crítica

Memorial de Maria Moura – Rachel de Queiroz

“A vitória da minha candidatura representou a quebra de um tabu. Neste sentido me senti satisfeita, porque vivi a vida inteira na luta contra os formalismos, as convenções, os tabus e os preconceitos. ”

Este trecho faz parte do discurso da escritora cearense Rachel de Queiroz no ensejo de sua admissão na Academia Brasileira de Letras em 1977. Ela foi a primeira mulher a ingressar na ABL e a sua fala representa muito do que é Maria Moura. Uma mulher totalmente à frente de seu tempo, cangaceira, valente, caminhante, desbravadora e até mesmo assassina. Afinal, nas palavras da personagem “era eu ou eles”.

Ainda criança, Maria Moura perdeu o pai, a quem amava profundamente. Sua mãe se casou com outro homem, inescrupuloso, ardiloso e bastante ambicioso. Em um dado momento, sua mãe aparece morta, aparentemente, suicídio, mas há controversas sobre o assunto. E a partir de então, Moura está sozinha para lutar contra seus desafetos, que a imaginando sozinha, indefesa e ingênua tentam se aproveitar da órfã para tomar-lhe suas posses. Assim, ela precisa se defender. E faz isso muito bem.

O desenvolvimento da personagem é lindo, muito bem feito. Ela vai percebendo o ambiente que a cerca e provida de muita inteligência e senso de sobrevivência, começa a planejar sua defesa e seu futuro. Apesar de cometer crimes, ser uma anti-heroína, Maria Moura se aproxima muito do real, do ser humano em um ambiente hostil e primitivo, onde a lei é cada um por si. A ambientação do romance é outro ponto alto. Século XIX, fim da Sesmaria, início do cultivo de terras e época dos grandes latifundiários que ditavam as regras de comércio e até mesmo de justiça.

A escravidão estava acabando. Mas o preconceito não. Rachel de Queiroz trabalha todos esses elementos na obra de forma clara e incômoda, para que o leitor se lembre de como foi a vida naqueles tempos. As relações dos fazendeiros com as mulheres escravizadas e os filhos fora do casamento, a miscigenação e o início das desigualdades sociais são um dos fios condutores do romance. A situação dos indígenas também é retratada pela autora, mostrando como as aldeias foram invadias e essas pessoas retiradas de suas terras sem o menor pudor.

Maria Moura pode ser lida como uma justiceira que não tem limites para conseguir o que quer. Porém, traz dentro de si um código de ética, ao qual ela segue à risca e exige de todos os que vivem em suas terras que o sigam também. Ela consegue transitar entre os grupos sociais de forma até certo ponto dissimulada, baseada em seus interesses. Mas, com os seus companheiros e amigos e principalmente com os mais fracos, ela procura ser justa. Por esses apontamentos fica bem claro o quão complexa é essa personagem.

Outro ponto de destaque da protagonista é o fato da autora ter colocado nela todas as características masculinas. Como por exemplo, os relacionamentos que mantinha com os homens. Maria Moura os trata da mesma forma como os homens tratavam as mulheres – e ainda tratam. Ela não se apegava, não se apaixonava e travava com eles relações apenas por prazer, os usava e descartava de maneira bem simples e fácil. Até que um deles a conquistou e o desfecho é um machismo às avessas, que mostra a transgressão da escritora, a coragem de criar uma mulher tão diferente, dentro dos clichês masculinos da época. Maria Moura é uma desconstrução dos tabus, dos preconceitos e do que conhecemos por feminilidade frágil.

Mas, a história desse clássico da literatura brasileira não se limita à protagonista. Há mais dois núcleos de personagens que compõem essa obra e que suas histórias irão se intercalar do meio para o fim do romance. O primeiro é o Beato Romano, um personagem interessantíssimo, bastante complexo, cheio de camadas e nuances e que traz as maiores reflexões do livro. Ele foi padre devido a uma promessa feita pela mãe. Entretanto, acabou se envolvendo com uma mulher casada na cidade onde era pároco. Claro que, considerando a época e as circunstâncias, esse afair estava fadado à desgraça. E dessa forma, Beato Romano começa uma fuga física e psicológica até encontrar abrigo e um pouco de paz na casa forte de Maria Moura.

O terceiro núcleo do romance tem como protagonista a prima de Moura, Marialva. Ela resolve fugir da tirania de seus irmãos para se casar com Valentim, um saltimbanco que estava de passagem pela fazenda, cumprindo uma promessa feita por sua mãe também. Reparem que era mesmo um costume as mães fazerem promessas para os filhos cumprirem. É engraçado que ainda hoje vemos esses casos pelos arredores do Brasil. Aliás, esse é um tema que a autora vai explorar bastante, com reflexões pontuais sobre o nosso hábito de jogar para o outro aquilo que nos incomoda ou que gostaríamos de ter feito e não fizemos.

Marialva e Valentim são o par romântico da obra. Eles vão enfrentar muitas dificuldades ao longo de sua jornada e vamos conhecer um pouco sobre a vida dos nômades, que viajam pelo mundo em busca de lugares para se apresentar, vivem de sua arte, de seus espetáculos. Queiroz trata sobre esse tema com muita humanidade e nos faz pensar sobre o que nos atrai nesses espetáculos mambembes ou nos circos. Será que desejamos mesmo ver o acrobata cair da corda bamba? Ou que o lançador de facas erre o alvo e realmente atire uma faca na sua ajudante? Queremos sangue e lama?

Este foi o último romance escrito por Rachel de Queiroz em 1992. Ela foi uma figura bastante polêmica, mas que não abria mão de suas convicções. Tanto é que escreveu seu primeiro romance aos 19 anos e não parou mais. Foi presa pelo Estado Novo, acusada de subversão, teve seus livros queimados na mesma época, escrevia romances sociais e integrou o Partido Socialista Brasileiro. Porém, não cedeu às censuras do partido, preferindo se desfiliar a se tornar uma escritora reprimida. Posteriormente, apoiou a Ditadura Militar, o que causou uma repercussão bastante negativa para ela. Mas, Rachel de Queiroz, assim como Maria Moura, “não é criada de ninguém”.

Todavia, não nos cabe julgar uma mulher que viveu o que não vivemos. Foi retirante, pobre, sofreu na pele as dificuldades da vida. Ainda assim, foi uma grande tradutora, romancista, escritora, jornalista, cronista e dramaturga brasileira. Figurou entre os grandes nomes do Modernismo da geração de 1930, dando ênfase em seus romances ao regionalismo, abordando temas como a seca, a miséria e as desigualdades. A partir de 1939, adotou um caráter mais intimista em suas obras, com enredos mais psicológicos e questões sobre a maturidade feminina.

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