Recentemente, assisti a um filme na Netflix chamado Eu Daniel Blake. Já tinha visto algumas pessoas falando bem sobre ele e resolvi assistir, sem muitas expectativas. O que encontrei nessa obra foi um grande questionamento sobre o sistema burocrata, a despersonalização do ser humano perante o sistema e uma falta enorme de empatia, simpatia e compaixão.
Na mesma semana em que assisti ao filme, a porteira do meu prédio me contou que foi assaltada no dia primeiro de janeiro, voltando do trabalho, debaixo de uma chuva torrencial, por um homem de bicicleta, próximo à sua casa, que levou tudo o que ela tinha. A história já é triste, mas ficou mais angustiante à medida em que ela foi atrás do serviço público na tentativa de reaver seus documentos. O que encontrou foi um total descaso e um desprezo profundo por sua situação.
No filme Eu Daniel Blake, acompanhamos a saga de um senhor viúvo, solitário, na faixa dos 70 anos, empregado de uma marcenaria, onde desempenha o seu trabalho com maestria, é querido pelos colegas e também pelo chefe. Sua vida está indo bem até que ele sofre um AVC e é proibido pelo médico de trabalhar por um tempo. Dessa forma, ele precisa solicitar um benefício, que seria semelhante ao nosso seguro desemprego para se manter nos próximos meses. Nós brasileiros, acostumados com a morosidade do nosso sistema burocrático, pensaríamos que na Inglaterra essa seria uma questão fácil, que Daniel Blake estaria amparado pelo governo e que ficaria bem. Mas, não é bem isso que acontece.
O sistema burocrático inglês se mostra bem parecido com o brasileiro: um conjunto de regras, que se anulam mutuamente e que só servem para atravancar o processo, impedindo esse senhor de receber o benefício. A cada etapa concluída para a finalização do processo, surgia uma nova etapa. Ele tinha que provar a todo instante que não podia trabalhar por ordens médicas, que precisava do dinheiro, que tinha direito ao benefício, etc. As pessoas que o atendiam no setor público eram sempre hostis, o viam como um fraudador, um preguiçoso, um agitador e nunca como um homem velho, que trabalhou durante a idade produtiva, pagou impostos e agora, por um motivo justo, estava precisando do governo.
O mesmo se repete por aqui, quando a porteira do prédio inicia a sua saga real em busca de ajuda pós assalto. Na delegacia, quando tenta fazer o boletim de ocorrência, o responsável deixa claro que será praticamente impossível encontrar o assaltante porque ela não tem informações precisas sobre ele. Oi??? Uma pessoa é assaltada debaixo de uma chuva forte, à noite, perde o pouco que tem, fica traumatizada, com medo e ainda assim precisa olhar bem para o bandido para lembrar dele quando a polícia for procura-lo? Tudo bem que o retrato falado é importante, mas a polícia ia realmente procurar esse indivíduo? Com tantos crimes mais hediondos acontecendo o tempo todo, eles teriam tempo para procurar um chamado “ladrão de galinhas”? Creio que não.
Mas, ela segue seu caminho tentando reaver seus documentos. Lembrando que, na bolsa roubada estavam todos os documentos, cartões de débito e crédito, dinheiro, celular e o famoso cartão de passe. Dessa forma, essa mulher estava dependendo de terceiros para se deslocar até o trabalho e ao posto de atendimento ao cidadão para tirar os documentos novos. Documentos estes que tiveram de ser pagos por ela, pois mesmo tendo sido roubada, o governo não emite segunda via de RG ou CPF gratuitamente. Como ela não tinha o dinheiro, foi instruída a assinar uma declaração de miséria para ser anistiada do pagamento.
Quando escutamos um relato assim e assistimos a documentários ou reportagens na TV mostrando esse descaso em relação às pessoas, não conseguimos mensurar a humilhação de uma pessoa ao passar por isso. E quando começamos a questionar a causa de todas essas situações, percebemos mais uma vez que está tudo errado. A falta de segurança pública no Brasil é um problema grave, que gera muitas adversidades nas nossas vidas. Tanto é que na minha cidade, devido ao grande número de assaltos aos ônibus, eles pararam de aceitar dinheiro como forma de pagamento. Então, para utilizar o transporte público, a pessoa precisa ter o cartão de passe ou pagar com cartão de débito ou crédito. Mas, quando se é roubado de tudo o que tem, é impossível pegar um ônibus várias vezes para tentar resolver assuntos burocráticos sem fim.
Mas afinal, o que é a burocracia e para que ela serve? Esse sistema foi criado com o objetivo de evitar fraudes e dificultar o uso de dinheiro público de forma errônea, a famosa corrupção. Ele consiste em uma série de processos, etapas de verificação e validação de autenticidade das solicitações, que demandam um grande número de trabalhadores, muita papelada (hoje arquivos digitais) e uma tolerância infinita. Como é um processo metódico e moroso, ele acaba caindo em repetições, muitas vezes invalidando as etapas anteriores e colocando o beneficiário em um looping sem fim.
No filme, após passar por vários dessabores, Daniel Blake se vê sem emprego e sem dinheiro para viver. Então, como na maioria dos casos, ele começa a se desfazer dos seus pertences pessoais, primeiro os menos importantes e depois, aqueles que trazem uma memória afetiva e que é doloroso para ele ter que se desfazer desses objetos. Dessa forma, ele se transforma em um homem solitário e depressivo. É isso que a burocracia e principalmente o descaso e a desumanização do sistema fazem com uma pessoa.
Uma das principais características do sistema burocrata é a despersonalização. Quando uma pessoa passa a ser apenas um número, ela não tem cara, não tem nome e portanto, não tem sentimentos também. Assim é mais fácil não se importar e mecanizar os processos, falar com as pessoas de forma robotizada e negligenciar toda a individualidade de cada caso em especial. Se existe a burocracia e se ela foi criada para impedir fraudes, então partimos do pressuposto que todos nós somos culpados até que se prove o contrário. Então, teoricamente, estamos apenas esperando uma oportunidade para ganhar dinheiro de forma ilícita.
Alguns dirão que essa regra não se aplica a todos. Ora, é claro que não. Mas para um sistema onde você é apenas um número, ninguém ali te conhece e sabe quem é você. Então, você é culpado até que prove o oposto. Essas histórias da vida real e da arte nos fazem pensar em como agimos enquanto cidadãos. É claro que para as pessoas que trabalham no setor público, que lidam diariamente com a burocracia e com a população insatisfeita e revoltada é difícil ser gentil. Todos sabemos que o x da questão está nas políticas públicas ineficazes e não nas pessoas que as representam trabalhando ali. Porém, o que se faz urgente refletir é sobre como nós nos dirigimos a alguém para dar uma má notícia.
Nos anos de 1960, Gabriel Garcia Márquez já abordava esse assunto em seu segundo livro Ninguém escreve ao coronel. Um homem que virou chacota de uma cidade porque esperava uma carta do governo informando o início do pagamento de sua aposentadoria. No livro, fica subentendido que o coronel morreu esperando essa carta, depois de passar por todo o processo de degradação que Daniel Blake passou no filme. Ou seja, a questão vai muito além do que está escrito aqui. Existem as pessoas que não saem da sua zona de conforto para ajudar, os funcionários públicos e privados que se escondem atrás de seu cansaço, desânimo, descrença, má remuneração, excesso de trabalho para coisificar as pessoas e trata-las com desprezo e existem aqueles que são a regra e estragam tudo de bom que já foi feito até aqui pelos direitos civis.
E a porteira do prédio? Como termina a história dela? Não termina. Ela continua lutando. Lutando por sua dignidade, trabalhando honestamente para ter o pão de cada dia, cumprindo as regras para ter direito à sua aposentadoria daqui a alguns anos, carregando sua bolsa bem junto ao corpo enquanto o poder público não se importa com ela e suas aflições. Segue em frente, vivendo um dia de cada vez, vencendo os desafios que a vida lhe apresenta porque pobre nesse mundo não pode se dar ao luxo de contratar um terapeuta para ajudar. E quando encontra um que atende por cotas sociais, existe uma fila de outras pessoas em situação pior e talvez ela não tenha tempo livre para se deslocar de sua casa afastada do centro, pegar um ônibus e pagar com cartão para conversar por 50 minutos com alguém.
Se identificou com esse texto? Conhece alguém nessa situação? Esse é o Brasil de meu Deus. E para muda-lo, pensemos no que bel hooks sempre diz em seus ensaios e textos: enquanto apenas apontarmos os problemas e não fizermos nada para modifica-los, tudo continuará do mesmo jeito. O grande poder das artes em geral é nos comover e principalmente nos transformar e nos colocar em ação. Só assim vamos conseguir que daqui a um tempo nossos descendentes não sofram tanto com a burocracia e a falta de políticas públicas eficazes.