Certamente a maioria de nós já ouviu falar sobre o sistema de castas que vigorou na Índia por muitos anos e principalmente sobre a sua lógica complexa para nós ocidentais. Esse é um assunto extremamente difícil de abordar porque não sou indiana e não posso criticar ou opinar sobre algo que não me compete. Porém, sempre acreditei que a Literatura, principalmente aquela escrita por pessoas do país em questão é uma porta de entrada para ampliar os nossos conhecimentos e pelo menos tentar compreender os outros povos e sentir por eles um pouco de simpatia ou mesmo de empatia.
Nessa obra maravilhosa da Arundathi Roy, conhecemos os gêmeos Estha e Rahel frutos de um casamento nada convencional na Índia. Para compreendermos melhor a situação, é importante sabermos que lá, os casamentos são feitos dentro das castas ou entre umas e outras quando este for bom para as duas famílias. É comum que os pais da noiva paguem ao noivo um dote para que o casamento aconteça. Os sentimentos dos envolvidos não são considerados, é tudo um negócio. Dentro da cultura hindu, pode funcionar bem. Afinal as crianças são educadas para construírem um relacionamento durável, sólido, baseado em valores morais que fazem sentido para eles. Mas, para quem não faz parte dessa cultura, pode ser incompreensível.
É importante lembrarmos também que a Índia foi colônia inglesa e dessa forma, houve uma imposição cultural no país e uma tentativa de apagamento da cultura e da religião deles, fazendo com que houvesse uma miscigenação cultural e que várias crenças convivessem juntas como acontece na maioria dos países colonizados. Tudo isso aparece bem contextualizado no livro O deus das pequenas coisas (Cia das Letras, 2008) através de seus personagens complexos que protagonizam diálogos memoráveis e muito críticos.
Voltando aos gêmeos, eles são filhos de Amu, uma mulher hindu com um homem inglês. A família dela não tinha condições de pagar o dote para um casamento tradicional. Assim, ela sai de sua cidade no interior e vai para Délhi estudar e trabalhar para garantir seu futuro. Lá conhece um homem inglês, que não se importa com dotes ou tradições hindus e os dois se casam. Entretanto, o casamento não dura muito por causa da violência doméstica e do alcoolismo. Dessa forma, Amu volta para casa com os dois filhos e tem de enfrentar uma longa jornada pautada pelo preconceito, pela dor e pela tragédia.
A autora vai abordar diversos assuntos que são fundamentais para a construção da história e dos personagens. Se eu começar a citar tudo o que ela aborda aqui vai parecer exagerado e até piegas. Porém, não é. A narrativa de Roy é bastante fragmentada. A história começa quando os gêmeos que foram separados na infância se reencontram para o funeral da mãe, já na idade adulta. Logo no primeiro capítulo ficamos sabendo que Estha não fala há muitos anos e que teve uma relação complicada com o pai, com quem foi morar depois dos acontecimentos que serão narrados no livro. E Rahel não é uma mulher bem-sucedida. Ao contrário, ela parece bem perdida sem o apoio da família e a presença do irmão em sua vida.
Roy vai nos dando pistas sobre o que vai acontecer na narrativa e os fatos vão aparecendo através de flashbacks dos personagens. A tragédia é iminente desde o primeiro parágrafo e ao mesmo tempo em que a autora utiliza uma linguagem bastante poética para contar tudo isso, ela não poupa o leitor dos acontecimentos terríveis pelos quais os personagens vão passar. É complicado falar sobre tantos temas sem dar spolilers, mas dois personagens serão fundamentais para o desfecho desse romance: Sophie Mol e Velutha.
Sophie Mol é a única prima dos gêmeos e também é filha de uma mulher inglesa com um homem hindu, irmão de Amu. É interessante aqui como as relações são formadas e apresentadas pela autora através da avó das crianças, mãe de Amu e Chako: ela supervaloriza os companheiros dos filhos, ignorando todas as suas falhas como a violência, o alcoolismo e o abandono da mãe de Sophie Mol a Chako, quando este não conseguiu prosperar em Londres e teve de retornar à Índia. Para Mammachi, os ingleses eram sempre superiores, melhores em tudo e dessa forma, a neta Sophie Mol era sua favorita, mesmo sem conhece-la.
O relacionamento entre Sophie Mol e a família indiana é pautado por essa diferença cultural e econômica, mas principalmente por essa questão do amor, do quanto ser amado e como fazer para ser amado. Esse é um tema que vai permear a narrativa do início ao fim, incluindo mitos, culpa, pecado e o amor como mérito e não um sentimento universal que apenas se sente, sem se exigir nada em troca. O fato de colocarem o amor como um “produto” ou uma moeda de troca, leva as crianças à tentativa de dar uma lição nos adultos que não vai terminar bem.
Velutha é o representante na história dos chamados dalits ou intocáveis, que no hinduísmo, são as pessoas que foram expulsas de suas castas, pecadores, pessoas ruins. Para ser um dalit, baste ser filho de um, ou seja, a condição de intocável vai passando por várias gerações. Esse personagem é bastante peculiar. Ele tem inúmeras habilidades que permitiriam que ele fosse uma pessoa de sucesso e muito rico, porém, sendo um dalit, ele só pode realizar trabalhos braçais. Os talentos de Velutha são outra forma de crítica ao sistema de castas que não é muito justo sob o ponto de vista meritocrático. Apesar de ter condições de ascender socialmente, isso nunca vai acontecer.
O caso de Velutha é tão importante, que até mesmo Mammachi, que é extremamente preconceituosa e defensora dos costumes hindus, abre algumas exceções para ele, permitindo sua entrada na fábrica de doces e picles da família e confiando nele tarefas que não seriam permitidas aos dalits. O que gera um grande sentimento de inveja em seus colegas, principalmente naqueles que não são dalits, mas que não possuem as mesmas habilidades que Velutha. O personagem é descrito também como muito bonito e atraente, o que leva a outra questão que a autora coloca no texto: o preconceito racial junto ao preconceito de castas. Na fala de alguns personagens, é mencionado o cheiro dos dalits como diferente, mais intenso e até mesmo insuportável. Essa é uma referência cruel, mas que mostra muito do que o ser humano é capaz.
Através de Velutha, a autora vai tratar sobre corrupção, sistema carcerário na Índia, acusações criminais sem fundamento, apenas pela cor da pele ou condição social. O ódio gratuito à Velutha faz um paradoxo ao amor incondicional ofertado à Sophie Mol, uma personagem sempre presente, mas que ninguém conhece direito, nem mesmo o pai. Enquanto Velutha cresceu na mesma cidade que os personagens, todos o conhecem bem, sabem sobre os seus sentimentos e suas qualidades, mas, ele “não é digno de ser amado” por questões que vão além dos sentimentos.
Esse livro é pequeno em tamanho, despretensioso, mas é enorme em conteúdo e nos faz pensar por dias após a sua leitura. Considero que a abordagem dos temas e a proposta de narrativa se complementam e se fecham em personagens muito bem construídos, em diálogos críticos e que apresentam ao leitor um panorama de uma Índia contemporânea, mas que ainda carrega o peso de sua cultura e da colonização inglesa em seu cotidiano. É um livro que recomendo para todos os leitores que gostam de conhecer novas culturas e de refletir sobre a vida. O título do livro é muito significativo e faz referência a um personagem específico que tem tudo a ver com essa classificação. Mais um favorito da lista da Ferrante.