro super atual, bem-humorado, com sátiras extremamente inteligentes, críticas contundentes e o mais legal de tudo, que torna esse livro uma leitura obrigatória nesse período eleitoral – Incidente em Antares foi publicado em meio à ditadura militar.

Para Calvino, “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (CALVINO, 2007, pág. 8) e essa talvez seja a melhor definição para Incidente em Antares: quanto mais penso nele, mais certeza tenho de que ele ainda tem muito a me dizer e é um livro que cresce a cada vez que releio os trechos que destaquei nele. Mas, sobre o que fala essa história? Resumindo bem o enredo, para propor uma discussão sobre alguns temas abordados por Veríssimo, conhecemos uma cidade gaúcha, que faz divisa com o Uruguai, onde vivem algumas pessoas que se encontram na região há séculos e por isso se acham os donos do lugar. Através de duas famílias principais, que no início da narrativa eram inimigas, o autor mostra como funciona a administração de uma cidadezinha esquecida pelo resto do país, onde a corrupção anda solta e os poderosos mandam e desmandam ali, impondo seus costumes e suas escolhas a todos os demais moradores.

Até que um dia, motivados pelas lutas sindicalistas que estavam em alta no Brasil da década de 1960, todos os trabalhadores de Antares resolveram fazer uma greve geral para reivindicar os seus direitos a moradia digna, saneamento básico e salários que permitam o acesso ao mínimo da alimentação, saúde, educação e lazer. Neste dia, da greve geral, sete pessoas morreram na cidade. Os coveiros estavam participando desse movimento grevista e assim, os mortos de Antares não foram sepultados. Em protesto à falta de dignidade na hora da morte, eles resolveram contar todos os podres das autoridades antarenses a toda a população em praça pública. E é aí que começam as críticas e as sátiras do autor, chamando a atenção para assuntos urgentes que ainda não foram resolvidos no Brasil de 2022.

Junto ao núcleo fictício de personagens, o autor conta um pouco sobre a formação do estado do Rio Grande do Sul e aborda a política no Brasil, partindo do período da República. Por isso vamos encontrar no texto os ex-presidentes Vargas, JK, Jango e acompanhar as tramoias que culminaram no golpe de 1964. Mas, nem por isso, o livro é chato ou cheio de termos técnicos incompreensíveis ao leitor. Bem ao contrário: é um texto fluido e muito engraçado. Engraçado a ponto de darmos gargalhadas. E para produzir esse efeito, o livro é dividido em duas partes: a primeira, para apresentar a cidade ao leitor e os seus moradores mais importantes; a segunda, o incidente.

Para Maria da Glória Bordini, professora da PUC-RS que escreveu um prefácio maravilhoso para essa edição do livro, “Em Antares, há uma ascensão contínua de autoritarismo, que vai desde o caudilhismo sem dó nem piedade até a sustentação de um regime discricionário pela via da opressão e da tortura” (BORDINI, 2005, pág. 12). Essa situação é apresentada ao leitor na primeira parte do texto, mostrando a construção desse estilo de vida, que vem desde a colonização do Brasil. As falas dos personagens refletem bastante a cultura da escravidão, da diminuição dos menos favorecidos, da pessoa negra e de todas as minorias. Acompanhamos a construção do preconceito e da cultura do ódio e da intolerância. Ou seja, esse comportamento estúpido não começou de uma hora para outra, mas é secular e parece arraigado em Antares.

Os senhores compreendem, não é por mal, não somos racistas, Deus nos livre!, mas é que durante toda a história dessa sociedade nunca entrou em sua sede nenhuma pessoa de cor” (VERÍSSIMO, 2005, pág. 139/140)

Inicialmente, a cidade era composta por estâncias, assim, a vida parecia fácil e simples. Até que veio a industrialização e a estrada de ferro e dessa forma, os habitantes da cidade precisaram procurar emprego e não era mais possível haver apenas estancieiros. Sabe-se que a estrada de ferro trouxe novos moradores para a cidade, as pessoas tiveram a possibilidade de se locomover de um local para o outro e estabelecer residência onde lhes aprouver. Assim, criou-se uma comunidade em Antares de pessoas pobres, miseráveis, uma favela, chamada Babilônia. Essa comunidade, para os grandes estancieiros, para os ricos, simplesmente não existia. A prefeitura não se importava com essa parte da população e as pessoas eram relegadas ao esquecimento. Ali não havia saneamento básico, nem escola e os trabalhadores que se exauriam nas indústrias e fábricas dos poderosos, ganhavam um salário ínfimo, não tendo os seus direitos garantidos, apenas deveres a cumprir.

Esse exemplo da comunidade da Babilônia, representa um microcosmo do Brasil como um todo. Dessa forma, o livro deixa de tratar apenas do Rio Grande do Sul e passa a representar um país gigante, que não olha para todos os seus habitantes da mesma forma. A construção da população de Antares também não se distancia do que já estamos acostumados a ver no Brasil. Em uma das falas misóginas e racistas de um dos personagens mais ridículos da obra, fica bem clara essa opressão dos homens sobre as mulheres, principalmente sobre a mulher indígena:

Por outro lado, a ausência de mulheres da raça branca neste aldeamento leva os homens de origem portuguesa a servirem-se dessas indígenas para a satisfação de sua luxúria. O próprio senhor Bacariano, segundo me informou pessoa digna de fé, é pai de quase uma dezena de filhos naturais com várias dessas silvícolas, mas não os batiza nem legitima. Horroriza-me a ideia de que um dia, quando adultas, essas criaturas venham, sem o saber, a cometer incesto”. (VERÍSSIMO, 2005, pág. 21)

Antares é uma cidade tradicional, cheia de falsos moralistas, uma cidade hipócrita, como a maior parte das cidades do mundo. “Continuando uma velha tradição, nas missas de domingo e dias santos, os conservadores sentavam-se nos bancos da direita, à frente do altar-mor, e os liberais nos da esquerda”. (VERÍSSIMO, 2005, pág. 25). Essas tradições, passadas de geração em geração, contadas de forma oral, que fazem parte da educação das crianças, foi se perpetuando na cidade até tornar-se uma regra: cada um no seu lugar, sem invadir o espaço dos outros. O problema é que o espaço de uns é grande demais, enquanto o da maioria, é extremamente pequeno e opressor.

Veríssimo não perde a oportunidade de criticar o ensino de História no Brasil: “os livros escolares, cujo objetivo é ensinar-nos a história da nossa terra e do nosso povo, são em geral escritos em um espírito maniqueísta, seguindo as clássicas antíteses – os bons e os maus, os heróis e os covardes, os santos e os bandidos” (VERÍSSIMO, 2005, pág. 37). Os poderosos de Antares aplaudem o maniqueísmo, pois dessa forma, não é preciso muito para esclarecer as coisas e não ter de mudar nada. Quando os fatos são multifacetados e as pessoas pensam, as explicações simplistas não servem para nada e as justificativas parcas para a falta de saneamento, educação, saúde e acesso ao consumo, são descartadas e refutadas pelos que não aceitam mais viver e trabalhar em condições insalubres, colaborando apenas para o enriquecimento de uma classe privilegiada.

Quando lemos esses trechos do romance e comentamos sobre eles, parecem ser falas da atualidade. Mas infelizmente, em 51 anos, a situação do trabalhador e do pobre no Brasil continua a mesma. A nossa população continua igual à de Antares: lutando pelo mínimo de dignidade, enquanto aqueles que poderiam ajudar e fazer alguma coisa para mudar esse infortúnio, preferem atacar uns aos outros, juntar dinheiro vivo em casa ou esconder parte do erário público em paraísos fiscais. Dessa forma, percebe-se que Incidente em Antares é um livro muito atual e nada datado. Torna-se cada vez mais urgente conhecermos a história verdadeira do Brasil. Sem esses conhecimentos sobre como os preconceitos foram construídos e como a corrupção em todas as áreas se infiltrou na nossa gente, é difícil pensar em mudanças reais para o nosso futuro como nação e como sociedade.

Um dos temas bastante explorados pelo escritor no romance, é a sociedade machista e patriarcal de Antares, que representa ainda, infelizmente, uma parcela considerável da população brasileira. O desejo de estar sempre no poder, de mandar e de determinar as ações dos outros é uma das características principais de Tibério Vacariano, protagonista dúbio da obra. Ele representa os conservadores, aqueles que têm sede de poder e uma ganância fora do normal. Não basta para ele ser apenas rico, ele precisa mandar. Ele precisa controlar os outros e principalmente, mostrar ao mundo a sua virilidade:

Como observou alguém, não bastara aos gaúchos derrubar o governo federal: era preciso também, numa afirmação de machismo guasca, ridicularizar aquele símbolo fálico de São Sebastião do Rio de Janeiro” (VERÍSSIMO, 2005, pág. 55)

É claro que, como todo bom conservador, Tibério Vacariano, além de misógino é também racista. As colocações desse protagonista nos remetem a falas recentes de alguns políticos brasileiros e é completamente triste pensar que a humanidade não está caminhando rumo ao progresso e à libertação das amarras do passado racista e opressor da construção do Brasil sobre o genocídio da nossa população originária. Me choca bastante ler algo escrito na década de 1960, há mais de 60 anos e ainda perceber ecos do presente nesse diálogo tão cruel e obsceno:

Racista, eu? Ora, não sejas bobo. Sabes como trato a minha negrada. Eles me adoram. Mamei nos peitos de uma negra-mina. Me criei no meio de moleques pretos retintos. Quando leio esses casos de ódio racial nos Estados Unidos, comento a coisa com a Lanja que no Brasil a gente, graças a Deus, não tem esses problemas, pois aqui o negro conhece o seu lugar” (VERÍSSIMO, 2005, pág. 59)

O pior de tudo isso, é que infelizmente, essa fala reflete o Brasil do século XX. Lendo obras dos contemporâneos de Veríssimo, como Jorge Amado ou José Lins do Rego, vemos as mesmas situações, uma negação contundente do racismo. A ideia estúpida de achar que cada pessoa deve estar dentro de uma caixinha e ali permanecer. Acreditar que a raça define uma pessoa ou que a cor da sua pele determina o seu destino. Atualmente, abominamos qualquer tipo de manifestação nesse estilo, mas, para algumas pessoas que vivem presas ao passado, a vida continua sendo dividida em castas e em classes sociais, onde poucos são os privilegiados e muitos os oprimidos. Em outra fala do personagem, a evidência da xenofobia e do preconceito ficam mais visíveis:

Eu já preveni a Lanja, os meus filhos e o meu médico. Se um dia por desgraça eu precisar de uma transfusão, não quero que me metam nas veias sangue de negro, nem de judeu, nem de comunista” (VERÍSSIMO, 2005, pág. 116)

A vida de aparências em Antares também é outro tema explorado por Veríssimo nesse romance. Um professor que afirma categoricamente ter se correspondido com Proust em francês e lido toda a saga Em busca do tempo perdido no original, quando na verdade, para ter feito tudo isso, sua correspondência com o escritor se deu quando o professor tinha nove anos de idade. Pessoas acima de qualquer suspeita, que na verdade são adúlteras, mentirosas e apenas esperam o falecimento de seus entes queridos para colocar as mãos em sua herança. Caso da família de D. Quitéria Campolargo, uma das falecidas durante a greve. Ao voltar em sua casa, ela vê que suas filhas e genros não estão enlutados por sua morte. Estão apenas brigando por seus bens. Muitos casos extraconjugais são denunciados em praça pública, assim como toda a corrupção da prefeitura e dos advogados da cidade.  É como se Antares fosse construída em cima de uma farsa, de um punhado de mentiras que se sobrepõem e que se perpetuam ali, gerando uma população infeliz e hipócrita.

Essa discussão ganha força quando aparece um pesquisador na cidade, uma espécie de senso e, os habitantes de Antares tentam esconder os seus podres, mentem a ele, contam histórias inventadas, elevam a sua moral e os seus feitos “heroicos”, tentam a todo custo esconder a Babilônia e se sentem indignados quando a pesquisa se torna um livro, que conta a verdade sobre a população de Antares, com ênfase para os moradores esquecidos da comunidade da Babilônia. Os grandes protagonistas tentam de todas as formas invalidar os estudos sociais do pesquisador, o que nos remete imediatamente aos episódios recentes no Brasil sobre os questionamentos em relação às vacinas contra a Covid. Infelizmente, no país, muitas doenças que estavam erradicadas há muitos anos estão voltando a perturbar os brasileiros, devido à diminuição da aderência à vacinação infantil. Esses fatos são resultados de Fake News, que invalidam o efeito das vacinas e que sugerem que elas provocam outras reações e doenças na população.

Além das Fake News, que já circulam no mundo desde o começo de tudo, há ainda outro fator importante e muito preocupante que é a manipulação de dados. No romance, essa distorção da realidade acontece em dois momentos relevantes: primeiro na pesquisa do historiador e segundo após o incidente, onde um jornalista escreve um artigo relatando os fatos daquele dia e, por ordem do prefeito, do delegado e de Tibério Vacariano, ele é impedido de publicar o seu texto e outra versão dos fatos é contada, dando início à “Operação Borracha”, ou seja, o apagamento de tudo o que foi dito pelos mortos no coreto da praça para quem quisesse ouvir. Não preciso me alongar aqui em dizer que muitas operações borracha aconteceram e acontecem no Brasil. Somente para ilustrar a atualidade desse romance, recentemente, foi aprovado no congresso uma lei de sigilo de cem anos protegendo as ações políticas ilícitas praticadas durante o governo. Podemos citar ainda os arquivos secretos do AI-5, que foram abertos e se tornaram públicos há menos de dez anos. Assim, a “Operação Borracha” continua sendo uma fonte de inspirações para a corrupção, a tortura e o ódio correrem soltos Brasil a fora.

As mortes por tortura também são abordadas pelo autor na obra. É bastante comum que a população conservadora relacione ativistas em geral ao comunismo. Assim, qualquer um que estiver militando ou lutando por justiça social é considerado subversivo e perigoso. Além disso, as autoridades responsáveis pela censura criam em sua imaginação grupos de intifadas, de revolucionários perigosos que logo ganham um “chefe”, que seria o líder de algum movimento social. Essa pessoa geralmente é presa e torturada para delatar outros participantes do grupo, que muitas vezes nem existe de verdade. É claro que em Antares aconteceram mortes por torturas que foram jogadas para debaixo do tapete, pois, todos os “mandas-chuvas” da cidade estavam envolvidos até o pescoço nesses crimes. A tortura no Brasil foi criminalizada na Constituição de 1988. Porém, antigamente, na época em que o livro foi publicado, não havia muita clareza em relação a essa prática horrenda.

Para termos uma ideia de como o Brasil ainda tem um pensamento conservador e árcade, ontem, dia 13 de setembro de 2022, foi divulgada uma pesquisa do Ipec – Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica, onde perguntaram aos brasileiros se são a favor do aborto. 79% dos entrevistados responderam não, 8% não souberam opinar e apenas 13% são a favor do aborto em casos de estupro ou de risco de morte da mãe. A pesquisa também questionou se os brasileiros são a favor da pena de morte: para a minha grande surpresa e horror, 42% dos entrevistados responderam que sim, contra 49% que disseram não. Ora, como uma pessoa pode ser a favor da pena de morte e contra o aborto em casos específicos? Infelizmente esses dados mostram muito sobre a nossa população e sobre o atraso de nosso pensamento. Dessa forma, quando Veríssimo diz:

Comunista é o pseudônimo que os conservadores, os conformistas e os saudosistas do fascismo inventaram para designar simplisticamente todo o sujeito que clama e luta por justiça social” (VERÍSSIMO, 2005, pág. 390)

ele está mais atual que muitos de nós brasileiros.

Érico Veríssimo satiriza um hábito muito comum no mundo inteiro: a santificação dos mortos. Em dois momentos do romance, essa sátira se faz presente – a primeira, no ensejo da morte de Getúlio Vargas: “Neste país, basta um homem morrer para logo ser promovido a santo. O Getúlio tinha muitas qualidades, mas também muitos defeitos. O estrangeiro que examinar a situação do Brasil hoje terá a impressão de que o nosso povo ficou de repente órfão de pai” (VERÍSSIMO, 2005, pág. 104). O segundo momento onde essa crítica é feita, é na ocasião das sete mortes durante a greve. Os mortos de Antares não têm nada de santos. Muito pelo contrário, parecem não se importar mais com as aparências e simplesmente confessam todos os seus crimes e pecados em praça pública. É quase uma desconstrução de ideia de uma continuidade da vida, como se aqueles atos ali se encerrassem e nada mais pudesse atingir aquelas entidades.

O uso do realismo mágico pode ser lido como uma forma de resistência. É importante lembrar que o romance de Veríssimo foi publicado em meio à ditadura militar, onde as obras literárias e os jornais passavam por forte censura. Criar uma alegoria, dentro de um texto bem-humorado, disfarça o peso político da obra. Quando analisado de forma mais crítica, ficam óbvias as escolhas do escritor em denunciar o abuso de poder, as manipulações de dados e a farsa de um sistema de governo que em nada beneficiava o povo brasileiro. A desculpa usada de que o regime ditatorial impediu o comunismo de se instalar no Brasil, continua sendo usada atualmente como principal motivo para desestimular o voto em partidos liberais de esquerda. A desinformação, outro tema muito abordado pelo escritor na obra é a causa desse tipo de argumentação ainda vigorar e gerar tantos frutos no país da ignorância e do analfabetismo funcional.

Há no texto do autor fortes referências à obra de Albert Camus, tais como A peste, O estrangeiro e O homem revoltado. Até os ratos tão emblemáticos do romance francês dão o ar de sua graça em Antares para mostrar o absurdo de tudo o que estamos normatizando como regras de vida. Em um momento de campanhas eleitorais, muitos trechos de Incidente em Antares se fazem relevantes para nos alertar sobre as práticas comuns e corriqueiras adotadas pela classe política, em uma tentativa de conquistar os votos do eleitorado. Falsas promessas, denúncias de corrupção, conchavos, e esse discurso que quando li em Incidente em Antares, me lembrei de uma figura deplorável que ocupa o poder executivo nesse momento:

Povo de Antares! Pais e mães de família! Alerta! Os inimigos estão já dentro dos nossos muros! Protegei a vossa intimidade. Fechai a vossa porta e os vossos corações a esses forasteiros curiosos e indiscretos, agentes do comunismo internacional ateu e dissolvente. O Prof. Martin Francisco Terra, o chefe dessa quadrilha vermelha disfarçada, está fichado no DOPS, como marxista confesso. Defendamos a nossa crença em Deus, na Pátria, na Família e na Propriedade! ” (VERÍSSIMO, 2005, pág. 140)

Apesar de qualquer semelhança com a realidade ser mera coincidência, ainda existem discursos baseados em falácias, que são feitos com o intuito de convencer as pessoas de que elas correm riscos sérios de perderem os seus direitos civis. Ainda assim, como disse um dos personagens do romance, “quando nos convém, invocamos a Constituição. Quando não convém, estamos prontos a rasga-la” (VERÍSSIMO, 2005, pág. 134), mostra o caráter daqueles que produzem esses discursos inflamados em prol de valores caros à maioria dos cidadãos brasileiros. Entretanto, eles pouco se importam com esses dogmas clamados nos palanques eleitorais. O que lhes é caro mesmo são o dinheiro e o poder, nada mais, nada menos.

Para não incorrermos nos erros do passado é preciso educação, conhecimento e pensamento crítico. Por isso, obras como Incidente em Antares são tão necessárias em 2022. Representando mais uma vez um microcosmo do Brasil, tornando-se universal e atemporal, um livreiro de Antares diz ao historiador:

Nosso povo não tem o hábito da leitura. Os que aqui gostam de ler não têm dinheiro para comprar livros, e quando compram, custam a pagar ou não pagam nunca. Os que têm dinheiro em geral não gostam de ler. Há por aí uns intelectualoides que quando precisam de livros mandam busca-los diretamente de Buenos Aires, do Rio de Janeiro e até de Paris. O que a maioria do nosso povo aprecia mesmo são as revistas com histórias em quadrinhos e as novelas de rádio. Se o livro desaparecesse da face da Terra, acho que o povo de Ribeira nem chegaria a dar pela coisa” (VERÍSSIMO, 2005, pág. 152)

Dessa forma, só existe um antídoto à mentira, à desinformação, às Fake News e à ignorância: o pensamento crítico, construído através da educação de qualidade, da curiosidade, da pesquisa, da investigação e da sede de conhecimento. Sem isso, estaremos fadados a repetir o passado vezes sem conta e a viver uma vida de mentira e de opressão dos povos menos favorecidos, assim como afirmou um dos entrevistados ao historiador:

Veneramos morbidamente um passado e uma tradição já mortos, se é que de fato um dia já existiram mesmo, e somos incapazes de sair dos trilhos da rotina e erguer a cara para o sol do futuro” (VERÍSSIMO, 2005, pág. 151)

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