crítica

O estrangeiro – Albert Camus

O que é para você ser estrangeiro? Apenas quando não se vive no seu país natal ou o sentimento de estrangeirismo é mais amplo que um estado físico? Essas são apenas duas perguntas que podemos fazer após ler O estrangeiro (Record, 1979) do escritor franco-argelino Albert Camus. As questões não param por aí. Estão apenas começando, como a ponta de um iceberg que vai se mostrando à medida em que avançamos nesse enredo confuso, mas perturbador e provocativo.

Neste livro, o leitor conhece a história de Meursault, um homem que conta sua trajetória de forma distanciada e indiferente em primeira pessoa. Logo de cara, sabemos que a mãe do protagonista morreu. Mas, ele não se lembra que dia foi isso. A forma como ele lida com o luto é totalmente incompreensível a todos, pois parece não se importar, considerando natural que ela deixe esse mundo, já que era idosa e tinha problemas de saúde. Assim, Meursault dispensa a ideia de ver o cadáver da mãe, aceita um café para passar o tempo até o funeral, toma todas as providências legais de forma diligente e logo no dia seguinte, vai à praia, conhece uma moça, tem relações íntimas com ela e vai ao cinema assistir a um filme de comédia.

Inicialmente, é assustador para qualquer pessoa esse comportamento indiferente, blasé e incomum na sociedade ocidental. Porém, cada pessoa lida com o luto e com a perda de forma diferente das outras. Muitas não conseguem expressar seus sentimentos, ou ficam em choque quando algo muito ruim acontece e não conseguem chorar ou demonstrar comoção. O problema é que existem algumas regras convencionais de comportamento para qualquer tipo de situação “social”. Então, diante da morte de um ente querido o que se espera das pessoas é choro, desespero, comoção, fechamento, tristeza e dor. Quando não nos comportamos assim, passamos automaticamente de vítimas a suspeitos de um crime perfeito. Mas, será que todas as pessoas desse mundo agem da mesma forma?

Continuando a história de Meursault, nos dias que seguiram a morte de sua mãe, ele conheceu um vizinho que tinha alguns problemas com uns árabes e terminou por confidenciar algumas coisas ao nosso protagonista. No final de semana, eles resolvem ir para a praia e passar uns dias na casa desse vizinho com suas namoradas. Lá encontram esses árabes e por ironia do destino, azar ou qualquer outro nome que o leitor queira dar a essa fatalidade, Meursault dispara cinco tiros em um desses homens e é preso. Ora, aqui já quase temos certeza de nosso protagonista é um homem ruim, um assassino. Mas é aí que a história começa e que vamos conhecer um pouco mais sobre esse ser tão ambíguo e tão peculiar criado por Camus em meio à Segunda Guerra Mundial, momento de incertezas, de medo e principalmente de estrangeirismo.

É fato que o escritor foi perseguido na Argélia, sua terra natal, devido ao conteúdo de seus textos jornalísticos. Dessa forma, foi obrigado a deixar o seu país e mudar-se para Paris. Lá, Camus nunca se sentiu acolhido e daí vem o título dessa obra – uma sensação de não lugar, de não pertencimento, de ser de fora. A partir da teoria do absurdo ele cria um personagem icônico que dá voz a tudo o que nos é esquisito, bizarro, incomum e grotesco. Entretanto, um homem pode ser pragmático e ter ações simples, cirúrgicas em sua vida, sem ser insensível ou criminoso. Basta observar essas pessoas sob um outro ponto de vista, menos maniqueísta e convencional. É bastante comum na nossa sociedade normatizar determinados comportamentos e exigir que todos caibam ali, sem dar aos indivíduos o poder de escolher como querem viver e agir diante de suas dores e conflitos.

É claro que Meursault vai a julgamento e é massacrado pela promotoria. Todas as suas ações pregressas serão consideradas aqui. Ele será visto como um enorme monstro, uma pessoa sem alma, principalmente, quando o juiz o manda rezar e se arrepender de seus atos e ele se recusa. Essa recusa vem do absurdo mesmo – Meursault não acredita em Deus e por isso não vê sentido em fazer aquilo, mesmo tendo consciência de que se o fizesse, receberia a compaixão e a empatia do júri e que poderia ter uma pena menor. Porém, por ser uma pessoa totalmente pragmática, absurda mesmo, ele se mantém firme em suas convicções e continua culpando o reflexo do sol, o calor e o cansaço por seu crime.

É uma ação irracional, mas e se todos nós resolvêssemos dar vazão aos nossos sentimentos mais profundos e ser nós mesmos o tempo todo? Não daria certo, não é? Por isso existem as convenções e as leis, para organizar a vida e dar limites para os nossos anseios e desejos mais sombrios. O fato é que não tem como sermos hipócritas e dizer que realmente sentimos tudo o que fazemos, sendo que muitas vezes omitimos os nossos pensamentos e sentimentos em prol da boa convivência em sociedade. E sim, é necessário fazer isso todos os dias. Mas não é necessário julgar todos os comportamentos das pessoas e fazer conjecturas sobre aquilo que vai no coração de cada um. Pode ser que quando uma pessoa que amamos muito morrer, naquele momento, não consigamos expressar tudo o que estamos sentindo, entretanto, na nossa solidão, isso pode se manifestar de outras maneiras não convencionais.

O mais irônico nessa obra é que Camus foi um grande pacifista, que não via sentido em matar as pessoas para conseguir alcançar um objetivo. Era contra as guerras e as revoluções violentas e por isso foi isolado do meio dos intelectuais que prezavam pelos conflitos. Tornou-se recluso e continuou escrevendo ensaios onde expressava o seu sentimento diante das atrocidades do mundo. Em um deles ele diz que a morte dos outros não justifica a luta e que essas ações conduzem à morte de irmãos e de si mesmo. Essas reflexões estão muito presentes em O estrangeiro, através desse espírito de desilusão provocado pela guerra e da indiferença de Meursault em relação ao seu próprio destino. É como se, parafraseando o escritor, a tentativa de reformar o mundo acabasse destruindo a nós mesmos, gerando uma grande desimportância em relação às coisas mundanas, uma frustração maior que a vontade de lutar e um desejo incontrolável de não seguir as regras. Grande clássico da literatura francesa e que deve ser lido e relido pois faz pensar e repensar o mundo em que vivemos.

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