crítica

O apanhador no campo de centeio – J. D. Salinger

Adolescência! Fase complicada da vida. Cheia de ambiguidades, dúvidas, medos e conflitos. Se é jovem demais para ser adulto, mas também velho demais para ser criança. As mudanças no corpo vêm em avalanches e as pressões sociais apenas começam. Seria justo dizer que as pessoas nessa fase da vida são chatas? Sim, elas são. E Salinger consegue captar esse sentimento e colocá-lo magistralmente no papel.

Holden tem 17 anos e foi expulso de seu colégio. Todas os adultos à sua volta não compreendem sua atitude de revolta e raiva e principalmente, qual o problema do garoto, já que ele é uma pessoa privilegiada, estuda em um dos melhores colégios da cidade, seus pais são ricos, vive em uma casa maravilhosa e certamente, uma pessoa com todos esses privilégios não deveria ser tão raivosa.

Ora, será mesmo? Quando iniciei a leitura desse livro, já tinha visto muitas pessoas o criticando por causa do mal humor do protagonista, de sua paralisia e chatice. Mas, adoro personagens complexos, imperfeitos e cheios de camadas para descobrirmos. E assim é o Holden, um menino que perdeu o irmão a quem amava para um câncer, vive em uma casa onde os pais estão destruídos pela perda do filho. Se preocupam com os outros, mas não esquecem aquele que foi. Está atravessando a fase mais difícil e crítica da vida, conhecendo o mundo e perdendo a inocência. Além de tudo isso, o mundo acabou de sair de uma guerra.

Holden vai dar voz a todas as minorias. E sua crítica é muitas vezes vazia e desconexa, conflituosa, imperfeita. Ele enxerga as mazelas do mundo e não quer fazer parte daquilo. Ele não quer pertencer àquele lugar, onde as falsidades e hipocrisias são fundamentais para se dar bem, onde garotos de sua idade não conhecem o termo consentimento, não se importam com os outros e a vida adulta parece totalmente sem sentido e mentirosa.

Alguns críticos argumentam que ele somente condena as falhas, mas que não pensa e fazer nada para mudar a situação, que não quer ser um agente, apenas um chato. Eu discordo totalmente dessa interpretação porque é muito fácil quando estamos com mais de 40 anos apontar soluções para a vida dos jovens. Nós já temos uma bagagem muito grande para ver o mundo com os olhos de uma criança e compreender a ebulição de sentimentos pela qual eles estão passando. Na verdade, lendo esse livro pela primeira vez, com 41 anos, me lembrei de mim mesma quando adolescente e de todos os meus repúdios à vida mentirosa dos adultos, das minhas grandes ambições de mudar o mundo e de ser diferente de todos os adultos que eu conhecia. Me lembrei também de outros adolescentes com os quais eu convivi e via neles um tanto do Holden. Por isso, considero que Salinger foi imensamente feliz em criar esse personagem que deu voz a várias gerações de adolescentes.

Outra questão muito forte no livro e que deve ser elaborada são as disciplinas que estudamos na escola entre os anos finais do Fundamental e em todo o Ensino Médio. Essas matérias nos levam à formação do pensamento crítico, da análise, do discernimento. Para chegar nesse lugar do conhecimento, precisamos confrontar o mundo real, enxergar a vida lá fora de forma menos ingênua e isso é muito mais difícil do que pensamos. Mais uma vez, me lembro do coordenador da escola da minha filha me dizendo que nós não nascemos com 40 anos e por isso, na adolescência e juventude, nossa capacidade e elaboração das coisas da vida são limitadas e só amadurecerá com o tempo.

Por isso, considero que existe uma enorme verossimilhança nesse texto, tanto interna quanto externa. Compreendi melhor a sua importância na história da literatura e o motivo dele figurar em todas as listas de indicações de clássicos ou de leituras mesmo. Essa é uma obra atemporal e muitos dos questionamentos de Holden serviram de mote para a luta pelos direitos civis americanos na década seguinte à publicação do romance. Para que fique claro, não foi o livro um incentivo às manifestações populares, mas o sentimento expresso pelo autor na voz de Holden era geral. As pessoas estavam incomodadas com a sociedade da época e pouco depois tentaram mudar algumas coisas.

Infelizmente, muito do que ele questiona em sua obra continua acontecendo. Nós ainda somos julgados pelas nossas malas, pela cor da nossa pele, pelo bairro onde moramos ou pelo colégio onde estudamos. Diversas Phoebes perderão sua inocência de forma imprópria, terão sua infância roubada e precisarão enfrentar a vida adulta. Existem muitas chaves de leitura para esse romance e aqui explorei algumas delas. Poderia ficar escrevendo artigos e mais artigos sobre esse livro de tão grandiosa é a obra de Salinger. Mas, creio que o principal está aqui, para aguçar no leitor a vontade de ler o livro.

O título da obra é uma bela metáfora para os inconformados, para aqueles que gostariam de viver em um mundo melhor e mais justo, para os quixotescos. O único desejo de Holden era impedir que as crianças percam a sua inocência, que elas não tenham que enfrentar o mundo lá fora. Esse desejo é manifestado através de suas preocupações com a irmã mais jovem, Phoebe. Em um certo momento, vagando pelas ruas de Nova York, ele vê uma criança andando na calçada e cantando uma música sobre um campo de centeio. Ele a entende errado e cria essa metáfora sobre apanhar as crianças que poderiam cair no meio dos fardos de grãos e protege-las do mundo, da violência, da invasão, do sexo sem amor. É bonito e me lembrei que um dia eu também desejei ser uma apanhadora no campo de centeio.

Finalmente, é importante lembrarmos que sem esses rompantes da juventude, esse desejo de ruptura, essa frustração adolescente e a inconformidade com a vida, não viveríamos as mudanças. Nada seria transformado e o mundo continuaria o mesmo. As grandes revoluções nasceram da revolta, da sensação de não pertencimento, do vazio de sentido. Quando não aceitamos participar de um mundo cruel, buscamos de alguma forma, mesmo que quixotesca, transformar esse lugar em algo melhor. Tudo começa com um inconformismo, passa pela revolta, pela negação e depois, chega-se à revolução.

Quero ainda destacar o trabalho primoroso da Editora Todavia na reedição da obra completa do Salinger. A tradução do Caetano Galindo está maravilhosa e o conhecimento dele em relação ao pensamento do escritor fez toda a diferença no texto. Mantendo a originalidade da obra, a tradução está totalmente acessível ao leitor moderno, trazendo as expressões adolescentes que se encaixam na época em que foram escritas, mas compreensíveis à contemporaneidade. A oralidade proposta por Salinger está presente o tempo todo e foi um trabalho excepcional.

Parafraseando Jouve, ficam aqui o meu respeito e o meu amor por esse livro. Respeito por ser um clássico que marcou uma época, bem escrito, abordando temas universais e atemporais; amor por ter me despertado tantas emoções, por ter me transportado para outro momento da minha vida e pela identificação que vivenciei com a obra. Um brinde ao Salinger! Um brinde ao Holden! À Todavia e ao Galindo por esse trabalho lindo que está em nossas estantes! E um imenso desejo de que não sejamos fajutos jamais!

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