crítica

O enigma do quarto 622 – Joël Dicker

Até que ponto ser privilegiado é bom? Será que nascer destinado a ocupar a presidência de um banco por hereditariedade traz algum tipo de felicidade para alguém? Neste caso, onde ficam os nossos desejos e liberdades de sermos quem quisermos e escolhermos o nosso destino? Não há muitas opções para quem é predestinado a viver dentro de uma bolha, sem a possibilidade de sair e ter uma vida comum, enfrentar adversidades, ter de lutar para conquistar seu espaço no mercado de trabalho e na vida em si. O que para alguns pode parecer um sonho, para quem encara todos os dias essa realidade, o sonho não passa de uma prisão.

Este é o tema central do romance mais recente de Joël Dicker, escritor suíço, que vem conquistando leitores através de seus mistérios e suspenses psicológicos desde 2012. No livro O enigma do quarto 622 (Intrínseca, 2021), o autor apresenta a história de Joël, um escritor que resolve tirar férias após o fim de um relacionamento e no hotel, ele descobre que no quarto 622 houve um assassinato alguns anos antes e resolve investigar. Ele conta com a ajuda da cativante Scarlet que usa e abusa do seu charme para desvendar os mistérios desse crime.

Mas, se tratando de Dicker, é claro que o romance não é só isso. Ao longo das 526 páginas, o autor vai tratar de temas muito importantes, tais como privilégios e suas consequências, inveja, ódio, luta de classes, disputa pelo poder, corrupção, mentiras, ambição e ganância. O livro é também uma homenagem ao seu editor, Bernard de Fallois, que faleceu em 2018. A narrativa é feita em duas linhas, sendo a primeira o escritor investigando o crime e contando momentos (reais) de sua amizade com Bernard e a segunda, o desenvolvimento da história do crime, com aspectos bem psicológicos e uma excelente descrição dos personagens, oferecendo ao leitor acesso a seus pensamentos e diálogos afiados.

Vamos acompanhar a vida de Macarie, um homem de 40 anos que está pronto para se tornar o presidente de um dos maiores bancos da Suíça, mas que na verdade, é uma pessoa totalmente infeliz. Solitário, até certo ponto ingênuo, tem um bom coração, mas por força das circunstâncias acaba se envolvendo em ciladas e em situações bastante complicadas e no final, não sabe bem como sair delas. Ele é casado com Anastasia, uma mulher muito bonita, simpática e um tanto enigmática. Logo de cara o leitor percebe que o casamento deles está passando por problemas.

Outro funcionário do alto escalão do banco é Lev Levovitch, que à primeira vista, parece perfeito demais. Seu pai é um ator mambembe, que morreu tentando ser reconhecido como um grande comediante e que por isso perdeu muitas coisas importantes na vida. Em suas andanças pelo mundo, termina por conseguir um emprego um tanto inusitado no hotel de Verbier, onde acontece o assassinato alguns anos depois. O filho Lev também é contratado pelo dono do hotel como carregador de malas, porém, devido à sua desenvoltura e facilidade de relacionamento com as pessoas, ele logo se destaca e consegue oportunidades incríveis de carreira.

Lev é tudo o que todos gostariam de ser – simpático, muito bonito, inteligente, fala inúmeros idiomas com fluência, não estudou, mas ainda assim conseguiu aprender muitas coisas importantes apenas observando o mundo, aparentemente, muito honesto e sem pretensões, responsável e com poucas ambições. Não à toa, ele passa a ser o estereótipo do filho perfeito. Neste caso, tanto o pai de Macarie como o dono do hotel de Verbier querem que ele assuma seus negócios e o veem como “o filho que eu queria ter”. É óbvio que isso não vai terminar bem.

A partir desses personagens e da família de Anastasia, que envolve um pai ausente, que perdeu toda a sua fortuna no jogo e depois fugiu, abandonando a esposa e as duas filhas ao léu e uma mãe que vive no passado, invocando dinastias para se mostrar importante e conseguir se infiltrar nas festas de pessoas ricas com a intenção de casar as filhas por dinheiro, o autor vai mostrar que na maioria das vezes, o poder e a riqueza só atraem inveja, ódio e relacionamentos vazios.

Macarie se torna o retrato de uma parcela da sociedade que recebe tudo de mãos beijadas. Não precisa fazer nada para ter dinheiro, para conseguir um emprego ou até mesmo para se casar. O problema, que pode ser clichê, mas é muito crível e próximo da nossa realidade, é que ele não consegue o amor da mulher que ele deseja. Anastasia é a primeira “coisa” que ele deseja e não pode ter, porque mesmo que a mãe queira vende-la, ela não está à venda. É dessa forma que ele entende o vazio de sentido de sua vida. Esse incômodo já existia antes, mas não era tão palpável como se torna ao encontrar uma dificuldade, um entrave aos seus planos. Mesmo sendo uma boa pessoa, as circunstâncias as quais ele está exposto o levam a fazer coisas muito ruins. E elas têm um preço.

Já Lev, que não tinha muitas perspectivas da vida, a partir de um golpe de sorte conquista uma porção de coisas que antes lhe pareciam distantes e impossíveis. Estar em um ambiente hostil, onde as pessoas invejam todas as conquistas das outras e estão constantemente lutando por um cargo, por sucesso e reconhecimento não deixa ninguém imune. E assim, torna-se bem claro que as coisas mais banais e bobas da vida se perdem quando existem tantas regras de conduta, tantos protocolos a seguir. Os personagens criados para esta ambientação do romance de Dicker são todos muito infelizes, cada um à sua maneira, mas nenhum deles é livre para fazer o que quiser, escolher suas próprias lutas e nem mesmo para sentar em um café e simplesmente observar a rotina dos outros. O estilo de vida que têm exige a hostilidade e a hipocrisia como pré-requisito.

Uma das partes mais marcantes para mim desse romance é quando ele aborda os relacionamentos cotidianos e seu “tédio” corriqueiro. As diferenças entre a expectativa e a realidade, a perda do encanto em relação ao outro quando passam a viver juntos, o excesso de liberdade e a rotina que domina a vida a dois. Em uma passagem, o narrador coloca o casal encenando uma “vida perfeita”, onde não podem ficar desarrumados, precisam estar sempre perfeitos, comendo refeições caríssimas, cercados por uma paisagem paradisíaca e com empregados para fazerem todas as chatices do dia a dia. Não demora muito para que o paraíso se transforme em um inferno e que eles percebam que aquilo que sonhamos não se sustenta na realidade. Nós precisamos das coisas chatas, das atividades de casa, sair para trabalhar, enfrentar o transporte público, os engarrafamentos, a sujeira das ruas para nos sentirmos vivos.

Em contraponto a esse casal, outro está vivendo uma vida livre, se jogando nas ruas, andando de mãos dadas, vestindo roupas ridículas, comendo comidas simples e sentando no banco da praça para ver o sol se pôr. Esses momentos tão corriqueiros e banais se tornam fundamentais para um relacionamento que poderia ter sido feliz. Porém, as ilusões de uma vida perfeita, de uma pessoa perfeita impedem que essa história tenha um bom desfecho.

É difícil aprofundar a discussão que esse livro propõe sem dar spoilers. Por isso vou parar por aqui. O que posso afirmar é que mesmo com tantas páginas, o autor consegue manter a atenção do leitor até o fim. Os personagens são extremamente bem construídos e os temas abordados são muito pertinentes e bem desenvolvidos. Existem vários plots incríveis no texto que nos impedem de largar o romance e, como um Grand finale, esta é uma obra metalinguística, cheia de referências a grandes clássicos da literatura e com uma bela homenagem ao editor Bernard de Fallois. Joël Dicker, com esse último livro, se consagra como um dos meus escritores prediletos da atualidade, mesclando mistério e suspense junto a um grande conhecimento da alma humana.

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