crítica

Judas – Amós Oz

Shmuel é um jovem israelense que passa por um momento de enorme frustração em sua vida: a noiva terminou com ele e casou-se com outro, seu pai faliu e por isso não pode continuar pagando os seus estudos na Universidade e diante de tantos problemas, o rapaz também perdeu o emprego. Logo no começo da narrativa temos uma amostra de quem é Shmuel, que vai ganhando camadas ao longo dos capítulos seguintes, mas a princípio, percebemos claramente que ele é uma pessoa solitária, infeliz, muito inteligente, mas que tem grandes problemas de comunicação interpessoal, fazendo com que fique isolado dos familiares e dos colegas de faculdade.

Shmuel é obcecado pela história de Judas Iscariotes, uma figura que de acordo com o seu ponto de vista foi injustiçado pela história do cristianismo e que merece justiça. Por isso, ele realiza na universidade uma pesquisa extensa sobre o assunto e pretende escrever uma tese, que se tornará um livro, contando a trajetória de Cristo sob a perspectiva de Judas. Porém, sem a ajuda financeira do pai e sem o emprego que perdeu, Shmuel não pode dar continuidade aos seus estudos, algo que o deixa arrasado e mais infeliz que já é.

Em meio a tantos dissabores, Shmuel se depara com um anúncio de trabalho que muito lhe agrada: fazer companhia a um idoso, trabalhando poucas horas por dia, com direito à moradia e refeições como parte do salário. Ele não hesita em se candidatar à vaga e logo consegue o emprego. Seus familiares ao ficaram sabendo dessa decisão de Shmuel, tentam dissuadi-lo a aceitar esse trabalho, que parece bastante estranho. Porém o jovem não desiste e se muda para a água-furtada do casarão onde conhece o idoso e solitário Guershon Wald e sua nora Atalia Abravanel.

Este não seria um livro de Amós Oz se não nos apresentasse discussões filosóficas envolvendo a questão dos conflitos israelo-palestinos e o judaísmo. E são esses posicionamentos conflitantes e divergentes que vamos acompanhar ao longo desse romance. Mas tudo isso é colocado na obra de forma bastante intrínseca, sendo fácil ao leitor acompanhar as discussões e principalmente, levando-o a reflexões que provavelmente nunca foram feitas por nós ocidentais e cristãos.

Ao começar a trabalhar para a família de Wald, Shmuel, assim como o leitor, tem uma curiosidade enorme sobre os motivos pelos quais esse homem vive sozinho dentro de seu escritório, brigando através do telefone com interlocutores que não sabemos se são reais ou imaginários e também porque não conversa com a sua nora e nem sai mais de casa. Aos poucos, o protagonista consegue conquistar Guershon e ele lhe conta a sua história que está totalmente relacionada ao conflito de 1948, entre Israel e Palestina, quando foi criado o Estado de Israel.

Em paralelo aos dramas e sofrimentos de Guershon Wald, está a desiludida Atalia Abravanel, filha de um conselheiro do então primeiro ministro israelense David Ben-Gurion e que foi considerado um traidor após o massacre de civis e de militares, feitos dos dois lados, tanto do israelense quanto do palestino, e que provocou a morte de muitas pessoas e decretou o início de um conflito que nunca teve fim. Shtizel Abravanel cresceu em Israel antes da criação do estado e dessa forma, tinha amigos palestinos, frequentava os mesmos ambientes que eles e todos conviviam bem, até certo ponto. Quando houve a criação do Estado de Israel, ele passou a ser um inimigo dos palestinos, seus amigos lhe viravam a cara e não queriam mais saber de sua companhia. Por outro lado, como se posicionou contra a luta armada proposta pelo Governo, a fim de demarcar o território de Israel, seus pares também o viam como um traidor da pátria e assim, ele foi afastado do governo e passou a ser visto como um pária na cidade.

Apesar de sua filha Atalia não ter com o pai boas relações familiares, ela o compreendia bem no sentido político. Apoiava a sua visão de uma solução de dois estados, evitando os conflitos bélicos, que só trazem prejuízos a todos. Ao passo em que o sogro, Guershon Wald tem uma opinião divergente deles e acreditava na força e na guerra como único meio de Israel ter os seus direitos garantidos. As opiniões de Wald vão se modificar um pouco depois da tragédia pela qual passará o seu único filho, Micha. A perda do filho tão jovem e tão cheio de vida, de sonhos e de esperanças o fará rever os seus conceitos, apesar de não compartilhar do mesmo ponto de vista de Shtizel Abravanel.

As discussões sobre os conflitos são sensacionais porque o autor consegue fazer com que o leitor fique imerso na leitura e assim reflita sobre as consequências das decisões que foram tomadas por Ben-Gurion naquele ano, mas que não foram somente dele, foram principalmente apoiadas pela população. Os pais enviaram seus filhos para o front, aqueles que não quiseram participar do conflito armado tendo condições para tanto foram hostilizados e chamados de covardes. Foram empenhadas forças de todos os lados para a tomada de Israel e esse acontecimento mudou para sempre a vida das pessoas que ali estão.

Amós Oz em seus ensaios e textos de não-ficção, sempre coloca como única alternativa para a cessão dos conflitos a solução de dois estados, que seria a convivência pacífica entre árabes e israelenses. Ao mesmo tempo, ele tem consciência de que sem a demarcação da área ocupada pelos judeus, um dia qualquer, eles poderiam ser expulsos de lá outra vez e terem de vagar pelo mundo a fora em uma eterna diáspora, que teve início com a suposta traição de Judas Iscariotes a Jesus Cristo no ensejo da crucificação. Por isso, neste romance, ele consegue fazer uma intersecção entre as duas histórias: a tragédia de Judas, que provocou a perseguição contra os judeus, que culminaram na Segunda Guerra Mundial e pouco tempo depois, nos conflitos israelo-palestinos.

De acordo com as pesquisas de Shmuel, Judas não teria traído Jesus, ao contrário, seria o primeiro cristão, o único a acreditar mesmo que Jesus desceria da cruz e se salvaria. Ele também argumenta que antes de Paulo de Tarso criar o cristianismo, todos eram judeus e deixaram de ser após Judas sofrer a acusação de traição. Em meio à argumentação, ele mostra as formas caricatas e inverossímeis de representação de Judas ao longo dos séculos, o que contribuiu bastante para a perseguição dos judeus nos anos seguintes. Esse é um ponto de vista que diverge muito da nossa opinião ocidentalista. Porém, precisa ser considerado e talvez validado. Afinal, sabe-se que o antissemitismo começou com a inquisição, no século XIV, onde milhares de pessoas foram queimadas em fogueiras por serem consideradas traidores de Cristo, ou seja, judeus.

É claro que em meio a tantas desventuras, o protagonista também vai se apaixonar por Atalia, que é bem mais velha que ele. O que o atrai para essa mulher é justamente a sua inacessibilidade e a sua solidão, que dialoga bastante com a dele. Shmuel no final das contas foi parar em um ambiente onde ele era mais compreendido que dentro de sua própria família. Em um dos capítulos mais bonitos do livro, ele recebe uma carta de sua irmã, onde ela nos mostra como as pessoas veem o jovem: taciturno, inacessível, fechado, apático, alguém que só pensa em estudos e que só consegue conversar sobre temas capciosos e intelectuais, característica esta que afugenta as pessoas em geral. A irmã do protagonista alega que ele nunca soube se divertir, nunca relaxou e jamais abandonou o seu jeito intelectual e que por isso sua noiva o deixou.

Para quem já leu os livros de não-ficção de Amós Oz e principalmente suas memórias em De amor e trevas, vai reconhecer muito da vida do autor nesse romance. Seu posicionamento político dissolvido nas falas tanto de Shtizel Abravanel quanto de Guershon Wald; o caráter intelectual dos judeus, onde desde muito crianças eles aprendem a amar os estudos, a aprender muitos idiomas e a estarem cercados por livros e por assuntos sérios demais, algo que leva muitos deles ao isolamento, à solidão e à depressão. E por fim, a sua infância na Palestina, onde ele tinha amigos das duas nacionalidades e se sentia confortável junto aos povos árabes, algo que lhe foi tirado após o cerco de Israel.

Ler Amós Oz é sempre uma fonte muito rica de aprendizado e de incentivo ao pensamento crítico e analítico. O autor tem a capacidade de nos contar boas histórias, entremeadas à História do povo judeu e também da sua situação política dentro dos conflitos israelo-palestinos. Esse é sim um lugar comum em suas obras, pois, afinal, o escritor viveu toda a sua vida inserido nesse lugar, sofrendo na pele as consequências das decisões políticas do Estado de Israel e lutando até o fim por uma solução pacífica da crise instalada em 1948. Neste romance, conseguimos ter uma visão mais ampla das perseguições contra os judeus pelo mundo e uma perspectiva mais abrangente sobre o Estado de Israel e sua importância para a comunidade judaica.

É preciso destacar que, para alguns leitores, esse livro pode soar ofensivo. Por isso, se for ler esse ou qualquer outro livro do autor, é fundamental se esvaziar de todos os pré-conceitos existentes em nós para entrarmos na história abertos a novas possibilidades, quebras de paradigmas e principalmente, estarmos consciente de que cada indivíduo tem as suas vivências e suas experiências que são intransferíveis e por isso é necessário respeitar a opinião do outro, mesmo que esta seja totalmente divergente de nossa. Apesar de todas essas observações, recomendo demais a obra extensa de Amós Oz para leitores de mente aberta.

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