crítica

Maria Altamira – Maria José Silveira

Quem me acompanha aqui há mais tempo sabe o quanto eu me encantei e sofri também lendo Banzeiro Òkòtó da Eliane Brum no ano passado. O tema da Amazônia e da população ribeirinha, o crime que foi a construção da hidrelétrica de Belo Monte e a destruição da cidade de Altamira me tocaram profundamente e desde então, me interessei muito pelo assunto e queria ler mais sobre essas pessoas sofridas, mas lutadoras, fortes e valentes que enfrentam todos os dias as consequências nefastas da ganância humana. Aproveitando o meu interesse no tema e a minha assinatura da plataforma de audiolivros Storytel, escutei Maria Altamira (Instante, 2020) da escritora brasileira Maria José Silveira e simplesmente amei esse livro em todos os sentidos.

A obra conta a trajetória de duas mulheres, Aleli e Maria Altamira, mãe e filha separadas no dia do parto. Para entender a história delas é preciso saber que Aleli vem de um contexto de muito sofrimento: aos dezesseis anos ela perdeu toda a sua família, inclusive a filha de três anos em um acidente natural, o soterramento da cidade Yungay no Peru, através do desprendimento de uma quantidade enorme de neve do maravilhoso parque de montanhas nevadas de Huascarán. Sendo a personagem muito jovem, inexperiente e principalmente o motivo pelo qual ela se salvou e sua filha morreu, Aleli não consegue superar essa tragédia, se transformando em uma nômade, viajando pela América Latina, sem destino certo e sem criar raízes.

Em um certo momento, no final da década de 1970, Aleli chegou ao Xingu, no Brasil e conheceu o índio Manu, um homem diferente dos outros que havia encontrado antes e que lutava por causas justas. Sem querer, ela se apaixonou por ele e ficou grávida de Maria Altamira. Mais ou menos confirmando a impressão de Aleli de que ela carrega em si a má sorte, Manu foi assassinado por um homem da região, a mando do famoso “Rei do Mogno” por motivos óbvios: Manu liderava um movimento contra o desmatamento da Amazônia e estava atrapalhando a indústria madeireira e consequentemente o enriquecimento de pessoas poderosas e extremamente gananciosas.

Com a morte de Manu, Aleli voltou a ser a pessoa de antes: calada, fechada e com uma dor tão grande dentro de si, que era difícil mensurar e até mesmo conviver consigo mesma. Porém, ela conhece uma das personagens mais cativantes dos últimos tempos, Mãe Chica. Chegando em Altamira, Aleli estava muito fraca e foi socorrida por Mãe Chica, uma mulher admirável, que conseguia ver o bem em todas as circunstâncias, mesmo as piores possíveis, trabalhava no posto de saúde da cidade, ajudava quem precisasse e acolhia as pessoas ao seu redor. Todos na cidade a respeitavam muito pois era amorosa, mas firme, cordial, porém, incisiva. Sabia conviver em um lugar hostil, por onde passavam pessoas de todos os tipos.

Com o passar dos dias, Aleli se abriu com Mãe Chica e lhe contou a sua história. Foi acolhida pela mulher, mas decidiu deixar Maria Altamira recém-nascida neste lugar seguro, seguindo o seu caminho nômade, acreditando assim que afastaria da filha toda a má sorte que carregava em si. O tempo passa e Mãe Chica educa e se responsabiliza por Maria Altamira, que servirá como uma alegoria à cidade de mesmo nome que sofre mudanças com a construção de Belo Monte. A menina nasce no mesmo ano em que o projeto da hidrelétrica começa a ser implantado e assim, vai crescendo junto com a cidade que sofre modificações enormes, assim como a protagonista.

Pode parecer um projeto ambicioso da autora em criar uma personagem que cresce à medida em que Belo Monte é construída, mas neste livro funcionou muito bem. Maria José Silveira faz toda uma contextualização do ambiente antes da chegada da Norte Energia S.A. e descreve as mudanças a princípio sutis na cidade, que se transformam em transmutações vertiginosas e radicais. Além disso, ela também mostra a luta indígena contra a construção das barragens, abordando ainda a cultura dos povos originários, o desfacelamento e o desterro dessa população ao longo da construção do monstro do Xingu. O impacto dessas barragens na vida da população local é gigantesco e a escritora, através de um narrador onisciente consegue passar ao leitor com muita verossimilhança as consequências geradas por um projeto capitalista e criminoso, que além de destruir a fauna, a flora, as nascentes, poluir de forma irreparável o rio Xingu, também trouxe consigo uma onda de violência, assaltos, estupros, miséria e homicídios, transformando Altamira em uma das cidades mais perigosas do Brasil

Através de personagens contemporâneos de Maria Altamira, a autora mostra como a falta de opção de trabalho, causada pela remoção das famílias ribeirinhas da beira do rio para a cidade e também com o surgimento dos forasteiros, trabalhadores e profissionais de diversas áreas provocaram a desgraça de muitos jovens que poderiam ter tido um futuro digno, mas se tornaram bandidos, devido ao meio onde cresceram. A personalidade dos personagens é alterada a partir dos acontecimentos trágicos de Altamira. Muitos não conseguem ver a destruição das suas memórias de infância ligadas àquele lugar por causa da poluição do rio e da remoção da comunidade originária e dos ribeirinhos. Os pescadores perderam o seu ganha-pão com a intoxicação dos peixes, que se tornaram escassos e impróprios ao consumo; Mãe Chica perdeu não apenas o emprego, como também a sua casa no centro da cidade para uma traficante de drogas. Alguns amigos de Maria Altamira se tornaram ladrões profissionais por não terem oportunidade de estudar e de ter um emprego que pagasse as contas e trouxesse dignidade e segurança financeira a eles. Em alguns casos, os próprios pais fechavam os olhos para as gatunagens dos filhos porque senão, passariam fome.

Outras pessoas simplesmente saíram de Altamira rumo a Belém ou até mesmo a São Paulo, ao passo em que outras permaneceram na cidade, umas na luta contra Belo Monte e outras se rendendo às novidades e adequando suas vidas ao redor das empresas que lá se instalaram. É perceptível que o progresso custa caro e nós somos ensinados o tempo todo que o melhor para as nossas cidades e para o nosso país é o desenvolvimento industrial e econômico, gerando emprego e renda para a população. Nós, que crescemos nos grandes centros urbanos estamos acostumados a essa visão de mundo e assim, estranhamos quando vem um grupo que é contra esse pregresso e o crescimento da urbanização. O que nos falta na verdade, é a consciência de que a vida dos povos originários é completamente diferente da nossa, sua cultura e sua opinião diante das mudanças são adversas às nossas e por isso, nem tudo o que parece bom para nós é realmente bom para o clima, o meio-ambiente e as pessoas que vivem em torno dele.

A autora desenvolve vários paralelos entre o estilo de vida na cidade grande e no interior, o mundo de ontem e o mundo de hoje, mostrando ao leitor que a nossa busca constante por produtividade e ao mesmo tempo por uma vida saudável não são sustentáveis, na verdade, estão nos levando à bancarrota. Após sofrer uma violência inenarrável, que traz consequências terríveis a ela, Maria Altamira muda-se para São Paulo a fim de tentar a vida por lá e se encontrar consigo mesma. Sua experiência na cidade grande é tratada de forma irreverente e crítica: ao mesmo tempo em que a jovem se deslumbra e se encanta com o lado bom de São Paulo, ela se choca e se assusta com a miséria, a violência e a poluição da cidade. Durante esses quatro anos de estadia na capital paulista, Maria Altamira conhece muitas pessoas que representam o cidadão brasileiro em geral. Refugiados, migrantes, nordestinos e nortistas que estão em Sampa buscando uma vida melhor, índios, negros, brancos, pardos, um misto de cultura que se encontra na Praça da Sé, nas estações de metrô, no Parque do Ibirapuera, na Avenida Paulista, nos shoppings centers, no mercadão e em tantos pontos turísticos da maior cidade do Brasil.

Outro tema que Maria José Silveira retrata nesse romance são as invasões de prédios interditados, embargados ou abandonados por São Paulo a fora. Esse é um dos grandes problemas da cidade, que gera enormes conflitos entre os ocupantes desses espações e as autoridades. A autora dá voz às pessoas que não têm condições de alugarem um espaço para morar em São Paulo, que chegaram ali para tentar uma oportunidade de emprego e de estudar, mas não ganham o suficiente para se manter na metrópole. Esses indivíduos nunca viveram nas ruas, em suas cidades tinham casa, comida, família, mas ansiavam uma vida maior que a sua comunidade não poderia oferecer. Essas pessoas representam uma grande parte da mão-de-obra paulista. Muitas vezes são exploradas por seus empregadores, ganham pouco e não têm oportunidades de realizarem o que realmente foram fazer em São Paulo: estudar e progredir. Dessa forma, elas não entendem o porquê de terem tantos edifícios vazios na cidade, abandonados e sem uso, quando tantos precisam de moradias e um teto sobre suas cabeças. É impressionante como essas famílias, grupos de amigos ou pares, transformam esses espaços em seus lares, dando a eles cores, decoração e principalmente, vida.

Enquanto isso, acompanhamos também a jornada de Aleli pelo interior do Brasil. Encontros, desencontros, a música que é o seu lugar seguro, comunidades fortes, crendices, lendas, além da parte dura da vida do brasileiro: violência, criminalidade, degradação do meio ambiente e a ganância do homem. Aleli faz alguns amigos, afetos, mas permanece só, não se abre com mais ninguém. O mais próximo que chega de ter uma relação com outra pessoa é com a jovem vibrante Silmara. Ela tem aproximadamente a mesma idade que Maria Altamira e Aleli vê na amiga o que seria a relação entre mãe e filha. É uma passagem muito bonita da vida da protagonista, porém, curta, assim como todos os seus afetos. Através das andanças de Aleli, vamos conhecendo um pouco mais do Brasil e do seu povo, lugares que dificilmente alcançaríamos sem a literatura.

Maria Altamira é um belo romance que fala sobre o Brasil e a América Latina. É um livro cativante, muito bem escrito, com uma proposta bem executada, que nos leva a reflexões importantes sobre nós, como comunidade e como indivíduos. Os personagens são complexos, representam o povo brasileiro e mesmo em meio a tanta dor que é a vida dessas protagonistas, a autora consegue trazer um pouco de leveza, com cenas engraçadas, mas também belas e fáceis de visualizar. Ela também não pesa a mão nas críticas sociais, mostrando os fatos das tragédias brasileiras, apontando um caminho para o pensamento crítico e analítico do leitor. Se você ainda não leu essa escritora brasileira, leia. Em breve vocês verão mais obras dela sendo resenhadas por aqui, porque por sorte ela tem muitos outros livros para lermos. A literatura brasileira é muito preciosa e precisamos dar cada vez mais valor a ela sempre.

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