crítica

Middlemarch – George Eliot

Na verdade, aqueles atos decisivos de sua vida não foram idealmente bonitos. Foram o resultado da mistura de impulsos jovens e nobres que lutavam em meio às condições de uma situação social imperfeita, na qual grandes sentimentos frequentemente assumem o aspecto de erro, e a grande fé, o aspecto de ilusão. Pois não há criatura cujo ser interior seja tão íntegro que não seja significativamente determinado pelo que existe ao seu redor. Uma nova Teresa dificilmente teria a oportunidade de transformar a vida no convento, assim como uma nova Antígona não usaria sua piedade heroica arriscando tudo para enterrar seu irmão: o meio pelo qual seus atos ardentes tomaram forma desapareceu para sempre. Mas nós, pessoas insignificantes, com nossas ações e discursos diários, preparamos a vida de muitas Dorotheas, algumas das quais podem oferecer um sacrifício muito mais triste do que o de Dorothea cuja história conhecemos. (…) o efeito de sua existência sobre as pessoas ao seu redor foi incalculavelmente expansivo, pois o bem crescente do mundo depende em parte de atos sem história, e que as coisas não estejam tão ruins para você e para mim, como poderiam ter sido, deve-se em parte aos muitos que viveram fielmente uma vida oculta e descansam em tumbas não visitadas” (ELIOT, 2022, pág. 858)

O trecho acima é o final desse romance vitoriano, complexo, cheio de personagens, com características históricas fortes e fruto de extensa pesquisa da autora para entregar ao leitor uma obra crível, embasada na realidade; verossímil em todos os aspectos e principalmente, uma obra que leva o leitor à reflexão sobre o casamento e a vida provinciana da época. Temos aqui uma história que transcorre ao longo do século XIX, em uma província inglesa muito tradicional e que passa por transformações, como a chegada das ferrovias, as mudanças de paradigmas advindas da Reforma e a revolução industrial e também na ciência.

O leitor acompanha nas mais de 800 páginas desse romance vários personagens que vivem em Middlemarch e através deles, a autora discute temas universais tais como o casamento, a vida familiar, ética, moral, o papel da mulher na sociedade, o dogmatismo, o machismo arraigado, o patriarcado e a vida errante que levamos quase sempre sem querer. O núcleo central do enredo gira em torno de dois casais bastante estranhos: a jovem, bela e quixotesca Dorothea e o conservador patriarcal Mr. Edward Casaubon em contraponto com a jovem mimada Rosamound e o médico idealista Lydgate. É claro que, esses personagens não são apenas esses estereótipos mencionados aqui. Eles são extremamente complexos e bem desenvolvidos, levando o leitor à compreensão da mente humana em vários aspectos. Porém, essas características principais dos protagonistas serão cruciais para as suas escolhas e para o caminho que vão escolher para seguir.

O casamento de Dorothea e Mr. Casaubon acontece pelo fato da jovem desejar ardentemente ser útil à sociedade de alguma forma. Ela não se contentava com a vida vazia de uma esposa, dona-de-casa e mãe. Para ela, o conhecimento e principalmente a filantropia davam sentido à vida. Escolher dentre tantos pretendentes um homem com idade avançada e características físicas decadentes, assustou a população de Middlemarch, que nunca pensou no casamento de uma forma romântica ou irracional: o certo seria uma moça como Dorothea casar-se com um rapaz jovem, com um título de nobreza, bonito e cheio de vida como ela. Claro que, esse pretendente precisaria necessariamente ser bem rico também. Entretanto, aquele considerado ideal para ela teve de se contentar em casar-se com Celia, a irmã mais nova de Dorothea.

Já o casamento estranho entre Rosamound e Lydgate, se deu por um capricho da moça, que sempre foi muito mimada, sempre teve as suas vontades atendidas por seu pai, apesar de, como toda boa moça de família vitoriana, Rosamound guardar características vazias, supérfluas e não saber viver sem luxos. Por outro lado, Lydgate não tinha planos de se casar tão cedo. Órfão de pai e mãe, sempre em oposição com os seus tutores devido à sua mente idealista, muda-se para Middlemarch em busca de oportunidades para realizar suas pesquisas na área da medicina e atender aos pobres gratuitamente. Seu projeto é apoiado pelo tio de Rosamound, Bulstrode, uma figura não muito querida na cidade. Essa associação com o banqueiro membro da família da futura esposa lhe renderá até o final da história grandes dissabores. O casal se forma depois de Lydgate muito ingenuamente, dançar algumas vezes com Rosamound e passar a ser pressionado pela família dela e pelos vizinhos, que tomam conta da vida de todo mundo a um compromisso formal, para não macular a honra da moça. Ele então acaba se apaixonando de verdade por ela e, mesmo contra a vontade do pai da jovem, eles se casam.

O irmão de Rosamound, Fred Vincy é também um homem mimado e que não sabe o que quer da vida. Se perde em dívidas devido ao seu apreço por cavalos de corrida e por ser uma pessoa muito irresponsável. A imaturidade de Fred constitui um empecilho para que ele possa pedir a mão de sua amada Mary, uma moça simples, porém, muito ativa, trabalhadora e que mantém sempre os pés no chão. A personalidade do casal que se ama desde a infância não parece promissora. Porém, o leitor tem a oportunidade de acompanhar o desenvolvimento de Fred até que ele encontre um sentido para a sua vida e as suas habilidades profissionais. Há uma discussão a partir desse núcleo do romance sobre as diferenças de classe e a maneira como a sociedade nos conduz na educação e na criação dos filhos. Por fazer parte de uma família aristocrática, Fred deveria seguir a carreira eclesiástica sem contestações, assim como Lydgate. Quando demonstram inaptidão para essa função, há um descontentamento por parte de suas famílias, afastando esses jovens de suas casas e levando-os a seguir caminhos diferentes, porém, conflituosos até compreenderem um pouco mais sobre a vida.

Uma figura central de Middlemarch é Farebrother, um pastor jovem que seguiu o caminho indicado por seus pais e está sempre ajudando as pessoas que precisam de uma palavra amiga ou de um conselho. Como realmente tem uma vocação eclesiástica, está sempre ajudando no crescimento e no desenvolvimento de Fred e também apoiando Dorothea em suas empreitadas sociais, além de ser um forte apoio a Lydgate em seus piores dias. Porém, o personagem mais intrigante desse longo romance é Will Ladslaw. Cercado por diversos acasos do destino, ele é um primo distante de Mr. Causabon e do meio para o fim da obra, o leitor descobre a origem de sua família, que provoca também fortes discussões e questionamentos sobre preconceitos, honra e moral. Além disso, Ladslaw é um artista pobre, considerado por todos na cidade como um forasteiro inconsequente e inconveniente devido a algumas associações que faz na cidade. O jovem primo de Causabon e Dorothea serão grandes amigos e se compreenderão mutuamente de forma simples e natural.

Essa compreensão do outro pode ser considerada o mote central dos conflitos do romance e das intrigas que vão acontecendo ao longo do enredo. George Eliot propõe uma discussão muito interessante e profunda sobre expectativas versus realidade com base no casamento. Ou seja, as pessoas se casam apaixonadas ou não com uma ilusão de alguém. Ao adentrar no lar e na instituição do casamento, elas descobrem que estão vivendo com um completo estranho. Até que os pares saiam de dentro de si mesmos e comecem a olhar para o outro como ele realmente é e aceita-lo dessa forma, muitos anos já se passaram e a infelicidade, a angústia e a decepção, muitas vezes já venceram qualquer tentativa de sucesso a dois. Através de comportamentos que para o leitor que tem acesso à mente dos personagens são esperados deles, os problemas no casamento se intensificam. Dorothea esperava que Causabon fosse um grande mestre e que a ensinasse coisas interessantes sobre o mundo, a arte e a vida. Esperava também que ele compreendesse o seu espírito livre, modesto e desejoso de ajudar aos outros e fazer o bem. Já Edward esperava da esposa um bibelô, alguém que aceitasse as suas ordens sem questionamentos e que o servisse com presteza e eficácia. Ele não queria uma companheira e sim uma secretária.

Rosamound esperava um homem rico, provedor, gentil e animado para as festas. Que tivesse em casa assuntos leves e engraçados, que sua casa fosse aberta às visitas e às recepções para as quais ela foi educada e ensinada a promover. Lydgate esperava ter em Rosamound uma companheira de vida, que o respeitasse e fizesse o que ele dissesse, além de se orgulhar de sua profissão. O maior conflito neste casamento é a diferença social dos dois, que os impede de compreender a profundidade dos sentimentos e das angústias do outro: Rosamound via como óbvio que o seu marido deveria manter a sua condição social e econômica. Não deveria esperar dela grandes conhecimentos intelectuais, teria mesmo a função de uma esposa vitoriana, sendo um bibelô a ser cuidado e apreciado. Já Lydgate que veio de outra província, onde o nome da família e a situação social dela não exercia tanta influência em suas ações, esperava casar-se com uma moça rica, que seria submissa a ele, mas que, por outro lado, tivesse por ele uma espécie de devoção. Ele não é um homem ruim, apenas uma pessoa muito idealista, sem uma prévia noção de realidade, que se mudou para a cidade errada com o objetivo de levar para lá mudanças muito radicais para os seus habitantes conservadores.

Por questões de autoafirmação e motivado por um desejo enorme de não se trair, ele apresenta uma grande dificuldade em ceder em algumas questões a fim de conseguir apoio para os seus projetos ousados. Além do mais, para pleitear reformas científicas, é preciso apoiar as mudanças de paradigmas como um todo, inclusive a Reforma que estava sendo discutida na época. Não é uma atitude coerente desejar que haja uma mudança na medicina, mas continuar esperando das mulheres uma submissão atroz e manter-se conservador em outras questões, como gênero, raça e classe. A quebra de paradigmas deve ser geral e quem tem dificuldades em ceder, dificilmente terá êxito em seus propósitos, por melhores que sejam.

Middlemarch é um povoado tacanho, idiossincrático, que deseja manter os seus costumes conservadores. Mas por outro lado, é composto por habitantes sempre prontos a julgar e condenar as pessoas sem dar-lhes o benefício da dúvida. As fofocas e as conjecturas sobre a vida alheia constituem a maior atração da cidade. Ninguém escapa das más línguas do povo de Middlemarch e esse comportamento que hoje chamamos de cancelamento provoca problemas muito graves para algumas personagens que não seguem as regras, que apresentam um comportamento disruptivo como Dorothea, Will Ladslaw e Lydgate.

A sina desses protagonistas e dos coadjuvantes que fazem parte desse microcosmo criado por Eliot nos ensina muito sobre os sentimentos humanos e suas fraquezas. No final dessa edição a tradutora Maria Aparecida Melo Fontes diz que:

Eu sempre disse a mim mesma que ninguém erra porque quer, ninguém toma uma decisão errada de propósito, a gente sempre erra tentando acertar. (…). Aos poucos, fui notando que as pessoas mais simples, que aceitavam a vida como ela era, tinham mais facilidade de serem felizes, simplesmente porque se contentavam com o que a vida tinha a lhes oferecer. (…). Os personagens de Middlemarch (todos eles) têm muita dignidade, e em nome dela arriscaram sua felicidade. Não deixa de ser um jeito provinciano de ser” (FONTES, 2022, pág. 859)

As palavras de Maria Aparecida sintetizam bem a essência de Middlemarch (Pedra Azul, 2022) que, somadas ao trecho que abre essa resenha, mostram que no final das contas, Dorothea agiu de acordo com o seu coração e a sua essência, saindo de seu eu interior, deixando de pensar em sua própria dor e fazendo algo pela dor alheia. O seu simples ato, que o leitor só conhecerá nos últimos capítulos desse livraço, modificou e transformou a vida de várias pessoas para melhor. Em compensação, sendo aqui literatura ou presença divina, compensação, a conta chegando, chame do que quiser, ela também foi beneficiada por suas boas ações, tendo um final feliz e pleno. Isso nos leva à reflexão de que, às vezes, parar de pensar em nós mesmos e tentar fazer o bem aos outros, quando em nosso alcance, pode ser a melhor escolha. A simplicidade, a honestidade e a humildade sempre terão prevalência no coração daqueles que acreditam em um mundo melhor e para mim, essas são as principais essências de Middlemarch, mais uma das minhas melhores leituras do ano e daquelas que transformam as pessoas.

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