crítica

O amante – Marguerite Duras

Escrito em 1984, em sua maturidade, O amante (Tusquets, 2020) é considerada a obra mais autobiográfica da escritora francesa Marguerite Duras. Narrado de forma fragmentada em primeira pessoa, o romance traz características do estilo de Duras: nouveau roman (movimento literário dos anos 1950, que rompe com a forma clássica do romance – início, meio e fim e personagens definidos, criando uma nova maneira de se contar histórias, através do fluxo de consciência e da fragmentação temporal).

A história é apresentada ao leitor através de pequenos blocos que vão e vêm no tempo, ora no passado, ora no presente e ainda ora em um passado intermediário localizado na Segunda Guerra Mundial, exigindo do leitor atenção e perspicácia para juntar os fragmentos e montar uma narrativa coesa. Aliás, coesão é algo que não vamos encontrar nessa obra, pois, as memórias da narradora são ambíguas, deixando uma dúvida no leitor sobre a sua veracidade e confiabilidade. Para a própria escritora, essa ambivalência do romance é fundamental, pois em sua opinião “uma imagem criada pelas palavras de um grande escritor carrega com ela mil sentidos”.

O enredo desse romance é uma passagem da adolescência da protagonista de quando ela tinha quinze anos e se apaixonou por um chinês da Indochina (atual Vietnã) de 27 anos. Foi um amor correspondido, porém, cheio de empecilhos: a diferença de idade constituía um impedimento imediato à essa relação, mas, ainda se uniam e esse fator as diferenças raciais, sociais, culturais e econômicas. O amante era milionário, enquanto a protagonista era miserável. Mas, ela era branca e ele não. O relacionamento não era aceito por nenhuma das famílias, que viam a protagonista como uma prostituta barata e suja.

Entretanto, por um tempo, eles mantiveram essa relação pautada pela dor, pelo sofrimento, pelas lágrimas e por uma tentativa de fuga da garota, que não se sentia segura e amada no seio de sua família. As relações familiares de ambos são bastante exploradas pela autora, em um misto de determinismo/ naturalismo entremeado com a loucura, o ódio, o abandono e as tragédias provocadas pela vida. As condições de trabalho e de sustento da família da garota são degradantes. Apesar de serem pouco elaboradas, a autora deixa muito claro que o abandono do estado provocou a destruição de sua família: a loucura da mãe, a morte dos irmãos e a sua prostituição.

Sim, aos 70 anos de idade, olhando para trás, o romance de uma garota de 15 anos com um homem rico de 27 é um tipo de prostituição. A autora não problematiza essa questão da pedofilia, apesar de deixar claro que o amante sabia que poderia ser preso por se relacionar com uma moça menor de idade, mas ainda assim, ela deixa relativamente claro ao leitor que tinha consciência dos seus atos, tirava proveito da situação na medida do possível e muitas vezes, via esse homem como um pai. Afinal, ele a levava para jantar, a buscava no Liceu, dava carona até o pensionato onde morava, lhe dava banho e chorava com ela quando se sentia deprimida e solitária.

A solidão dos personagens dessa história é um capítulo à parte. Todos eram infelizes, tristes, sozinhos. O próprio amante era um homem muito infeliz, muito rico e teria de seguir as ordens do pai se quisesse continuar desfrutando os benefícios proporcionados por seu dinheiro. Ele já tinha um compromisso com uma moça chinesa, de sua classe social e não poderia desistir desse casamento, apesar de ter tentado. Por outro lado, a família da protagonista passava muitas necessidades financeiras: o pai morreu cedo, deixando a família em uma situação difícil. A mãe resolveu comprar um terreno para cultivar arroz, porém, o terreno estava sujeito a inundações e a matriarca só descobriu isso quando vieram as chuvas. Dessa forma, o terreno era totalmente improdutivo e ela não teve o seu dinheiro de volta.

O irmão mais velho da protagonista tinha problemas com drogas, além de ser violento e agressivo. Ainda assim, a mãe lhe devotava um amor imenso, relegando os dois filhos mais jovens. Esse afastamento da mãe e suas críticas contundentes e constantes em relação à garota, fizeram com que ela buscasse esse afeto e a compreensão que não tinha em casa em outros lugares, apaixonando-se assim por um homem muito mais velho.

Não podemos confundir essas narrativas do romance com a vida da escritora. O enredo se baseia em suas experiências e vivências pessoais, entretanto, existe uma ficção por trás de toda essa história contida em O amante. A autora criou personagens verossímeis, ambivalentes, humanos e multifacetados. Não há um herói ou uma heroína nessa história, mas pessoas da vida real, contando suas memórias de forma fragmentada, assim como são as memórias de todas as pessoas reais. Por isso, a estética do romance funciona tão bem, trazendo as características de uma contação de histórias, cheia de polifonia e de incongruências, fazendo com que o leitor duvide o tempo todo dessa narradora tão pouco confiável.

O amante é um livro triste, cheio de referências à agua e à maternidade. É também um romance que conta uma história de transição, de descoberta, de passagem da infância para a vida adulta de uma forma dura e cruel, ao passo em que há também uma certa beleza, assim como em toda a narrativa. A autora faz sempre esse contraponto em todos os pequenos fragmentos do livro: a beleza em meio à desgraça. A vida em meio à morte, a dor que caminha junto ao prazer e a miséria no meio da fartura e da riqueza. O amante é um livro para releituras, que permite muitas interpretações e reflexões sobre a infelicidade e a solidão.

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