vida de leitor

Narradores infantis abordando temas sérios e fundamentais

Em homenagem ao dia das crianças, comemorado no dia 12 de outubro, e motivada pela leitura do espetacular Os abismos da Pilar Quintana, resolvi fazer uma seleção de cinco livros narrados por crianças, mas que abordam temas sérios, atuais e fundamentais para debate. Um bom escritor, para usar um narrador criança, precisa ter uma abordagem técnica de escrita muito específica para que o texto tenha verossimilhança e para que o leitor consiga inferir os temas que ficam muitas vezes subentendidos na voz infantil. A criança geralmente conta, mas não conta as coisas. Ela vê e não elabora; ela comenta de forma inocente e cabe ao leitor perceber nas entrelinhas o que está acontecendo com as pessoas apresentadas no texto.

Não é uma técnica fácil e justamente por isso é complicado encontrar livros narrados por crianças que sejam críveis e que passem por essa peneira de qualidade estética, reunindo a boa escrita, a fluidez do texto e a complexidade do tema escolhido pelo autor. Muitos leitores não gostam dessa abordagem porque encontrar o equilíbrio entre a seriedade do tema e a voz infantil é muito difícil e assim a obra pode ficar enfadonha ou fazer uma abordagem rasa sobre temas muito importantes e que geram discussões interessantes. Nesta seleção, teremos narradores que começam a contar a história durante a infância e vão crescendo ao longo da trama; narradores que permanecem crianças por abordarem um recorte de suas vidas; narradores que contam em retrospecto algo passado em sua infância, mantendo a voz infantil e narradores jovens, capazes de elaborar melhor a sua narrativa. Os temas são variados: racismo, fanatismo religioso, meio ambiente, desigualdades sociais, escravidão, suicídio e depressão. Vamos aos escolhidos!

  • O olho mais azul – Toni Morrison (Cia das Letras, 2017): Nesta história triste e impactante, acompanhamos a trajetória de Pecola Breedlove, uma menina negra que sofre com o preconceito e com a dureza da vida. O seu maior sonho é ter olhos azuis como o das mulheres brancas, acreditando que isso lhe traria paz. A autora aborda a questão do racismo a partir dos padrões estéticos criados pela sociedade de consumo nos anos 1950, com a chegada da TV aos lares das famílias nos Estados Unidos. A partir daí é estabelecido um padrão de beleza e quem não se encaixa nele, sofre com a discriminação e com a exclusão social. Para uma criança negra, essas regras se tornam acachapantes e, com a magnitude do texto de Morrison, o leitor sofre junto com Pecola, se emociona com ela ao mesmo tempo em que compreende que os olhos azuis não resolverão o seu problema. Livro maravilhoso, que merece ser lido e relido muitas vezes para nos ajudar a compreender melhor o outro.
  • Hibisco Roxo – Chimamanda Ngozi Adichie (Cia das Letras, 2011): A história dessa família é contada pela jovem Kambili, que sofre maus-tratos constantes do pai por ele ser um fanático religioso. A trama se passa na Nigéria e mostra as consequências do colonialismo no país, com foco no apagamento da cultura local e na condição de subserviência do povo ao colonizador. Eugene é um industrial famoso e muito devoto à religião católica, que ele pratica em sua forma primitiva, rejeitando o seu pai por ser considerado “pagão” e destruindo aos poucos a estabilidade de sua família. Qualquer erro banal dos filhos ou da esposa são castigados com surras terríveis, jejuns e outras formas de dominação e de penitência que não são usuais no século XXI. Na voz de Kambili, o leitor percebe essa violência extrema, que é contada de forma literal e simples, mas que suscita muitas discussões sobre o tema, além do contexto histórico e social que permeia a trama. Livro espetacular que também deve ser lido para compreensão das consequências do extremismo religioso.
  • Menino de engenho – José Lins do Rego (Global, 2020): Primeiro livro do Ciclo da Cana-de-açúcar, onde conhecemos Carlinhos, que nos conta a sua história a partir do momento em que vai viver no engenho de seu avô. Lá ele presencia muitas coisas, tais como o poderio do Sr. José Paulino, o funcionamento do engenho, a subserviência dos negros que viviam na propriedade do seu avô, as diferenças entre ele e os “moleques”, cenas de violência sexual, de punição por chibatadas, consequências da escravidão. Carlinhos neste livro não tem maturidade para elaborar os acontecimentos, mas ainda assim, ele sente um certo incômodo e uma incompreensão de como as coisas funcionam por ali e principalmente, o porquê de elas serem como são. Livro muito interessante que nos mostra um pouco da história do Brasil e do conceito triste de “Casa grande e senzala”.
  • Os abismos – Pilar Quintana (Intrínseca, 2022): Neste livro conhecemos a Cláudia, uma criança que vai nos contar um recorte da história de sua família. A partir da narrativa da protagonista, o leitor percebe que sua mãe está passando por um momento de depressão e que sente uma forte atração pelo suicídio. A luta de Cláudia gira em torno de conscientizar seu pai de que a mãe precisa de ajuda e que ela não está bem. Como criança, apesar de sentir que algo está errado e ser obrigada a aprender sobre determinados assuntos cruéis, ela não tem como impedir a mãe de se matar aos poucos ou fazer com que ela saia da cama. A autora tem uma qualidade de escrita que deixa muitos não-ditos para que o leitor complete as inferências necessárias daquilo que uma criança nos conta, mas não conta. E os paralelos que ela faz com os abismos internos do ser humano provocados pela solidão e com os penhascos colombianos são incríveis. Livro magnífico, que recomendo muito para vocês.
  • A parábola do semeador – Octavia E. Buttler (Morro Branco, 2018): Nesta distopia norte-americana, conhecemos Lauren, uma adolescente que está passando por um momento muito difícil em sua comunidade, pois o meio-ambiente foi destruído pela ganância humana e agora não existe mais condições de vida sustentável no país. Por causa disso, sua família e outras pessoas da comunidade vivem isolados em um bairro da Califórnia, cercado por muros, vigiados 24 horas por dia. Lauren tem alguns talentos e uma compreensão aguçada da vida, apesar de ser uma criança. Na verdade, sua infância lhe foi roubada pelo estilo de vida que precisam levar para sobreviver ao caos. O leitor acompanha a história através do diário de Lauren e assim, o tempo vai passando e seu modo de contar a história acompanha o seu crescimento e desenvolvimento intelectual. Livro impactante, que trata sobre meio-ambiente, racismo, relacionamentos inter-raciais e sobrevivência em situações extremas. Recomendadíssimo!

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