crítica

Kentukis – Samanta Schweblin

Atualmente, em nossas casas, em nosso trabalho e em todos os lugares que frequentamos, convivemos diariamente com a tecnologia, que tanto pode ser usada para o bem quanto para o mal. Essa é a reflexão proposta pela escritora argentina Samanta Schweblin em seu último romance Kentukis (Fósforo, 2021). Utilizando-se de técnicas de escrita contemporânea, onde os não-ditos dizem mais que o escrito, a autora aborda temas comuns aos seres humanos tais como solidão, voyeurismo, preconceito, afetos e principalmente a nossa relação com a tecnologia.

Kentukis são bonecos de pelúcia em forma de bichinhos fofos – ou não – com uma câmera acoplada em seus olhos, que são comandadas por um desconhecido, que sim, está te vendo, está te ouvindo, como se fosse uma pessoa dentro da sua casa. O Kentuki é comandado através de um tablet e só pode se conectar com aquele bichinho específico. A conexão é quebrada se um dos dois interromperem a conexão: o Kentuki, desligando o tablet ou o amo, deixando de carregar o robô. Na história de Schweblin, essa prática não é regularizada e por isso, cada um faz o que bem entende com o Kentuki, portanto, há pedófilos comandando tablets, assim como pessoas solitárias, mercenários, crianças que vivem com pais ausentes, voyeurs, chantagistas, etc.

A primeira referência que podemos fazer entre o livro e a vida real são as nossas conhecidas redes sociais: vejo constantemente produtores de conteúdo pedindo aos seus seguidores que interajam com as postagens e vídeos, pois, ao se ausentarem das redes por motivos de doença, problemas pessoais ou até mesmo detox das redes, o algoritmo que comanda a entrega de conteúdo deixa de enviar as postagens desse produtor, como se fosse uma espécie de vingança, de castigo por a pessoa não ter alimentado aquele perfil com a frequência solicitada pela rede, nos tornando assim escravos das redes sociais.

É claro que alguém está ganhando muito dinheiro com essa escravidão, com essa dependência que criamos das redes e, não só isso: muitos de nós, terminamos por ter uma vida de aparência, mostrada através de recortes nas redes sociais, a qual muitas vezes não corresponde à nossa realidade. Outro ponto muito explorado por Schweblin no livro é a solidão à qual estamos expostos nos últimos tempos. É comum entrarmos em restaurantes e observarmos as famílias nas mesas: cada membro com o seu celular nas mãos, todos em silêncio, cada um em seu mundinho particular e as relações familiares se perdem.

Em Kentukis temos o exemplo de Emília, uma senhora que tem um único filho que vive bem longe dela. Os dois não têm nada em comum. Parecem estranhos um ao outro. Emília demonstra um desejo de se aproximar do filho, de ter com ele algum tipo de conexão mais forte, mais verdadeira. Um dia, ele lhe presenteia com um tablet para comandar um Kentuki. Inicialmente ela estranha o presente, questiona. Mas, não demora muito a se render e passa a ter com a sua ama uma relação maternal. A história de Emília não tem um final feliz. Ela é traída por sua ama e por seu futuro Kentuki, presente de uma de suas amigas. A relação com o filho se tornou mais constante enquanto ela tinha um Kentuki, pois assim, eles tinham algum tipo de assunto para conversar através do WhatsApp.

Personagens como Emília são muito comuns na vida real. Recentemente, foi lançada uma série na Netflix, chamada O golpista do Tinder, que mostra mulheres de várias nacionalidades, instruídas, empoderadas, que caíram no golpe de um homem que se dizia explorador de minas, de pedras preciosas. A solidão, o desejo de se relacionar com uma pessoa arrojada, de se sentir amada, faz com que pessoas de todas as classes sociais e com todo tipo de escolaridade caiam em golpes desse tipo. Muitas vezes as julgamos como tolas, obtusas, porém, um dia, podemos ser vítimas também dessas pessoas que se utilizam das nossas vulnerabilidades para se dar bem e nos roubar.

Sobre a solidão, a autora disse em entrevista:

Entre muitas outras coisas, queria me perguntar sobre a solidão que às vezes nos reserva a tecnologia e sobre todos os limites que nós mesmos quebramos quando não entendemos totalmente como ela funciona. Queria que os leitores tivessem empatia com os personagens a ponto de pensar que, em situações semelhantes, eles teriam tomado as mesmas decisões. Para mostrar a eles, mas principalmente a mim, quantas vezes pensamos que somos os mocinhos, mas na realidade estamos fazendo um dano irreparável. O quanto podemos romper e nos lastimar ao jogar com tecnologias que parecem familiares para nós — como mídia social e todos os nossos dispositivos de comunicação “inofensivos” —, mas que, na verdade, não sabemos de nada

A nossa exposição constante nas redes sociais também contribui para que sejamos vítimas de golpes e furtos. No livro, Schweblin aborda essa questão de diversas formas. A história que abre o romance mostra uma jovem que desejava se integrar ao grupo da escola, porém, falava mal das amigas e se expunha em demasia na frente do Kentuki, confiando-lhe seus segredos, suas agruras. Até que um dia, ele revelou a todas as colegas dela a sua intimidade e ainda lhe ameaçou com fotos íntimas de sua mãe e dela mesma. O vazamento de dados pessoais é outro assunto que está sempre em voga desde que surgiu o primeiro celular no mundo. Muitas vezes, é assustador dizermos uma bobagem como queria ler As lembranças do porvir e, minutos depois, esse livro começa a aparecer em propagandas nas minhas redes sociais, com ofertas, preços, descontos. Será que estamos sendo vigiados 24 horas por dia, como em um Big Brother constante?

Ao falarmos desse termo tão familiar, automaticamente lembramos também do voyeurismo, um hábito que adquirimos depois das redes sociais, apesar de não ser uma novidade. O filme Janela Indiscreta, de 1958, já mostra a nossa tendência a querer ver o que o outro faz dentro de quatro paredes, como é a vida alheia e, sabemos que essas olhadinhas são viciantes. O sucesso dos reality shows no mundo inteiro e a quantidade de programas desse estilo disponíveis em todas as plataformas de streaming não negam essa realidade: gostamos de observar o comportamento dos outros, de analisar, de opinar. E muitas vezes, essas análises, que começam sem malícia se tornam perigosas, viciantes e nefastas. Se tivermos um tablet, que podemos comandar e caminhar pela casa dos outros do jeito que quisermos, ver o que quisermos, corremos o risco de nos perdermos de nós mesmos e passarmos a viver uma vida de observação, de voyeurismo, uma não-vida.

A autora comentou sobre o tema na ocasião do lançamento de seu livro:

O voyeurismo nos fascina. Talvez tenha a ver com a ideia de que, se você espiar o outro quando ele não sabe que está sendo visto, então ele não pode agir, não pode te enganar, você o vê como ele é, você o enxerga na mais verdade absoluta. E há algo em ver a verdade mais absoluta do outro que nos ajuda a pensar sobre a nossa, sobre quem realmente somos, sobre como somos para nós mesmos

Esse comportamento de vigiar compulsivamente a vida dos outros, como já dito antes, não é novidade. Em outras obras bastante conhecidas, como As virgens suicidas ou Beleza Americana, jovens estão no centro do voyeurismo e, quando algum adulto se dá conta disso, é tarde demais. Claro que esse tema não ficou de fora em Kentukis. Temos a história de Marvin, um garoto que perdeu a mãe e passava as tardes sozinho em casa, com a obrigação de estudar e melhorar suas notas escolares. Entretanto, não tinha ninguém vendo o que ele fazia o dia todo. Não demorou muito para que o menino comprasse um tablet e passasse a seguir os passos do dragão que carregava seus olhos. Em suas andanças pela Noruega, viu a neve de longe, algo com o que sonhava constantemente. O pai, alheio a tudo o que acontecia na casa, estranhou apenas as notas baixas do filho e nada mais.

Por outro lado, Grigor, que vivia uma situação semelhante à de Marvin, comprou muitos tablets com o dinheiro de uma conta virtual do pai com o objetivo de vende-los para pessoas que queriam escolher a quem observar. Seu investimento foi tão alto que precisou de ajuda para monitorar e alimentar os tablets, chamando para essa missão sua colega Nikolina. Em uma de suas observações, ela descobriu um cativeiro, com uma adolescente brasileira que tinha sido vendida pelo próprio pai, com a participação da polícia, em um esquema de tráfico sexual no Brasil, na região da Amazônia. É triste ver como essa nossa região é percebida no mundo inteiro como “terra de ninguém”, o que não foge muito à realidade, principalmente depois das execuções do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips no início do mês passado na região. Por outro lado, a autora mostra que a tecnologia permite que boas ações aconteçam. Nikolina, mesmo correndo todos os riscos, chamou a polícia local e denunciou a situação. Esse fato transformou a vida de Grigor, que ao descobrir a verdade sobre o caso, não teve coragem de contar à amiga:

Pensou em Nikolina, se teria coragem de lhe dizer para onde devolveram a garota. Pensou no próprio pai, em seus iogurtes, e no dinheiro que graças ao plano B por fim tinha conseguido juntar. E então entendeu: não queria continuar a ver desconhecidos comer e roncar, não queria voltar a ver nenhum só franguinho gritando de terror enquanto o depenavam até os nervos, não queria transportar mais ninguém de um inferno a outro. Não ia esperar que as benditas regulamentações internacionais chegassem para tirá-lo do negócio, já tinham demorado demais. Ia sair sozinho. Venderia os dispositivos que restavam e se dedicaria a outra coisa. Acessou a configuração geral e, sem se incomodar em ao menos tirar o kentuki daquela casa antes, desligou a conexão” (SCHWEBLIN, 2021, pág. 172)

Os kentukis mudaram a vida de muitas pessoas nessa história. Enzo foi um dos que mais me impactou. Pai separado, que dividia a guarda do filho com a ex, foi obrigado pela psicóloga da criança a ter um kentuki em casa, algo que ajudaria o menino em suas relações interpessoais e também a superar a separação dos pais. Contra a sua vontade, ligou o kentuki. Entretanto, a situação se inverteu: quanto mais o filho abominava e maltratava a toupeira, mais o pai se aproximava do robô, criando com ele uma relação de dependência, algo que apartava a sua solidão. Assim como Emília, a história de Enzo não tem final feliz. Ele sofre um duro golpe de seu “amigo” kentuki ao descobrir que quem o comandava de longe era um pedófilo e que estava tentando se aproximar a força de seu filho, de forma mais “real”.

Sem querer dar spoilers, mas como aqui já temos muitos, então, não há tanta importância, até porque o mais legal desse tipo de livro é o desenvolvimento das histórias, Alina é a personagem mais intrigante dessa trama e que tem um final explosivo em todos os sentidos. Ela vive uma não-vida: não se relaciona com as pessoas de verdade, se comunica de forma evasiva, não demonstra sentimentos, a não ser os de agressividade e violência, tais como aquela raiva que segundo Freud, aprendemos a controlar socialmente, mas que vive dentro de nós e, em certo momento, começa a despejar todo esse sentimento ruim em seu kentuki. O que ela não esperava, é a reviravolta que seu namorado artista e seu kentuki lhe dariam: sua vida exposta como arte, colocando-a como uma maluca e culpada de tudo de errado que a sociedade produz. Mais uma vez, temos a abordagem sobre o vazamento de dados como tema que fecha a narrativa.

Schweblin utiliza técnicas de escrita muito comuns na literatura argentina, que têm como mestres Júlio Cortázar, Jorge Luís Borges, Silvina Ocampo, Mariana Enriques e tantos outros nomes de peso, que falam sempre mais através das entrelinhas que das próprias palavras que contam uma história. O texto é muito fragmentado, deixando a cargo do leitor os hiatos em que os kentukis estavam dormindo, ou sozinhos em casa, sem a presença dos amos. Não temos todas as respostas nesse livro, saímos dele com mais questões e mais coisas para pensar sobre o nosso estilo de vida, sobre a tecnologia e sobre os nossos vícios, em todos os sentidos.

Questionada em uma entrevista sobre a origem do título Kentukis, Schweblin diz:

Surgiu espontaneamente durante o primeiro rascunho, só busquei algum nome estranho e familiar ao mesmo tempo, sem dar muita importância, porque queria ir em frente com a ideia que estava se formando na minha cabeça, não queria ser distraída. Quando percebi que o texto era sério, resolvi encontrar um nome definitivo. E fiz uma lista das coisas que gostaria que aquele nome implicasse. Queria uma marca que soasse estrangeira, mas também popular, barata. Yankee, mas também japonês ou chinês. A uma marca que já ouvimos noutro local, embora não nos lembremos de onde. Fiz uma pesquisa no Google com a palavra “kentukis” e saiu um cavalo russo com vários prêmios, uma refeição tradicional japonesa, uma cidade ucraniana e uma australiana. Surgiram personagens e clubes e até informações em línguas que não conheço. E então pensei que “kentukis” era perfeito, era exatamente isso e nada disso. Era pura confusão e uma sensação de familiaridade

Ela também falou sobre as suas questões ao escrever esse romance, mostrando uma preocupação genuína com os limites que nos colocamos e com as nossas responsabilidades na era digital:

 “É um livro sobre o desejo, o medo, o preconceito, como é hoje ser cidadão deste mundo globalizado e cada vez mais fechado e opressor. Onde, às vezes, se não entendemos as regras, pode ser muito fácil cruzar os limites entre vítimas e vitimizadores (…). Não devemos pensar na tecnologia como algo positivo ou negativo. A tecnologia sempre esteve conosco, foi também a invenção do machado e da roda, e depende de nós para que a usamos. Acho que, no caso das redes sociais e de todos esses novos dispositivos de comunicação, o problema é que avançam tão rápido que é difícil entendermos seus limites no tempo. E quero dizer todos os tipos de limites: éticos, legais, privacidade, educação

Kentukis é uma obra contemporânea, necessária para a reflexão sobre o nosso futuro. Ao ler o livro, podemos pensar que esse dispositivo ainda não existe e que nunca deixaríamos um estranho entrar em nossa casa. Porém, eles existem em forma de Facebook, Instagram, YouTube, Alexa, celular, dentre tantos outros dispositivos tecnológicos, os quais não conseguimos mais viver sem. Somos seres tecnológicos e precisamos repensar todos os dias a nossa relação com as redes e com a vida real. Às vezes, um detox das redes pode fazer bem. Também pode ser interessante criar limites de tempo em frente às telas para o nosso próprio bem e para que a vida real possa acontecer.

Fontes:

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