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O contraponto entre Proust e a vida no século XXI

Desacelerar! Eis aqui a palavra chave para a entrada da década de 20 do século XXI. Há um ano fomos surpreendidos pela maior pandemia de todos os tempos, a famosa COVID-19. Inicialmente, como boas Pollyannas, procuramos ver o copo meio cheio e o lado positivo de tudo isso – teremos mais tempo para reflexões, para fazer o que gostamos e nos dedicarmos à nós e às nossas famílias.

Entretanto, esse “lado bom” das coisas durou muito pouco. Em algumas semanas já não aguentávamos mais ficar em casa, privados de todas as nossas atividades corriqueiras e começamos a sentir falta até mesmo das chatices do dia a dia e das coisas que dizemos sempre odiar. Pelo visto só damos valor ao que temos quando perdemos e olhe lá!

Por outro lado, em alguns momentos dessa loucura sem precedentes, começamos a perceber situações e aspectos de nossas vidas que não estávamos acostumados a observar. Ouvi relatos de pais dizendo que “conheceram seus filhos na pandemia”. Isso é um sinal de alerta para todos nós. Afinal, conhecemos as pessoas que vivem conosco? Estamos realmente presentes ou só fisicamente?

A experiência de ler Proust durante o isolamento provavelmente é única. E, nos convida à reflexão e à contemplação do tempo perdido. Mas o que podemos chamar de “tempo perdido”? Existem muitas variações sobre esse tema, então, concentremo-nos em uma delas. O tempo perdido é aquele que, futuramente, se transformará em nossas memórias mais queridas e preciosas, que alguns podem chamar grosseiramente de saudosismo ou melancolia.

Proust tem o dom de ativar memórias afetivas através de uma tangerina, uma Madeleine, uma rua de Paris ou um cômodo velho de uma casa antiga. E nós não somos diferentes dele. O que nos difere do Proust contemplativo é que nossas memórias serão ativadas apenas quando pararmos obrigatoriamente ou por uma perda muito dolorosa. Ao passo que o escritor francês fazia isso diariamente e transmite toda essa memória afetiva através de seus escritos, digressões e descrições minuciosas de sentimentos e lugares.

O próprio escritor diz no final de sua obra que “cada pessoa é leitor de si mesmo”, observação que fica muito clara nos sete livros que compõem “Em busca do tempo perdido”. A cada pausa em suas digressões, o enredo nos leva a pensar sobre o amor em suas várias fases, o ciúme que consome um indivíduo, a morte, que está sempre presente na vida de todas as pessoas e a memória, que é a grande responsável por crermos na vida e na nossa existência. Porém, cada leitor vai interpretar o texto através de suas vivências e de sua bagagem cultural e intelectual.

Alguns leitores de Proust se prendem muito às referências artísticas e musicais que ele apresenta nos livros. Mas, o que na verdade nos toca em sua obra é a similaridade com o cotidiano de pessoas comuns e os sentimentos universais. As experiências relatadas minuciosamente por ele são muito comuns e, em vários pontos da obra, acabamos nos lembrando de alguma vivência idêntica ou pelo menos de sentirmos o que ele relata em algum momento de nossa vida.

Apesar de termos uma preciosidade literária em mãos, é difícil encontrar pessoas que se dispõem a ler os sete livros e mergulhar em uma leitura densa, lenta e que exige muita atenção do leitor. Principalmente considerando a vida que levamos atualmente. Comecei a reparar que nos últimos anos, é um lugar comum ver as pessoas competindo para saber quem é mais ocupado ou o tempo de quem é mais precioso. Ou então, observarmos como nossas agendas são cheias de compromissos, que não paramos nem para comer, estamos sempre lendo um e-mail de trabalho ou respondendo alguma mensagem da empresa nos momentos em que deveríamos estar relaxados.

A vida cotidiana do século XXI, principalmente depois do advento dos smartphones, destruiu todo e qualquer vínculo afetivo que as pessoas poderiam cultivar em casa, com os amigos ou mesmo com a natureza. É fácil estar presente fisicamente em casa ou em um evento familiar. Mas nossas relações são em sua maioria superficiais e vazias. Não conseguimos conversar com nossos familiares ou amigos sem a interferência de um celular ou outro aparelho eletrônico como ponte dessa interação. E até que ponto isso é bom? Ou ruim?

O fato é que nossas relações se modificaram muito. E a nossa forma de viver também. Quando somos abordados por uma pergunta simples: “se você ganhasse mais uma hora em seu dia, o que faria com ela? ”. 90% das pessoas respondem que trabalhariam mais. Existe aqui mais um sinal de alerta. Porque acreditamos sempre que o nosso trabalho nos representa e nos completa? E os outros setores da nossa vida? Onde ficam? Outra característica da nossa geração é ocupar todo o nosso tempo livre com atividades produtivas. Pode ser uma atividade física exaustiva, um curso extra para aprimorar nosso trabalho, uma dieta maluca que nos afastará da nossa família ou mesmo um clube de leitura que nos impedirá de ler o que realmente queremos e gostamos.

O mundo moderno é baseado em trabalho por prazer e não como uma fonte de renda, em produtividade excessiva, valorização de uma beleza inalcançável e uma juventude eterna e em projetos de vida que nos condicionam a estar sempre correndo atrás do nada para chegarmos em lugar nenhum. Observando a nossa sociedade como um outsider, tudo isso é ridículo e preocupante. Porém, é praticamente impossível regredir e parar.

O preço desse estilo de vida é o tempo perdido. O maior exemplo dessa metáfora são aqueles desenhos inelegíveis que nossos filhos nos entregam todos os dias ao longo de sua primeira infância. Nós, pais muitíssimo ocupados, olhamos vagamente e dizemos: “bonito, filho! Parabéns! Eu adorei! ”. Entretanto, nem olhamos sequer para aquilo, colocamos esse desenho em uma gaveta e esquecemos. Depois de alguns anos, uma pandemia, um câncer, uma morte ou qualquer coisa que nos faça parar, abrimos a gaveta. Então, olhamos aquele desenho descabido e, para nossa surpresa, em um cantinho está escrito em garranchos: “mamãe, eu te amo”. Oh! Esse é o tempo perdido de Proust! Você já perdeu esse momento. Ele não volta e você não o viveu.

Assim, seguimos nosso caminho, guardando memórias queridas de nossos pais, avós, casas velhas, cidades que sempre dizemos que um dia voltaremos até lá, mas nunca temos tempo para isso e aí, elas se modificam totalmente, porque como já dizia o finado Cazuza, “o tempo não para”. Dessa forma, essas memórias, esses lugares, só existem para nós, dentro de nossas mentes e, sempre nos arrependemos de não termos aproveitado a vida como deveríamos, de não termos amado mais, vivido mais, trabalhado menos… É bom escutar agora a música Epitáfio dos Titãs e refletir mais sobre o tempo perdido.

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