vida de leitor

Livros que golpeiam

Ao estudar alguns textos de apoio para escrever a resenha do livro O processo de Franz Kafka, me deparei com uma declaração do escritor com a qual me identifiquei e tenho certeza de que muitos também se identificarão. No BookTube, já vi algumas pessoas brincando ao dizerem que são leitores de desgraceiras e que só leem livros tristes. Bem, não foi difícil também para mim me identificar com essa descrição, pois sempre gostei de dramas, suspenses, sagas familiares, tragédias…

Mas, afinal, o que disse Kafka? Ele disse que “só devemos ler o tipo de livros que ferem e golpeiam. Se aquele que estivermos lendo não nos despertar com uma pancada na cabeça, para que lê-lo? (…) Um livro tem de ser o machado que quebra o mar gelado em nós. É o que penso”. (GLEESON-WHITE, 2010, pg. 175)

É uma afirmativa e tanto para nós leitores, o que pode explicar a nossa morosidade diante daqueles textos de narrativa lenta, onde nada acontece ou que não nos impactam de forma contundente. Porém, penso que leio para me surpreender com textos esplêndidos, que fogem do lugar comum e que sejam superiores aos outros ou até mesmo encontrar os meus livros favoritos da vida dentre tantas leituras feitas ao longo dos anos. Neste caso, se eu ler apenas os livros que me golpeiam, não saberei mais discernir entre os ordinários, aqueles que são extraordinários e talvez, o ato de ler livros perca um pouco da sua graça para mim.

Atualmente, escolho a dedo as leituras que farei. Antigamente, lia tudo e qualquer coisa, mas agora, é como se um senso de urgência tivesse se apoderado de mim e me fizesse escolher mais qualidade e menos quantidade, priorizar alguns textos que considero imprescindíveis na vida de um leitor (mas que posso estar completamente enganada) e por isso, minhas avaliações sobre minhas leituras têm se mantido entre 3,5 e 5 estrelas para a maior parte dos livros lidos. Entretanto, em meio a esse grupo de estabilidade, encontramos aqueles que nos impactam profundamente e, nas palavras de Kafka, nos ferem e golpeiam. Pensando nisso, fiz uma seleção das minhas cinco últimas leituras que “foram como um machado quebrando o mar gelado em mim” para indicar a vocês. Espero que gostem e que deem uma chance a eles.

  • O som e a fúria – Willian Faulkner (Cia das Letras, 2017): Uma das minhas últimas leituras realizadas neste ano e que ainda hoje, reflito sobre os acontecimentos desse livro. O enredo é simples: acompanhamos a decadência de uma família tradicional do sul estadunidense, no início do século XX, servindo como uma alegoria à decadência dos valores e tradições conservadas pela população sulista após a guerra de secessão. Mas, o impactante neste livro é a forma como a história é contada e também a complexidade de seus personagens e as consequências de suas escolhas e atitudes. Até o momento, este foi o melhor livro lido em 2022. https://amzn.to/3L9GETw
  • O processo – Franz Kafka (Antofágica, 2021): Outra leitura recente deste ano, e que me deixou surtando com essa história insólita. Acompanhamos neste romance inacabado a saga de Josef K., um homem que foi preso e está sendo acusado por um crime que diz não ter cometido. Ao longo dos capítulos, o leitor tenta desvendar essa acusação junto ao Sr. K., enfrentando a burocracia, as esferas de poder, as dificuldades cotidianas em resolver problemas simples e a insanidade desse processo. É um livro extremamente reflexivo, porque, de certo modo, Kafka previu ali muitos dos acontecimentos futuros, como a perseguição aos judeus durante o nazismo e as ditaduras na América Latina, onde as pessoas eram presas sem motivos aparentes ou desapareciam. Livro espetacular. https://amzn.to/3l2pFIb
  • A casa da alegria – Edith Wharton (José Olympio, 2021): Esta talvez seja a minha segunda melhor leitura de 2022. Neste romance acompanhamos a jovem Lily Bart, uma moça que está se aproximando dos 30 anos e precisa se casar o mais rápido possível, pois, está envelhecendo e se não conseguir um marido, ficará solteira e sem condições de manter o seu padrão de vida. A história se passa em Nova York, no final do século XIX e a trajetória de Lily serve para nos mostrar como funcionava a sociedade naquele tempo, com todas as suas opressões, regras e normas de conduta que só serviam mesmo para desgraçar a vida das pessoas. O final desse livro é uma das coisas mais tristes que já li na vida. Depois de finalizá-lo, tive uma ressaca literária forte, pois não conseguia parar de pensar nele e nos diálogos que ele faz com o nosso tempo. Recomendo fortemente a leitura. https://amzn.to/3wnVL6z
  • Crônica da casa assassinada – Lúcio Cardoso (Cia das Letras, 2020): Este é um livro complexo para mim. Inicialmente, não estava gostando da leitura por causa dos dez narradores com a mesma voz (questões estéticas me incomodam demais, pois, tenho dificuldade em me desapegar desses problemas de narrativa e embarcar na história, analisando o texto. Esse é um dos problemas em estudar Teoria Literária – analisamos tudo e qualquer coisa). Voltando ao livro, resolvi finalizá-lo depois de ler um ensaio no final de Verão no aquário, onde o crítico compara as duas obras. Verão no aquário tinha me pegado de jeito e assim, segui com o Crônica. Antes, assisti a uma live do Christian Assunção de sua Leitura Coletiva, e peguei algumas coisas do enredo que havia deixado passar. A partir daí, consegui deixar de lado as vozes iguais e continuar a leitura até o fim e, que livro! Temos aqui mais uma saga familiar, que lembra um pouco O som e a fúria, mas ambientado no Brasil do início do século XX. A história gira em torno de uma personagem central, que é Nina. Porém, ela mesma não tem voz, a conhecemos através da narrativa de outras pessoas e acompanhamos a sua decadência. E, depois de O primo Basílio do Eça de Queiroz, essa foi a descrição de decrepitude mais impactante que já li na vida. Acho que O primo Basílio ganha só porque foi a primeira, caso contrário, Lúcio Cardoso se superou aqui. No final, gostei bastante da história e fiquei muitos dias pensando nela a ponto de sonhar com o livro. Recomendo a leitura a todos. https://amzn.to/3M7pmry
  • Verão no aquário – Lygia Fagundes Telles (Cia das Letras, 2010): Esta também foi uma leitura de 2022 e me deixou bastante impactada. Acompanhamos a trajetória de transição da adolescência para a fase adulta da jovem Raíza, uma moça complexa, cheia de camadas, apegada ao passado e que tem dificuldades de relacionamento com a mãe. Através do fluxo de consciência, o leitor encontra-se dentro da cabeça da protagonista e assim consegue ter uma visão de seus pensamentos mais sombrios. Lygia aborda não apenas o crescimento da personagem, como também as questões sociais da época, as dificuldades que o país estava enfrentando e a decadência da burguesia paulistana. É um livraço, que também me deixou reflexiva e provocou uma transformação em minha vida. Recomendo muito esta leitura. https://amzn.to/3l0cMi2

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