crítica

Júbilo, memória e noviciado da paixão – Hilda Hilst

Coletânea de poemas da escritora, dividida em sete partes, cada uma composta por temas específicos e com textos que dialogam entre si, Júbilo, memória e noviciado da paixão (Cia das Letras, 2018) é um belo livro de poesias, que me deixou fascinada pela autora. Escritos em versos livres, porém com uma certa cadência, com musicalidade e leveza ao se declamar, os poemas dessa antologia conversam com o leitor com profundidade, levando-o à reflexão sobre as abordagens da autora: o amor, a lírica, a épica, a paixão, a mitologia, a solidão, o tempo, o envelhecimento e sim, a política.

É importante dizer que Hilda Hilst escreve sobre política porque a crítica a considerava uma pessoa alienada e que pouco se importava com os acontecimentos externos ao seu mundinho fechado. Isso porque ela construiu para si uma casa no terreno de sua família, em uma chácara próxima à Campinas e se mudou para esse lugar com o propósito de escrever. Não era vista em público com frequência e preferia a companhia dos amigos a se expor demais em locais badalados, onde os artistas da época se reuniam. Assim, como sempre costumamos fazer, os jornalistas e críticos cobravam de Hilda sempre um posicionamento em relação às turbulências políticas da época, tais como a ditadura, o regime comunista, a guerra fria e tantos outros eventos importantes do século XX.

Considerada atualmente como uma das maiores escritoras de língua portuguesa do século passado, ela foi além de poeta, dramaturga, cronista e romancista. Suas principais influências foram Joyce e Samuel Becket, trazendo para os seus romances o fluxo de consciência, característica marcante do modernismo. Além dessas influências, a autora faz menções sempre ao seu pai, que sofria de esquizofrenia paranoide. A saúde mental e as questões relacionadas a esse tema foram abordadas em muitas das obras de Hilda, questionando as fronteiras entre a sanidade e a loucura. Outro assunto muito caro a ela é a relação do homem com Deus, algo bastante desenvolvido nessa coletânea de poesias. Foi também a melhor amiga de Lygia Fagundes Telles, que conheceu na Faculdade de Direito, na década de 1940.

Uma característica comum nos poemas dessa antologia é a forma como a autora se refere ao “eu lírico” dentro dos poemas. Ela sempre fala “o poeta”. Sabendo o leitor que os textos foram escritos por uma mulher, essa característica chama a atenção. Questionada sobre o assunto, ela disse que não acreditava que a mulher fosse capaz de pensamentos elevados e por isso preferia dizer “o poeta” no lugar de “a poeta”. É triste essa constatação da autora, entretanto, ela reflete um pensamento comum da época de Hilda, onde a mulher não tinha espaço para o intelecto, servindo apenas como adorno ou serviçal à mercê dos homens. Por sorte e através de muitas lutas, esse pensamento não condiz mais com os dias atuais e hoje, podemos reconhecer a obra de Hilda com a grandeza que ela tem e com os méritos que lhe foram ofuscados quando da publicação de suas obras. Sem mais delongas, vamos aos poemas!

A primeira coletânea que compõe essa antologia chama-se Dez chamamentos de amigo e o próprio título já nos diz muito sobre o que vamos encontrar nesses textos: uma referência clara às canções de amigo – composições breves da lírica medieval, cantadas na voz de uma mulher apaixonada. Ficaram conhecidas como cantigas de amigo porque o eu lírico se referia ao pretendente como amigo. O tema principal dos poemas dessa coletânea é o amor, com ênfase no relacionamento a dois, na passagem do tempo e nas nossas relações interpessoais.

Poema VIII

De luas, desatino e aguaceiro

Todas as noites que não foram tuas.

Amigos e meninos de ternura

Intocado meu rosto-pensamento

Intocado meu corpo e tão mais triste

Sempre à procura do teu corpo exato.

Livra-me de ti. Que eu reconstrua

Meus pensamentos amores. A ciência

De me deixar amar

Sem amargura. E que me deem

A enorme incoerência

De desamar, amando. E te lembrando

– Fazedor de desgosto –

Que eu te esqueça. ” (HILST, 2018, pág. 15/16)

A segunda coletânea, chama-se O poeta inventa viagem, retorno e sofre de saudade. A primeira característica marcante dessa parte do livro são as referências à mitologia que a autora faz aqui. A construção dos poemas remete à épica e até mesmo o título dessa coleção de textos mostra essa referência. O eu lírico faz súplicas à natureza para ter tempo suficiente de viver o amor. Há um grande medo da morte, do obscuro e a autora aborda bastante o tema da solidão e da ausência do amado, que recebe o nome de Túlio. Nesse compilado de poemas, percebemos não só a competência de Hilda como poeta, dramaturga, cronista e escritora, como também a sua grande erudição.

Poema XV

Amada vida: a dádiva de ser, de Túlio

A única paisagem, inumerável, única a seus olhos,

É o que pede o poeta à amada vida.

Que importa

A Túlio contemplar os frutos, romãs, ou mesmo

Rosas, se por amor a ele me transmuto, e posso

A um tempo só, ser flor e fruto, e além do mais

Poeta, prodigiosa?

Que importa a Túlio o mergulhar nas águas

Se por amor a ele, maré alta e praia

A cada dia me faço, dadivosa? Que importa ao amado

O deslizar das horas, o passo nos caminhos,

O olhar diante do Tempo, umas duras planícies,

E bulbos e romãs e rosas fenecendo

Se por amor a ele, me faço amor e morte? ” (HILST, 2018, pág. 33/34)

O terceiro livro da antologia chama-se Moderato contabile, onde a autora dedica mais seis poemas à Túlio, dessa vez mais intensos e voltados à paixão urgente. O quarto livro chama-se Ode descontínua e remota para flauta oboé. De Ariana para Dionísio. Essa coletânea de poemas é tão bonita, que foi musicada por Zeca Baleiro e cantada na voz de diversos intérpretes da música brasileira, compondo um álbum musical com os poemas de Hilda. Os temas abordados aqui são a importância da escrita, do ser poeta, antes de ser amante de alguém. A autora também trabalha a questão da intimidade não compartilhada entre os casais e que geralmente ficam entre quatro paredes. Ela também volta às referências mitológicas dessa vez com mais intensidade e clareza.

Poema VIII

Se Clódia desprezou Catulo

E teve Rufus, Quintius, Gelius

Inacius e Ravidus

Tu podes muito bem, Dionísio,

Ter mais cinco mulheres

E desprezar Ariana

Que é centelha e âncora

E refrescar tuas noites

Com teus amores breves.

Ariana e Catulo, luxuriantes

Pretendem eternidade, e a coisa breve

A alma dos poetas não inflama.

Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta

Que seja sempre terra o que é celeste

E que terrestre não seja o que é só terra” (HILST, 2018, pág. 51/52)

O quinto livro dessa antologia chama-se Prelúdios intensos para os desmemoriados do amor, onde os poemas são voltados tanto para o amor romântico, quanto para o amor erótico. A autora vai falar bastante também sobre a passagem do tempo.

Poema V

Aos amantes é lícito a voz desvanecida.

Quando acordares, um só murmúrio sobre o teu ouvido:

Ama-me. Alguém dentro de mim dirá: não é tempo, senhora,

Recolhe tuas papoulas, teus narcisos. Não vês

Que sobre o muro dos mortos a garganta do mundo

Ronda escurecida?

Não é tempo, senhora. Ave, moinho e vento

Num vórtice de sombra. Podes cantar de amor

Quando tudo anoitece? Antes lamenta

Essa teia de seda que a garganta tece.

Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícito

Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome

Tão intenso meu canto, tão flamante meu preclaro tecido

Que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo. ” (HILST, 2018, pág. 60/61)

O sexto livro chama-se Árias pequenas para bandolim, que são poemas dedicados novamente à Túlio, onde o eu lírico se despede desse personagem. O conjunto de poemas dessa coletânea formam uma ária única e turbulenta. A solidão, a passagem do tempo, a natureza com belas descrições de ambientes e de paisagens são os temas recorrentes aqui.

Poema XVII

O poeta se fez

Água da fonte

Infância

Circunsoante

Madeira leve

Límpida caravela

E Túlio não quis.

O poeta se fez

Aroma

Voz inflamante

Vestido

Metalescente

Insânia

E Túlio não quis.

O poeta se cobre

De visgo, de vergonha

Enterra seu bandolim

Artimanha de sonho

Tem corpo de luto

E o rosto de giz

Porque Túlio não ama. ” (HILST, 2018, pág. 78/79)

O último livro dessa antologia chama-se Poemas aos homens do nosso tempo e são poesias de cunho político, dedicados às grandes personalidades que enfrentaram ou sofreram com os regimes totalitários do século XX. São poemas longos que falam sobre o homem comum, os sentimentos humanos voltados ao coletivo. Algumas das personalidades homenageadas nessa antologia são Alexander Solzhenitsy, autor do famosíssimo Arquipélago Gulag, dramaturgo e historiador russo e preso político durante o regime soviético. Federico García Lorca, poeta e dramaturgo, uma das primeiras vítimas da Guerra Civil Espanhola. Alexei Sakharov, físico nuclear soviético, que lutava pelas liberdades individuais e foi contemplado com o Prêmio Nobel da Paz em 1975. Pavel Kohout, romancista, poeta e dramaturgo tcheco, participou da Primavera de Praga e foi proibido de voltar ao seu país por causa da invasão da URSS na Tchecoslováquia na década de 1970. Piotr Yakir, historiador soviético, que sobreviveu à infância em um Gulag e denunciou as atrocidades que se passavam nos campos de concentração soviéticos. Por fim, Mario Faustino, jornalista, tradutor, poeta e crítico literário brasileiro, que publicava poesias no Jornal do Brasil.

Através dessas dedicatórias, Hilda mostra a sua posição política que tanto lhe cobraram. Ela prova que as nossas escolhas literárias e as nossas falas, tanto críticas quanto questionamentos ou aprovações aos textos que lemos, mostram muito sobre nós e sobre a nossa posição em relação aos conflitos políticos que acontecem ao nosso entorno. Não há uma necessidade de afirmação constante sobre o que abominamos ou o que apoiamos, afinal, estamos o tempo todo nos expondo e, nas entrelinhas falando o que pensamos sobre a vida, o cotidiano e a situação mundial. Foi maravilhoso conhecer a Hilda poeta e pretendo ler mais dessa autora que mal conheço e já considero pakas.

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