crítica

Maria Antonieta: retrato de uma mulher comum – Stefan Zweig

A proposta de Stefan Zweig para contar a história de uma das figuras mais controversas da história mundial, é apresenta-la ao leitor como uma mulher comum, com seus defeitos, qualidades, anseios, desejos, frustrações e demais idiossincrasias que caracterizam a pessoa humana. Zweig foi um homem que buscou sempre humanizar tanto os seus personagens quantos as figuras públicas que escolheu para biografar e não foi em nada diferente em Maria Antonieta, retrato de uma mulher comum (Zahar, 2021).

A narrativa tem início no momento em que a Rainha da Áustria, Maria Tereza resolve fazer uma aliança com a França então governada pelo Rei Luís XIV, casando sua filha Maria Antonieta com o neto do rei, Luís XVI. Os jovens em questão eram adolescentes de 15 e 16 anos respectivamente e de personalidades totalmente díspares. É perceptível ao leitor que tanto Maria Antonieta quanto Luís XVI não desejavam esse casamento, eles na verdade, queriam mesmo era viver, cada um a seu modo, sem ter de assumir um compromisso que não entendiam o seu significado e a sua grandeza.

Dessa forma, Maria Antonieta foi enviada à França e precisou se adequar à sua nova realidade: aprender as etiquetas exigidas a uma Delfina, se comportar de acordo com as regras estipuladas pela corte e seguir diversos rituais, os quais para ela não significavam nada. Ela e o marido não se entendiam muito bem, pois, enquanto a primeira era cheia de vida, gostava de desfrutar dos prazeres mundanos, de dançar, ir a festas, conviver com as pessoas, conversar, rir, jogar e beber, o segundo apresentava uma personalidade pacata, introspectiva. Seus prazeres se limitavam aos livros, às comidas fartas e às caçadas. Enquanto Maria Antonieta era uma mulher noturna, Luís XVI era um homem diurno.

Essa disparidade do casal provocou o início de sua ruína. Não demorou muito para que Luís XIV contraísse uma doença séria e falecesse de repente. Assim, assumiu o reinado o seu sucessor, Luís XVI, com pouca idade, nenhum preparo e principalmente, sem o menor tato para lidar com questões tão importantes quanto governar uma nação com o peso da França. Naquele tempo, o país se destacava por estar atrasado em relação à Europa, que já vivenciava uma revolução industrial e um início de modernidade, enquanto a França e a Rússia se arrastavam em uma vida no estilo feudal, onde havia uma divisão de classes muito rígida, aquela velha pirâmide de castas que estudamos na escola. Esse fator é muito importante para os eventos seguintes que culminaram na Revolução Francesa.

De posse do poder absoluto, as duas crianças que assumiram o trono da França não sabiam o que fazer ali. Dessa forma, Maria Antonieta resolveu que se mudaria para o Trianon, um palácio separado de Versalhes, onde ela poderia ser livre, ser ela mesma. A Rainha é retratada como uma mulher intensa, que preza apenas a diversão e os prazeres mundanos. Sua fase no Palácio do Trianon foi marcada pela libertinagem, pelas grandes festas, pelo fluxo constante de pessoas diversas, por gastos exorbitantes, mesas de jogos e eventos que varavam a madrugada. A Rainha ficou conhecida por esbanjar em joias e vestidos caros, além de privilegiar seus afetos com cargos importantes no governo para os quais eles não estavam preparados. Também eram famosas as suas aventuras amorosas tanto com homens quanto com mulheres. Entretanto, são apenas conjecturas, não havendo provas sobre nenhum desses acontecimentos de fato.

A grande questão em relação à vida de Maria Antonieta no Trianon é que, por seu estilo de vida muito livre e o afastamento do marido, sua reputação sofreu sérios danos. Se fosse qualquer mulher fazendo tudo isso em meados do século XVIII, já haveriam boatos, mas se tratando da Rainha da França, as falácias, que hoje conhecemos como “fake News” rolaram soltas, sendo sempre ampliadas contra o rei e a rainha. Falando sobre o rei, Luís XVI ficou conhecido por sua eterna morosidade, por seus diários infelizes, onde ele narrava as suas caçadas, as suas ceias fartas e que colocava de forma estúpida a invasão de Versalhes e o início da Revolução Francesa como um “incômodo que o impediu de caçar naquele dia”. Outra entrada dos diários do rei que me surpreenderam por sua incapacidade de percepção das coisas, foi durante uma tentativa de fuga da família real, quando um estalajadeiro tentou alertá-lo sobre a chegada das tropas da revolução e que por isso precisariam fugir imediatamente e o rei disse “estou com um pouco de fome. Preciso fazer um lanchinho antes de partir”. Não preciso dizer que eles foram capturados por causa desse “lanchinho”.

O casal Maria Antonieta e Luís XVI demorou a ter filhos. Na verdade, o casamento dos dois levou tempo demais para ser consumado. Essas dificuldades de alcova prejudicaram e abalaram bastante a credibilidade do casal de monarcas. As pessoas próximas e envolvidas na corte cobravam deles um herdeiro do trono, que não chegava nunca. Até que Maria Antonieta engravidou e começou a ter seus filhos. Nesse período, ela se afastou do Trianon e teve uma vida recatada, vivendo com o marido e cuidando dos filhos, como uma mulher comum de seu tempo. Nesse período, as coisas no país já estavam bastante complicadas. O povo estava descontente, passando muita necessidade e fome. Já existiam líderes revolucionários plantando a sementinha da revolta na população, inflamando os discursos e clamando por igualdade e justiça.

Após ter quatro filhos com o rei, Maria Antonieta resolveu voltar ao Trianon e retomar a sua rotina de liberdade. Segundo os documentos da época, ela teria dito que “já havia cumprido o seu dever e que agora, queria viver”. Esse fato mostra que a rainha era bastante imatura, egoísta e individualista. Valores que hoje são comuns para nós, naquele tempo eram abomináveis, principalmente para uma rainha. Ela não se importava com o povo e com as suas necessidades. Nem ela, nem o rei se aproximavam das pessoas para ouvi-las e tentar ser-lhes simpáticos, solícitos. Eles não queriam as obrigações da monarquia, mas também não abriam mão dos luxos, do poder e do dinheiro que vinha desse sistema absolutista. Essa obtusidade de ambos engendrou a Revolução Francesa.

Em 5 de outubro de 1789, um grupo grande de mulheres invadiu o Palácio de Versalhes, insufladas por revoltosos que as convenceram de que a maior culpada por toda a fome da França era a rainha Maria Antonieta, que não se importava com o povo e suas necessidades, que apenas esbanjava o dinheiro do país com seus prazeres individuais e para beneficiar seus pares. Afinal, ela era uma estrangeira e não sentia apreço pelo povo francês. O comportamento e a má fama da rainha consolidaram esse discurso. Panfletos falaciosos sobre Maria Antonieta foram distribuídos pelo país, acusando-a de todos os “pecados” contra a moral e os bons costumes, alardeando a sua perfídia e indecência, difamando-a e colocando o rei como um bobo da corte, inerte, que não reage a absolutamente nada e é dominado por uma mulher ruim, que faz o que bem entende em um país que não é o seu.

A partir de então, acompanhamos a ruína do casal até a guilhotina. Neste dia, após a invasão do palácio, a família real foi conduzida a Paris, onde se tornaram prisioneiros. Ali começava a Revolução Francesa, que durou 20 anos, tendo vários líderes diferentes até chegar em Napoleão. Esse movimento começou no parlamento, que era dividido entre os Jacobinos, que se sentavam à esquerda e eram bastante radicais em seus pleitos, afirmando que se não fosse possível conseguir as mudanças por bem, seriam alcançadas por mal. E à direita, ficavam os Girondinos, que também estavam descontentes com a forma de governo adotada pela monarquia, mas que buscavam um diálogo, uma forma pacífica de resolver os conflitos e de ajudar o povo francês. Dessa divisão do parlamento, herdamos os conceitos atuais na política, dividida em partidos de direita (Girondinos) e de esquerda (Jacobinos).

É importante lembrar-nos de que a França foi um país marcado pela guilhotina. Desde o seu surgimento até o último dia em que foi utilizada, ela servia como um “show de horrores” em praça pública. As pessoas gostavam de ir até o local ver as execuções. Os condenados eram tratados como lixo, perdiam toda a sua dignidade e serviam de “exemplo” para os demais. Essa situação chegou a um ponto lastimável de insanidade por parte dos juízes, na época de Robespierre, que ficou conhecido como “O grande guilhotinador” – onde qualquer delito servia de motivo válido para mandar o indivíduo para a guilhotina. Dessa forma, o medo e a insegurança governavam a França.

Nas páginas 299/ 300, Zweig fala um pouco sobre a Revolução:

Na Revolução Francesa – como em qualquer outra – distinguem-se claramente dois tipos de revolucionários: os revolucionários por idealismo e aqueles movidos por ressentimento; aqueles que tiveram uma situação melhor que a massa desejam elevá-la até seu nível, melhorando a educação, a cultura, a liberdade, sua maneira de viver. Os outros, que sempre tiveram uma situação ruim, querem vingar-se dos mais afortunados e procuram exercer seu novo poder prejudicando os antigos poderosos. Essa concepção, por estar baseada na duplicidade da natureza humana, é válida para todas as épocas. Na Revolução Francesa, a princípio prevaleceu o idealismo. A Assembleia Nacional, composta por nobres e burgueses, os notáveis do país, queria ajudar o povo, libertar as massas; porém, a massa libertada, a violência desenfreada, volta-se logo contra os libertadores. Na segunda fase prevalecem os elementos radicais, os revolucionários do ressentimento, e para estes o poder é novo demais a fim de que pudessem resistir ao prazer de desfrutá-lo à fartura. As figuras de pouca inteligência e da opressão recém-libertada tomam o leme, e sua ambição é a de fazer descer a revolução até o nível de sua própria medida, de sua própria mediocridade espiritual”.

Anos depois, vimos o mesmo acontecer na Rússia. Não vou me estender mais sobre a história de Maria Antonieta. Após a prisão e a tentativa frustrada de fuga, ela tentou de todas as formas retomar o poder, fazer alguma coisa para acolher o povo, ouvi-lo e ser simpática às suas necessidades. Foi desprovida de todos os seus bens, viveu dez anos presa em um palácio, vigiada por guardas e privada daquilo que lhe era mais caro: a liberdade. Neste ponto, a sua preguiça eterna em ler documentos, em prestar atenção às coisas essenciais da vida, acabou. Ela se mostrou uma pessoa forte – “somente na desgraça sabemos quem realmente somos” – determinada e plenamente capaz de governar de forma digna, tomar decisões importantes e fazer o que deveria ter feito logo que assumiu o trono em Versalhes. O rei foi condenado primeiro. Mesmo depois da prisão e de todos os apuros vividos, ele continuou sendo uma pessoa obtusa e inerte, deixando as decisões e soluções à cargo de sua esposa, Maria Antonieta.

A desgraça no fim uniu essas duas pessoas tão diferentes entre si. A rainha passou a sentir pelo marido uma espécie de ternura, de acalanto. Era como uma criança grande, que não conseguiu evoluir até a idade adulta e que nunca soube o que fazer. Mas Maria Antonieta via nele a dignidade, a hombridade e a lealdade que ele sempre lhe ofereceu. A rainha demorou mais tempo para ser condenada. Foi preciso criar uma armadilha perversa para leva-la ao cadafalso. Essa cilada foi uma das maiores sujeiras que já li na minha vida, algo tão diabólico, tão cruel, que fiquei pensando em como o ser humano é baixo, frio e estúpido. Tive vergonha pela humanidade inteira. Entretanto, os mesmos homens que enviaram o casal à guilhotina, pouco tempo depois, trilharam o mesmo destino infeliz.

Não vejo Maria Antonieta e Luís XVI como pessoas injustiçadas ou inocentes. Eles foram cada um à sua maneira culpados pela situação em que terminaram suas vidas. Não mereciam a morte, afinal, sou totalmente contra esse tipo de punição. Acredito que nenhum de nós é ilibado o suficiente para julgar outros seres humanos à morte. Porém, eles mereceram perder o cargo, ser destituídos de suas posses e passarem um tempo na prisão. Não é possível encontrar culpados para esse tipo de situação. O absolutismo deixou marcas profundas na história da humanidade, mostrando que nem sempre um filho tem a mesma vocação do pai. Que um trono herdado poder ser a ruína não só de um homem, mas também de uma nação. E isso serve para qualquer profissão, não necessariamente para a monarquia ou para os impérios constituídos de forma unilateral.

Maria Antonieta, retrato de uma mulher comum é um livro para refletir. Nos ensina uma parte da Revolução Francesa que não aprendemos na escola. Humaniza a pessoa da rainha e coloca em xeque todas as calúnias e difamações sobre a sua pessoa. Porém, apesar de muito bem embasada em fatos históricos, cartas e documentos disponíveis, Zweig a deixa romanceada, dando à biografada sentimentos, pensamentos e reflexões que podem não ser de fato reais. Não há nada que desabone as pesquisas do escritor, mas, é importante deixar claro que ele procurou buscar os aspectos psicológicos dessa mulher em todos os parágrafos da sua obra de mais de 500 páginas. O texto é bastante fluido, de fácil leitura, desperta o pensamento crítico, faz um diálogo com o nosso tempo e desperta a curiosidade do leitor em conhecer mais sobre o período em questão. Recomendo muito esse livro, principalmente para àqueles que não possuem o hábito de ler biografias. É sem dúvidas uma excelente porta de entrada para o gênero.

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