crítica

Longo e claro rio – Liz Moore

O cenário desse livro é turvo, complexo e muito cruel. Filadélfia nos dias atuais. Uma cidade que já foi tão tradicional e que serviu como palco para tantos momentos felizes em família hoje tem suas ruas dominadas pelas drogas. Esse não é um reflexo de toda a cidade, mas de um bairro específico, como se fosse a nossa “Cracolândia” em São Paulo. Porém, os problemas da Filadélfia têm origem nos opióides, que são drogas de origem legal, no sentido de comporem medicamentos para dor.

Na cultura norte-americana, é comum que médicos e dentistas prescrevam medicamentos à base de opióides aos pacientes que passam por procedimentos simples em consultórios, sem se atentar para os riscos de tais substâncias. Muitos estadunidenses se viciaram em heroína após um uso constante de medicamentos como a oxicodona e a hidrocodona, que são utilizados além do alívio de dores insuportáveis como também para depressão e ansiedade. Essa situação vem tomando uma proporção muito maior do que se esperava e os números de viciados em drogas vêm crescendo de forma alarmante no país desde o início dos anos 2000.

Preocupada com a situação de sua cidade e observando as consequências desse vício, Liz Moore utilizou suas pesquisas e seu conhecimento jornalístico para criar um romance onde aborda a questão das drogas, além de assuntos relacionados à contemporaneidade e aos dramas da vida moderna. Mickey é uma policial jovem, em início de carreira, extremamente rígida em relação a seus valores éticos e morais, está afastada da família, não tem amigos e as únicas pessoas que fazem parte de seu cotidiano são o filho de cinco anos, seu ex-parceiro da ronda policial e sua senhoria.

O objetivo da protagonista é encontrar sua irmã que é viciada em drogas desde a adolescência e está desaparecida há um mês. Mickey se preocupa bastante com o sumiço da irmã, pois há um serial killer solto na cidade e que está matando as garotas viciadas em drogas e que se prostituem em troca de uma dose de heroína. Através dessa premissa, a autora vai trabalhar temas voltados ao preconceito, ao ciclo do vício em drogas, que começa com os bebês em abstinência (filhos de mulheres viciadas) e termina com a morte dessas pessoas que não costumam passar dos 30 anos.

Em uma narrativa não-linear, alternando entre o presente e o passado, conhecemos a família de Mickey e Cassey e compreendemos como a situação chegou ao ponto em que está. As duas foram criadas pela avó após a morte da mãe por overdose. Essa avó não tinha muito a oferecer às garotas, pois carregava a sua dor em perder a filha tão jovem para uma estupidez. A questão do vício é tão forte, que sai arrastando essa família inteira em uma espiral de autodestruição e rancor, onde poucos membros conseguem viver em equilíbrio e ter uma vida normal.

A narrativa é feita em primeira pessoa, através do ponto de vista de Mickey, porém, conhecemos bem outros personagens por meio dos diálogos travados entre a protagonista e sua família, os colegas de trabalho, a vizinha e senhoria e as pessoas nas ruas, que vão aparecendo aos poucos durante a investigação. Mickey é uma personagem muito complexa, cheia de traumas e inseguranças e que foi vítima de um homem que se aproveitou de sua fragilidade e falta de amor para seduzi-la e depois abandoná-la quando as coisas ficaram muito ruins.

A personagem carrega todos esses fardos, que são bastante pesados. Mas o principal é a sua solidão e a culpa que carrega por se sentir responsável pela irmã. A construção desses personagens foi muito bem-feita, tornando o livro pesado, denso e difícil de ler em algumas partes. A áurea sombria da ambientação é quase palpável, o leitor se sente presente nas ruas pesadas e sombrias da Filadélfia, além de sofrer junto com a protagonista as dores pelas quais ela passa.

Outro ponto bastante desenvolvido pela autora é a maternidade solo. Mickey enfrenta as dificuldades de precisar trabalhar e não ter com quem deixar o filho. Depender da ajuda dos outros ou de uma babá que não se importa muito com a qualidade dos serviços prestados. A angústia dessa mãe em tirar o filho da escola por não ter condições de continuar pagando por ela é muito real e representa muitas mulheres contemporâneas que vivenciam essa e outras situações semelhantes. A ausência do pai de seu filho é outro ponto alto da história e quando vamos entendendo tudo, sentimos bastante raiva desse homem, que se assemelha a tantos da vida real.

Os temas contemporâneos inerentes à vida nas grandes cidades estão presentes em toda a narrativa, marcando uma época. Porém, os dramas e sentimentos humanos são os mesmos de sempre, trazendo uma universalidade ao livro. A pesquisa da autora foi muito intensa e traz um panorama preocupante da vida moderna: como lidar com os problemas atuais relacionados à mente das pessoas? Como libertar os jovens da depressão, da ansiedade, da angústia, sem medicar? Quais as alternativas possíveis para diminuir o número de viciados nas ruas?

E Moore não para por aí. Ela vai trabalhar ainda a questão dos princípios éticos e morais que permeiam a nossa sociedade. Como os perdemos e como seguir em frente com eles, quando os valores estão tão modificados e até mesmo inversos. Em algumas cenas do livro, Mickey se sente um peixe fora d’água em meio à sua família pois é a única a prezar pela justiça e além disso é policial. Percebemos o quanto as pessoas detestam policiais por relacionarem a eles uma hipocrisia e um abuso de poder. Entretanto, Mickey não é assim, ao contrário, tenta realizar o seu trabalho da melhor forma possível e muitas vezes é ridicularizada e recebe advertências por levar as coisas tão a sério. Achei muito corajoso da parte de Moore abordar a corrupção policial, assunto tabu e bastante polêmico.

Tratar esse livro como apenas mais um thriller policial é colocá-lo dentro de uma caixinha na qual ele não cabe. Essa obra se refere às pessoas, trata sobre o comportamento humano, não julga, não é maniqueísta. Apenas nos convida a uma reflexão pertinente sobre as nossas escolhas e propõe uma análise da vida moderna que causa tantos vícios provenientes das dores do mundo. Essas podem ser tanto físicas como emocionais e o seu tratamento ou o seu silêncio custam caro demais. Excelente livro para quem gosta de desgraceiras. Porém, cuidado com os gatilhos, que são muitos. É um livro pesado, bem escrito, mas não traz surpresas em relação ao enredo. Se for lido apenas como thriller, perderá bastante a sua essência, que não está no culpado, mas nas reflexões que propõe.

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