Não foi por acaso que Lila e Lenu, personagens contemporâneas criadas pela escritora italiana Elena Ferrante investiram todas as suas economias em um exemplar do livro Mulherzinhas da norte-americana Louisa May Alcott. Inicialmente considerado uma ponte entre a salas de aula e a sala de estar da casa das garotas com a pretensão de ensinar a docilidade, recomendar o casamento e a obediência em vez da autonomia e da aventura proposta aos homens, atualmente, esse clássico é lido como um precursor da independência feminina.
Utilizando dados autobiográficos, Alcott criou personagens femininas muito vívidas, críveis e atemporais devido ao fato de ter experimentado a maior parte dos conflitos colocados na obra e por isso sua veracidade é palpável, provocando a identificação do leitor. Não é porque viviam em uma sociedade patriarcal e tradicionalista que as pessoas não tinham sonhos ou desejos que naquele momento pareciam impossíveis. Dessa forma, a autora consegue captar um sentimento coletivo e apresenta-lo de forma simples e realista.
Essa ideia é corroborada pelo escritor e crítico Nathaniel Hawthorne quando afirma que “as mulheres escrivinhadoras viviam um intenso conflito entre suas ambições artísticas públicas e seus papéis femininos privados”. Ora, esses conflitos são humanos e não pertencentes apenas às escritoras. Já é sabido que a maior parte das mulheres vitorianas sentiam um enorme desejo de sair de casa e ter uma vida mais igualitária à dos homens no sentido de independência econômica e financeira principalmente. A própria Alcott precisou escrever e trabalhar assim como sua protagonista Jo March para ajudar os pais a pagar as contas de casa. A vida não era fácil para as famílias de classe média da época. A guerra civil norte-americana causou uma recessão econômica que atingiu várias classes sociais, fazendo com que os homens considerados os provedores não dessem conta de sustentar a casa sozinhos.
O fato de Alcott ter se voluntariado como enfermeira no Hospital do Exército em Washington durante a Guerra Civil conferiu-lhe autoridade e maturidade para escrever sobre a morte, perdas e enfrentamento da vida. Essa propriedade da escrita faz com que seu texto não seja de forma alguma simplista, mas de um realismo inovador, que assim como Balzac retirou o romance das ruas e o levou para os lares, apesentando tensões e conflitos reais na vida de seus personagens. Essa chave de leitura aproxima o leitor do texto gerando além de empatia e simpatia nas palavras de Jouve, também identificação e reconhecimento dos valores da época junto aos conflitos da vida.
Para Alcott, “metade da infelicidade da época vinha de casais incompatíveis tentando viver sua mentira legal, decorosamente, até o fim e a qualquer custo”, dessa forma, a escritora aproveita a oportunidade do romance para imaginar uma vida diferente para as mulheres, com a possibilidade de um casamento igualitário, permitindo a elas ser fortes e amorosas ao mesmo tempo e ainda trabalhar e cuidar dos filhos. As ideias visionárias da autora permitem que o livro sobreviva ao tempo, pois essa é uma obra convincente, inspiradora e até mesmo transcendental, pois, dramatiza o sonho de uma vida que une as tradições patriarcais com a liberdade feminina.
O livro foi publicado originalmente nos anos de 1868/ 1869, dividido em duas partes. Posteriormente, a autora uniu os dois volumes e a edição de 1880 passou a ser em um único volume, que é a versão comercializada até os dias atuais. Alcott consegue transportar as fantasias escapistas do sensacionalismo dentro de uma cultura feminista realista e esse é um dos motivos que conferem à obra o título de clássico da literatura mundial e que pode ser apresentado aos alunos do Ensino Fundamental 2 e Médio nas escolas do mundo inteiro.
Um dos capítulos mais marcantes da obra é o segundo, intitulado “Um feliz Natal”, onde a Sra. March sugere às filhas que doem o seu desjejum natalino a uma família de vizinhos que está passando por dificuldades. As meninas estavam com bastante fome na ocasião e também muito empolgadas por aquela refeição especial. Mas, hesitaram pouco tempo antes de arrumarem tudo e levarem até a casa dos Hummel. Foi uma aula de solidariedade e generosidade.
Para muitas pessoas, essa atitude faz parte do passado ou de uma cultura religiosa demais para ser admitido nos dias atuais. Entretanto, independente de religião ou qualquer outra coisa é importante para o ser humano cultivar e carregar consigo alguns valores éticos e morais. Estes, podem ser estritamente pessoais e baseados em nossas vivências ou mesmo em nossas crenças e na educação que recebemos em casa. No romance por exemplo, as garotas hesitaram por menos de um minuto para decidir entre o coletivo ou o individual porque o altruísmo e o amor ao próximo são valores que aprenderam com os pais e estes, fazem parte do código de ética daquela família. Então, paras as meninas March é penoso abrir mão do café da manhã de Natal, mas é impensável deixar que outras pessoas passem fome por causa do egoísmo delas.
Nós como educadores e professores não estamos aqui para criticar ou interferir na educação de nossos alunos em casa. Mas, podemos apresentar a eles outras possibilidades, as quais, talvez, nunca tenham tido a oportunidade de pensar sobre elas. Nas salas de aulas, ensinamos desde os primeiros anos da Educação Infantil o compartilhamento e o coletivismo entre os estudantes. O objetivo dessa prática é formar cidadãos para o mundo, que saberão dividir e ajudar as pessoas em sua vida adulta. Porém, ainda vemos muito por aí a prática do utilitarismo e a individualidade vem ganhando força na nossa sociedade. Nos tornamos modernos em alguns aspectos, mas, regredimos bastante no quesito humanidade.
Algumas reflexões podem surgir a partir de um confronto como esse do exemplo das irmãs March. Imaginamos quantas pessoas conhecemos de fato que seriam capazes de doar seus presentes de Natal ou dividir sua ceia ou seus poucos pertences com alguém que tem menos ou que não tem nada. Mas, pessoas que realmente façam isso de forma genuína e não através de doações anônimas de quem tem muito dinheiro ou mesmo doações enormes para autopromoção. Até que ponto somos solidários e caridosos? Será a caridade uma “obrigação” daqueles que possuem muito? Ou todos nós, independente de quanto ganhamos deveríamos praticar a bondade?
É preciso considerar que a caridade não é apenas material. Ela também pode ser ofertada através de uma conversa. Ouvir alguém que passa por dificuldades é uma forma de ajudar, comprar um pão a mais para aquele homem que está na frente da padaria pedindo algo para comer também faz parte da solidariedade humana, olhar com respeito para alguém que em meio a uma pandemia sem precedentes perdeu tudo o que tem e agora vive nas ruas é uma forma de amor ao próximo. Pensar na inclusão das pessoas que nunca acessaram a internet na vida e agora vivem em um mundo habituado ao home office como condição para trabalhar no século XXI é uma forma de enxergar o mundo com mais afeto. É sim papel da escola e do professor ensinar os alunos a pensar o mundo de forma mais generosa. A generosidade é uma arma contra a fome, a miséria, a loucura e as desigualdades do mundo.
A obra clássica de Alcott é uma ótima opção de um livro paradidático para ser trabalhado com os alunos do Ensino Fundamental 2. Além de muitas reflexões, o livro aborda a realidade do século XIX, as mudanças que tivemos de lá para cá e as semelhanças com os nossos tempos.
Esse tipo de reflexão se faz urgente visto que vivemos em tempos de obscurantismo e polarização de ideias, levando muitas pessoas a conflitos desnecessários e à falta de diálogo. Um dos objetivos da escola é formar cidadãos para o mundo, capazes de ouvir e respeitar o próximo, considerando suas vivências e experiências que são únicas.
Mulherzinhas tem a capacidade de tocar e emocionar várias gerações distantes, além de pessoas de gêneros e classes diferentes, provocando a identificação destas com os conflitos apresentados pela autora. Isso confirma a sua universalidade e atemporalidade. Além de corroborar as ideias de Antônio Cândido em relação à capacidade da literatura em humanizar as pessoas.