crítica

Meu nome é vermelho – Orham Pamuk

Através de uma escrita muito elegante, com dezenove narradores (com a mesma voz), Orham Pamuk desenvolve nesse enredo uma trama policial, onde o leitor vai descobrindo aos poucos quem cometeu os crimes e suas motivações, após passar por uma viagem à Turquia do século XVI, compreendendo as questões ideológicas que permeavam as artes do Império Otomano e as idiossincrasias da religião islâmica que ditavam as regras de conduta em Istambul naquele tempo.

O enredo básico de Meu nome é vermelho (Companhia das Letras, 2013) gira em torno do assassinato de um miniaturista (artista otomano que pintava imagens para ilustrar os livros encomendados pelo Sultão) chamado Elegante Efendi, que também é um narrador personagem e já no primeiro capítulo do livro acusa um de seus três colegas – Oliva, Borboleta ou Cegonha de o ter matado por desacordos em relação ao trabalho que estavam executando na época do crime. A ilustração que estavam fazendo é o tema principal do romance, porque a partir dela o autor vai discutir questões éticas, morais, religiosas, culturais e principalmente a posição da Turquia no mundo e no Império Otomano.

As questões relacionadas à arte turca e que servirão como mote para os homicídios da trama principal do romance começam com a encomenda do Sultão de um livro ao Tio Efendi, porém, este convenceu o sultão de que as ilustrações deveriam seguir o padrão vienense. É preciso atentar aqui para a ambientação da prosa, porque durante o século XVI, a Itália e a Áustria eram rivais do Império Otomano, tanto no sentido territorial, quanto no sentido ideológico e artístico. Para os islâmicos (maioria absoluta na Turquia) a arte deveria ser anônima, ou seja, todos deveriam pintar do mesmo jeito, sem assinaturas e sem elementos que pudessem caracterizar o pintor que a fez. Isso porque, de acordo com o Corão, os miniaturistas deveriam ver o mundo da mesma forma que Alá vê o mundo. Dessa forma, se um artista colocasse algo de pessoal na pintura, ele estaria cometendo uma insurreição contra as normas do Corão e ofendendo a Alá.

Já para os ocidentais, a arte era uma expressão identitária, ou seja, cada pintor seguia o seu próprio estilo e as obras se destacavam justamente por essas diferenças de posicionamento, de perspectiva e de subjetividade de cada pintor. Tio Efendi tinha uma curiosidade muito grande em relação a esse modo de criar e de ser artista no mundo e assim, convenceu o sultão a permitir que o seu livro seguisse as regras italianas de arte. Com a permissão do sultão, ele repassou essas orientações aos quatro miniaturistas escolhidos e o trabalho começou. Porém, em meio a toda essa discussão, Elegante sentiu um certo remorso por insurgir contra as regras do Corão e ao ver a última pintura, decidiu denunciar o livro às autoridades otomanas para que essa obra fosse destruída. O assassino por sua vez, tinha interesses financeiros e ególatras em relação a essas pinturas e esse foi o motivo do primeiro homicídio.

Durante o Império Otomano, uma pessoa que fosse presa por desobediência, traição ou insurreição era exposta a torturas muito graves e certamente condenada à morte. No caso dos pintores, tanto o Tio Efendi, que era o líder e organizador do livro, quanto os quatro miniaturistas seriam condenados a essas penas por descumprirem as regras rígidas do Corão e do Império. Essas discussões sobre tradições, regras de conduta, crenças, religião e principalmente as diversidades culturais serão o assunto principal do livro, onde o autor mostra muito sobre a Turquia antiga e moderna, e além disso, aponta questões éticas e morais do ser humano que farão desses personagens tão distantes de nós, humanos, conflituosos e complexos.

Em meio a toda essa questão da confecção do livro, chega da guerra à Istambul, Negro Efendi, sobrinho do Tio Efendi e apaixonado desde os 12 anos de idade pela prima Shekure, filha do Tio, casada com um soldado que aparentemente morreu na guerra e mãe de dois filhos. Negro e Shekure serão os principais narradores do enredo e viverão uma história de amor muito peculiar, que mostra um pouco da realidade dura da vida, sem romantismos e sem idealizações como costuma-se ver em alguns textos. Shekure inclusive, é uma personagem bastante complexa, que toma as rédeas da própria vida, que exige do Negro uma série de promessas para ser sua esposa. É uma mulher à frente do seu tempo em muitos sentidos, prática, mas ao mesmo tempo indecisa. Resolve as coisas ora motivada pelos sentimentos, ora pela razão. Mas o principal para a jovem é estar protegida e ter um lar estável para os filhos que são as pessoas mais importantes de sua vida.

Para a melhor compreensão dessas discussões que podem não fazer muito sentido para nós, é interessante saber um pouco mais sobre a Turquia, que é um país euro-asiático que ocupa toda a península da antiga Anatólia e tem uma posição geográfica muito importante. Esta região (atual Turquia) é considerada um dos locais mais antigos do mundo, de onde podem ter surgido diversas línguas orientais, lugar onde se estabeleceu o assentamento do Exército de Tróia, teve ocupação das tropas de Alexandre o Grande e após a sua morte, foi dividida em reinos helênicos, que foram absorvidos pelo Império Romano. Istambul foi a capital do Império Romano, durante o governo do Imperador Constantino I e chamava-se Constantinopla. Após a morte deste, passou a chamar-se Istambul. Foi capital do Império Bizantino, após a queda do Império Romano, no final do século V. O Império Bizantino foi derrotado pelo Império Otomano, que assumiu o poder em 1299, sob o comando de Osmã I, que posteriormente foi dominando o restante dos reinos, até a tomada de Constantinopla em 1453, pelo Sultão Maomé II, marcando assim o fim da Idade Média.

Durante o século XVI, o Império Otomano ocupava desde o Sudeste da Europa, ao Sudoeste da Ásia e Norte da África. Esses países lutavam por sua independência e com o movimento das expansões marítimas, com as expedições de Cristóvão Colombo, e os empreendimentos de Portugal e Espanha, o Império Otomano encontrou outro forte combatente nos persas, que em algumas circunstâncias se aliaram aos portugueses e travavam com o Império além de batalhas territoriais embates por questões religiosas e ideológicas. A arte persa e os costumes desses povos também são discutidas no enredo e nos diálogos de Meu nome é vermelho.

Com o fim do Império Otomano durante a Primeira Guerra Mundial, a Turquia se tornou um país de interesse tanto para o Ocidente quanto para o Oriente. É comum dizer que o país fica entre dois mundos, tendo assim uma importância geopolítica muito grande. O país tem boas relações diplomáticas com a Europa, participa das principais organizações ocidentais existentes, ao passo em que mantém boa política com os países asiáticos e africanos. É considerada uma grande potência por ter uma economia forte, um bom aparato bélico e recursos das forças armadas considerável. A religião predominante continua sendo o islã, com uma minoria cristã e judaica, além de agnósticos e ateus. Atualmente, a capital da Turquia é Ancara, mas a maior cidade continua sendo Istambul, que foi a capital pré-republicana e é também o centro econômico, financeiro e cultural do país.

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Há uma diversidade cultural muito grande na Turquia que vem da mistura das tradições dos povos turcos, primordialmente de raiz oguz (povos que ocupam a região desde o século XI), da cultura otomana, que é uma continuação da cultura greco-romana e islâmica e da cultura ocidental moderna. O Império Otomano tinha como base a religião islâmica, que fazia parte do governo e assim ditava as regras da arte e das expressões culturais na época. Após o seu fim, as tendências artísticas modernas e ocidentais ganharam expressão no país, algo que é discutido em demasia em Meu nome é vermelho. Vários fatores históricos têm papéis importantes na definição da identidade turca contemporânea. A cultura turca é um produto dos esforços no sentido de tornar o país um “estado ocidental moderno” ao mesmo tempo que se mantém muitos dos valores tradicionais religiosos e históricos.

A literatura turca tem forte influência persa e árabe, além do folclore turco e das tradições literárias europeias. Essas influências aparecem em forma de símbolos do entrelaçamento entre culturas muito presentes nas obras de Orham Pamuk. Diante desse panorama cultural sobre o país, entende-se as motivações do autor em criar dezenove pontos de vista diferentes, com a mesma voz, mas que se conectam uns com os outros, em uma trama linear. Na verdade, o autor através das discussões sobre arte, com viés humanístico, deixa pistas ao leitor sobre quem é o assassino e por que ele tem tanto interesse em ser conhecido e em ganhar dinheiro.

Além disso, Pamuk propõe uma reflexão sobre as motivações da arte ser tão diversa e tão característica em cada lugar do mundo. Pode parecer óbvio, porém este não é um assunto tão simplista assim para os leigos. A arte tem uma função muito grande na cultura dos povos e vai contar as histórias de cada nação, de cada civilização, que ficará para a posteridade. Assim, as idiossincrasias de cada lugar são expressas através da arte local, não fazendo sentido que sejam iguais em todos os lugares. Apesar das vanguardas artísticas, que apontam um novo conceito de se produzir arte e de se expressar, cada indivíduo deixará a sua marca naquele trabalho, até mesmo os otomanos.

No final do enredo de Meu nome é vermelho, há uma investigação sobre os homicídios é justamente a partir das pinturas dos três miniaturistas que o assassino é revelado. Ou seja, mesmo na arte islâmica há traços de individualidade do artista. Neste ponto, há uma relação direta do texto de Pamuk com o estilo de cada artista, de cada escritor. O conjunto de sua obra traz características muito próprias de sua escrita e que são notáveis para os leitores que já estão familiarizados com os seus livros. Os temas que lhe são caros são sempre voltados para essas questões identitárias da Turquia e do povo turco, que vive entre dois mundos.

Alguns leitores consideram Meu nome é vermelho um livro maçante e repetitivo. Entretanto, essa é uma escolha do autor, para mostrar que as histórias antigas que são contadas sob diversas perspectivas e de formas diferentes, estão ali para mostrar os ciclos da vida, a maneira como as tradições fazem parte do indivíduo e que ele não se desprenderá delas tão facilmente. Há no texto algumas histórias místicas contadas pelos mestres, que terminam por se revelar como a própria vida, elas fazem parte da construção dos personagens e do seu desenvolvimento. Essa chave de leitura fica muito evidente no final do romance.

Ao debater os estilos de arte persa, islâmica, renascentista e vienense, Pamuk traz à tona outra discussão muito importante e que permeia a nossa vida desde sempre que é o medo do novo, a resistência às mudanças e aos novos ciclos da vida. No Império Otomano, as pessoas estavam acostumadas àquele estilo de vida e presas às suas certezas. Quando aparecem novidades, nas artes ou no modo de viver, os mais radicais abominam tudo aquilo, sem ao menos experimentar ou observar com mais parcimônia a fim de ter uma opinião menos divergente. A maior aflição desses povos estava relacionada à perda de sua identidade e de suas certezas. A insegurança causa desconforto e medo nas pessoas e essa questão continua sendo assim até hoje em qualquer lugar do mundo. Para um país predominantemente islâmico, a mudança ainda é vista com maus olhos e com muitas reservas.

Meu nome é vermelho é um livro que nos deixa mais inteligentes. Afinal, para entender o enredo com profundidade, acessamos o Google com frequência para ver as iluminuras, os palácios do Império Otomano, revemos também os nossos conhecimentos históricos sobre o período e aproveitamos o ensejo para aprender mais sobre como anda o país nos dias atuais. Para leitores como eu, que sempre fui fascinada por culturas diferentes e por conhecimento, este livro é um prato cheio de cultura, de ensinamentos, de discussões interessantes, de apontamentos sobre ética e moral, além de ter como pano de fundo um romance policial dos bons. A escrita do autor é muito bonita, mostra a sua identidade cultural e o seu lugar no mundo. Recomendo fortemente essa leitura como uma viagem à Turquia do Império Otomano e como um mergulho na mente desses personagens tão marcantes e cheios de camadas a serem descobertas.

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