Quadrinho biográfico onde o autor conta a história de seu pai Vladek Spiegelman, sobrevivente de Auschwitz, sem romantizar as situações, quebrando o Kitsch de “pessoa santa” porque sobreviveu a um campo de concentração e refletindo sobre as consequências e sequelas que o holocausto deixou em suas vítimas. É uma história forte, com desenhos precisos, limpos e impactantes, onde os judeus são representados por ratos, os alemães por gatos, os poloneses por porcos, os franceses por sapos e os norte-americanos por cachorros. É mais uma história sobre a Segunda Guerra Mundial sim, mas sob outro ponto de vista.
No início da HQ, há um certo estranhamento nos relacionamentos entre Art e seu pai e também entre o casal formado por Vladek e Mala. A história começa do começo, ou seja, com as entrevistas de Art com Vladek. Mas logo o leitor compreende a lógica desses conflitos: Anja, mãe de Art suicidou-se em 1968, quando o seu único parente vivo após o holocausto faleceu. Anja sofria de depressão desde antes do casamento com Vladek e claro que os campos de concentração e todas as perdas geradas pelo nazismo agravaram o seu problema de saúde. Art herdou da mãe a depressão e, sempre conviveu com o fantasma de seu irmão morto na Segunda Guerra, o qual ele nem chegou a conhecer. Há aqui uma ideia idílica e incômoda que é perpetuada por seus pais de que o irmão, Richieu seria um filho modelo, um filho exemplar. Esse Kitsch existe porque Richieu é o futuro que não aconteceu, o filho que não sobreviveu, a vida que não aconteceu.
A partir desse fato, podemos dialogar com várias situações cotidianas em que nós, que nunca passamos nem por um centésimo do que essas pessoas passaram, tendemos a valorizar aquilo que não aconteceu em nossas vidas como uma eterna possibilidade de realização e de felicidade e esse comportamento nos prende ao passado e não nos permite seguir adiante e viver a vida que temos. Essa foi a infância e a adolescência de Art. Dessa forma, ele se tornou um rapaz revoltado, triste, arredio e que tentava a todo momento quebrar os paradigmas que prevaleciam em sua família. Quando sua mãe faleceu, as pessoas próximas o responsabilizavam por essa perda, como se a decepção que os pais tinham com Art fosse o motivo desse suicídio. Infelizmente muitas pessoas ainda não compreendem o que é a depressão e este é um assunto que não pode se esgotar, pois, todos os dias alguém morre por causa dessa doença. E, em consequência disso, aqueles que ficam e que precisam lidar com a perda do ente querido ainda são julgados pelas más línguas de serem os eternos responsáveis.
Assim, compreendemos porque Art é tão hostil com o seu pai. Porque ele não o trata com carinho e também não se orgulha tanto dos feitos de Vladek na Segunda Guerra Mundial. Talvez seja um pouco difícil para nós que nunca passamos por nada semelhante imaginar como é carregar um fardo tão pesado como esse: ser descendente de um sobrevivente dos campos de concentração. Certamente, todas as conversas de sua família devem girar em torno de Auschwitz. O campo de concentração e a SS, devem sentar à mesa todos os dias com a família na hora das refeições. Eles também devem acompanhar essas pessoas nos dias de lazer, na hora de assistir a um filme na TV, na hora de dormir – sim, Vladek gritava durante a noite inteira. E esses fantasmas não são tão simples de se expulsar da mente. Por mais que façamos terapias, meditações, yoga, ou qualquer outra coisa que possa ajudar a manter a sanidade mental, essas são lembranças que nunca vão embora, traumas com os quais vamos ter de conviver para sempre.
Após a morte da esposa, Vladek se casou com Mala, também sobrevivente dos campos de concentração. O grande problema é que Vladek nunca esqueceu Anja. Depois de voltar de Auschwitz, ele não se desligou totalmente do seu passado. O que significava vida para ele era o que tinha na Polônia antes de Hitler: sua família grande, um casamento sólido com a mulher amada, um filho “perfeito”, sua fábrica de meias, dinheiro, casa confortável, o respeito das pessoas e principalmente, sua pátria e suas origens judaicas. Todas essas coisas, que para Vladek significam sua vida, lhe foram arrancadas de forma hostil, trágica e bárbara. Muitas pessoas como ele passaram por isso também e cada uma delas lidou com essa brutalidade da forma que pode. É o que fazemos: lidamos com o horror do jeito que dá.
Vladek se tornou um homem avarento, sovina e muquirana. Tem como julgar? De jeito nenhum! Para ele, todo o dinheiro que acumulou, toda a comida que economizava, todas as tralhas que guardava em um cômodo da casa ou na garagem poderiam ser moedas de troca em um momento de precisão. Para ele, Hitler e a SS poderiam voltar a qualquer hora. Quem nunca passou fome, frio, necessidades básicas não pode compreender esse comportamento de Vladek, mas é muito crível e pertinente que ele se torne uma pessoa avarenta ou que tenha muito medo de perder tudo de novo. Mala não se comportava da mesma forma: ela gostava de se permitir os prazeres da vida, sair, comer bem, ir ao salão se pentear, viajar, passear. Ela tentava viver de novo, em uma vida nova, esquecer Auschwitz. Porém, não podia contar com a companhia de Vladek para isso. Ele ainda tinha muito medo de precisar de dinheiro para comprar sua vida ou sua liberdade e não ter de onde tirar.
A sobrevivência de Vladek nos campos de concentração e até mesmo antes de ir parar em um, se deve a um conjunto de habilidades que esse homem possuía e que foram fundamentais para que saísse com vida do holocausto. A começar por ele ser um vendedor nato. Hoje sabemos que podemos vender a nossa imagem também e, ele teve a capacidade de fazer isso logo no começo das movimentações antissemitas. Dessa forma, angariou alianças preciosas, amigos, prestou favores que lhe seriam úteis posteriormente, guardou tudo o que pode de valor monetário e protegeu os seus enquanto pode. Em suas andanças pela Polônia até a captura, por onde passou procurou ser útil, trabalhar, ajudar as pessoas que lhe estendiam a mão. Não hesitava em pedir ajuda para os seus entes queridos, guardava mantimentos que conseguia ou qualquer outra coisa de valor que pudesse servir como moeda de troca por sua liberdade ou por sua vida.
Se escondeu nos lugares mais insalubres que se possa imaginar. Fingiu ser polonês e saudou Hitler quando precisou se disfarçar para sobreviver. Fez amigos no campo de concentração, aprendia com facilidade novas habilidades e novos trabalhos a fim de ser sempre útil aos nazistas e não ser morto por nada. Evitava ficar doente e descobriu logo qual o melhor momento para pegar a sopa na fila de Auschwitz, deixando que alguns colegas passassem na sua frente, ganhando assim outros favores no momento certo. Sempre guardava uma parte da sua ração para trocas futuras ou para comer quando não tivesse opção. Sua habilidade com os idiomas – é fato que o estudo para os judeus é muito importante e, geralmente, eles são todos poliglotas – ajudou muito na sua sobrevivência no campo de concentração. Talvez, se Vladek não guardasse tantas habilidades de adaptação rápida, de aprendizado, de raciocínio lógico, ele não teria sobrevivido, assim como aconteceu com os seus irmãos, amigos e familiares.
Os traumas permaneceram, mas a vida foi preservada e sua história foi contada com dignidade. Nós não somos de jeito nenhum, pessoas santas. Nem mesmo passando por tudo o que Vladek passou. Ele foi um homem admirável, cheio de assincrasias, mas ainda assim admirável. Tinha os seus preconceitos, as suas chatices, as suas limitações, como todas as pessoas do mundo. Mas, ele fez a sua parte conseguiu sobreviver a um dos maiores genocídios do mundo. Presenciou os amigos e colegas serem sufocados nas câmaras de gás e depois serem incinerados nos fornos de Hitler. Viu também outros serem queimados vivos em covas rasas com o auxílio da gordura dos corpos de outros mortos pelo gás Zyklon B. São cenas terríveis demais para serem esquecidas e Art, herdou o medo de ser sufocado durante a noite por esse veneno, de tanto ouvir seus pais falarem sobre Zyklon B.
É perceptível que o holocausto provocou uma devastação na vida de muitas gerações posteriores à dos sobreviventes e vítimas do antissemitismo. Depois de 84 anos ainda lemos, assistimos e ouvimos essas histórias com horror e com medo, medo de um dia outro Hitler aparecer no mundo e resolver destruir alguma população que em sua mente doentia lhe é hostil. Infelizmente, mesmo sabendo de todas essas atrocidades, ainda existem pessoas que compartilham desse pensamento e que apoiam ideias nazistas, antissemitas, separatistas e racistas. Por isso, histórias como Maus não são dispensáveis. Tornam-se cada vez mais urgentes para a reflexão e a certeza de que sim, infelizmente isso foi real e deixou marcas profundas na humanidade.