crítica

Meninas – Liudmila Ulítskaia

Eis que finalmente chega ao Brasil o primeiro livro da escritora russa Liudmila Ulítskaia, nome bastante cotado para o Nobel de Literatura, vencedora de vários prêmios literários mundo a fora e que se tornou escritora por mero acaso, após ser demitida do laboratório onde trabalhava por emprestar sua máquina de escrever a um escritor censurado pelo regime stalinista.

Nesta coletânea de seis contos chamada Meninas (Editora 34, 2021), o grande protagonista, parafraseando Danilo Hora, é ninguém mais ninguém menos que toda uma geração, um grupo de pessoas que viveram o pós-guerra e os anos finais do período soviético. As histórias são narradas sob o ponto de vista sutil e ingênuo de garotas entre 9 e 11 anos de idade, fazendo algumas menções aos eventos históricos da época, sem entregar ao leitor exatamente o que estava acontecendo.

Acompanhamos junto a essas meninas as reverberações do tempo e dos acontecimentos históricos na vida cotidiana dessas crianças e de suas famílias. O olhar infantil coloca uma espécie de óculos nos olhos do leitor, fazendo com que ele desenvolva a sua capacidade lírica e interpretativa para inferenciar os fatos dentro da narrativa. De acordo com a pesquisadora Helena Goscilo, “a função das mulheres durante os grandes eventos históricos era manter viva a memória dos povos que enfrentaram os campos de batalha, documentar o dia-a-dia de sua vida intelectual e registrar a depressão e o desespero dos cidadãos que sabiam exatamente o que estava acontecendo em seu país”.

Pode-se dizer que o cenário desses contos viscerais escritos por Ulítskaia é a retomada da vida na Moscou pós-guerra. A trajetória de seus personagens é única, trazendo uma personalidade para cada um deles, tirando-os do lugar comum onde geralmente a pessoa russa é colocada na literatura. A autora mostra ao leitor uma realidade dura e triste através de histórias sobre doenças e deformidades, algo bastante comum naquele tempo. Seus personagens carregam em si uma carga dramática muito forte, sem se tornarem piegas ou clichês. É como se fosse um retrato da vida como ela é, de pessoas verossímeis e suas vicissitudes.

O que alicerça esse conjunto de histórias que se cruzam são a tolerância e o respeito às diversidades. Passeiam pela obra pessoas de todos os espectros étnicos dos quais é formada a população russa, além de figuras reais de diversas sexualidades, diferentes entre si, mas que se comunicam e que habitam o mesmo tempo e lugar. Temos as memórias íntimas de uma geração de garotas como cenário de uma grande história.

A autora não tem problemas em abordar temas considerados tabu no mundo soviético, tais como o desaparecimento de pessoas, a situação da mulher soviética, o medo constante das famílias em serem denunciadas por seus próprios filhos, devido à sua ingenuidade, a separação das escolas entre meninos e meninas, os estrangeiros e sua vida exótica para pessoas que não conheciam tecidos diferentes do poliéster e da sarja e os cintos de castidade utilizados pelas mulheres com o objetivo de evitar a natalidade.

 A situação dos judeus e a xenofobia aparecem na obra de forma sutil, mas pungente. As crianças aprendiam desde cedo a desprezar certas etnias e a valorizar outras. Os costumes da época também constituem um ponto alto da obra: a pobreza, a miséria coletiva, a prostituição, o abandono de crianças em latas de lixo, as crendices populares, os casamentos por conveniência e o medo constante de desagradar o regime e ser punido por isso.

O estilo de vida dessas famílias tão diversas era muito parecido devido ao sistema comunista adotado na União Soviética. O acesso à informação e a itens comuns em outros países era escasso na Moscou daquele tempo. Garfinhos de plástico utilizados em festas de aniversário infantil, guardanapos com estampas da Disney e broches dos sete anões constituíam tesouros para aquelas crianças privadas de uma vida globalizada. Uma das personagens tinha como brincadeira predileta a construção de sekriétiki (segredinhos), atividade bastante comum no Leste Europeu que consiste em fazer um buraco no solo e enterrar nele coisas bonitas, cintilantes, especiais ou mesmo trivialidades como papéis de balas coloridos, flores murchas (ou não), fotografias antigas e depois, esse buraco é coberto com vidro, formando uma espécie de memorial, que é coberto com terra. Esses sekriétiki serviam como uma relíquia, um espólio da vida, uma cápsula do tempo para o nosso eu do futuro.

Talvez a construção desses sekriétiki seja uma metáfora ou até mesmo uma metonímia para essa antologia de contos: um mosaico feito a partir de um recorte de uma população sofrida, diversificada e que apesar de tudo, ainda consegue ver um pouco de beleza e de brilho em uma vida onde não se pode sonhar com um futuro diferente ou melhor. Para quem desconhece outros estilos de vida, até mesmo o ato de sonhar é limitado; as ambições são pequenas e esse mosaico da vida é belo ao mesmo tempo em que é triste. Traz esperança ao passo em que traz melancolia; distrai enquanto a vida acontece lá fora dos muros soviéticos.

Outra leitura para os sekriétiki são os próprios segredinhos da infância e juventude que guardamos em nossa memória. Essas confidências, muitas vezes veladas, são coletivas e traduzem toda a infância de uma geração: vida familiar, primeiros amigos e amores, primeiras perdas e com elas, a infância é invadida pela crueldade, escassez e maldades do mundo real. Mundo esse onde a curiosidade muito própria das crianças é desestimulada por medo de ser delatado; onde pessoas desaparecem de repente, sem deixar vestígios; onde as desigualdades sociais existem, a ignorância e o analfabetismo são armas contra a população, transformando pessoas comuns em párias e cidadãos de segunda classe. Essas memórias coletivas são descritas com muita habilidade nesses contos, onde o protagonismo é a maior ausência e o mais importante é o não dito.

Finalizo essa resenha desse livro que recomendo fortemente a todos com uma citação da própria autora:

Nem a história, nem a geografia possuem uma dimensão moral. É o homem quem a traz. Por vezes dissemos que os tempos são cruéis. Mas todos os tempos são cruéis, à sua maneira. E são, à sua maneira, interessantes. Um tempo cria certas feições nas pessoas, mas o que determina a feição do tempo? ”. (ULÍTSKAIA, 1945/ 1953) https://amzn.to/3gLnpmA

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