crítica

O idiota – Fiódor Dostoiévski

Considerada pela crítica e por muitos leitores como uma das obras mais desafiadoras e mais complexas de Dostoiévski, O idiota (Penguim, 2022) vai tratar sobre os temas mais explorados pelo escritor, tais como a transição da manufatura para o capitalismo, a corrupção através do dinheiro, as divisões perversas de classes sociais, a marginalização de pessoas vulneráveis, a situação da mulher na sociedade, as hipocrisias da vida e as enormes dificuldades que as pessoas encontram em conviver umas com as outras quando faltam verdade, sinceridade e amor ao próximo.

Por isso, o protagonista Príncipe Míchkin, é muitas vezes comparado a uma junção de Dom Quixote e Jesus Cristo, devido às características dessas duas figuras icônicas, voltadas para a inocência cega nos homens, caso de Dom Quixote e para a abdicação dos desejos individuais em prol da felicidade coletiva ou de outrem, caso de Jesus Cristo. O enredo dessa obra é relativamente simples: após passar uma temporada na Suíça para um tratamento de epilepsia, o Príncipe Míchkin volta à Rússia, sendo ele o último de sua linhagem para encontrar uma prima distante e tentar reconstruir sua vida em sua terra natal. Durante a viagem de trem, ele conhece algumas pessoas que contam histórias sobre uma moça que foi vendida por sua família, Nastácia Filíppovna e que agora está sendo praticamente leiloada pelo homem que a comprou para se casar com alguém disposto ao vexame de tê-la como esposa por um dote relativamente alto.

O caso de Nastácia ilustra uma realidade muito triste da Rússia tzarista, que era a venda das filhas para homens ricos e poderosos quando a situação financeira da família estava muito difícil. Muitas famílias se endividavam ou passavam necessidades, em contraponto com outras que tinham muito dinheiro, criando assim um abismo social que define as relações de poder e do capitalismo no país. Essas injustiças sociais favoreceram muito a prostituição, os casamentos por interesse, a usura e a corrupção como meio para alcançar a mobilidade social. No romance de Dostoiévski temos todos esses personagens representados aqui, com os quais o Príncipe Míchkin terá de conviver ao longo da trama.

Já logo no começo do romance, chegando à casa de sua prima, ele conhece Gánia Ívolguin, o pretendente de Nastácia, que receberia o dote pelo casamento. Há toda uma situação desconfortável porque ele presencia a negociação entre o marido de sua prima, General Iepántchin e Gánia, que trabalhava em seu escritório, era um homem pobre que desejava ardentemente ascender socialmente. Para tanto, deveria aceitar o dote oferecido por Totski, tutor de Nastácia e se casar com ela. Nastácia era uma moça muito bonita, que despertava uma certa inveja nas jovens da sociedade e um enorme desejo lascivo nos homens. Apesar de nunca ter tido nenhum tipo de relação sexual do Totski, para a sociedade, ela foi amante desse homem desde a sua adolescência. Neste caso, para uma sociedade conservadora e ortodoxa, casar-se com Nastácia representava um peso muito grande a ser carregado, pois, aos olhos de todos, aquele homem teria se casado com uma prostituta.

Não bastasse toda essa confusão, Rogójin, o homem que viajou no mesmo vagão que o Príncipe Míchkin, também tinha intenções de se casar com Nastácia. Diferente de Gánia, Rogójin era rico e não precisava do dote. Ao contrário, estava disposto a oferecer dinheiro em troca da moça. Porém, sua família não apoiava o casamento. Eles esperavam que o filho se casasse com uma moça da sociedade para terem acesso ao topo da pirâmide social, deixando de lado o estigma de burgueses, ascendentes econômicos, mas sem classe, sem sobrenome. Rogójin tinha valores diversos aos de sua família, esses títulos para ele não eram importantes. Ele queria viver e ser feliz e todos os impedimentos que vão surgindo ao longo do caminho irão transformá-lo drasticamente.

Observem que até o momento, ninguém está interessado em saber as opiniões de Nastácia sobre o assunto. Todos falam sobre ela, sem saber exatamente como ela se sente e o que ela pensa sobre o seu futuro. Os homens a tratam como uma mercadoria disponível para compra e venda. A única pessoa que a enxerga como um ser humano e ao ver a sua imagem pela primeira vez em uma pintura repara em seu olhar triste e sofrido é o Príncipe Míchkin. Logo que percebe a tristeza de Nastácia ele se compadece de sua situação e passa a defende-la de todas as formas e de todas as calúnias e ofensas feitas por pessoas vazias e essa compaixão desmedida vai lhe custar muito caro.

O General Iepántchin e sua esposa, que é prima do Príncipe, têm três filhas que estão na idade de se casarem. A mais nova, Aglaia vai desenvolver uma relação dúbia com o Príncipe desde que se conhecem no dia de sua chegada à Rússia. Essa é uma personagem importante porque ela tem características bastante disruptivas para a época em que o romance se passa. Por ser considerada a filha mais bonita e por isso a que vale um dote mais alto, seu pai está negociando um casamento vantajoso para ele e para ela, nem tanto. Em casos como o de Aglaia, é comum que os pais procurem homens mais velhos, que têm idade para serem avôs da noiva para se casarem com ela. Isso porque eles pagam um dote mais alto sem reclamações, morrem rápido e deixam mais dinheiro disponível para a mulher e consequentemente para a família dela. Lembrando que geralmente, uma mulher não podia tomar decisões econômicas e financeiras sozinha por decoro e dessa forma, o pai se encarregaria dessas funções.

Acontece que Aglaia não está disposta a se casar com um homem sem amor ou ao menos sem sentir atração física por ele. Assim, rejeita todos os pretendentes que o pai lhe arruma, rompendo com a tradição de compra e venda das mulheres como objetos, sem uma prévia consulta de seus interesses. Aglaia é responsável por diálogos interessantíssimos no romance, que nos leva a reflexões sobre a forma como a sociedade vive, com todas as suas hipocrisias e falsidades que objetivam a manutenção de relações vazias e fúteis, baseadas em interesses econômicos e financeiros.

Para fechar o enredo sem spoilers, o Príncipe Míchkin vai morar na pensão dos pais de Gánia e ali ele conhece melhor a família do rapaz e a sua história. O pai de Gánia bebe e joga, perde muito dinheiro, está sempre endividado, vive pedindo dinheiro emprestado aos hóspedes, o que enche os filhos e a esposa de vergonha. As relações vão se estreitando, o Príncipe também se aproxima de Rogójin, muitos eventos sociais vão acontecer ao longo do romance e nenhum deles termina bem. O papel de Míchkin nesse romance é mostrar ao leitor que uma pessoa que não compactua com as regras sociais implícitas, ou por desconhecimento delas ou por pura subversão, torna-se marginalizado. Míchkin não se abstém de emitir suas opiniões, fazendo alguns monólogos ao longo da história, mostrando sempre o seu ponto de vista humanitário.

Em muitas ocasiões ele passa vergonha, ele diz o que não deve e coloca as pessoas em saias justas. Todas essas confusões provocadas pela sinceridade do Príncipe, que para muitos soa falsa, fazem de O idiota um romance complexo e que não agrada a muitos leitores. Algumas situações são insólitas e difíceis de acreditar e compreender. Entretanto, Dostoiévski as coloca ali de propósito, com o intuito de mostrar ao leitor o quão ridículo são os padrões sociais de comportamento que nos são impostos e que nós aceitamos sem questionamentos. Quando aparece uma figura que vai se opor a tudo isso e questionar as atitudes dos outros, com argumentos, essas situações chegam ao insólito e incomodam.

Míchkin não é um personagem perfeito sem defeitos. Também não é um homem santo, porém, ele ainda acredita no ser humano. Ele não julga as pessoas por sua má fama, ele procura ouvir as suas histórias e compreender os motivos que elas têm para agir como agem, daí a comparação com Dom Quixote. Para ele, é possível um futuro melhor, sem o dinheiro na frente da compaixão e da moral, algo que para a sociedade retratada na obra não existe. O Príncipe também é capaz de abrir mão da sua felicidade individual para ajudar ao próximo, mesmo consciente de que aquilo o prejudicaria. Sua justificativa para agir assim é a de que o próximo em questão nunca teve a oportunidade de ser feliz, de escolher o que gostaria de fazer. Assim, em nome das pessoas que o oprimiram desde sempre, ele lhe oferece a chance de fazer suas próprias escolhas. Daí a comparação com Jesus Cristo.

Sabemos que uma pessoa como o Príncipe não existe na realidade. Porém, no romance, ele é muito bem construído e nos parece real e alguém com quem gostaríamos de conviver. Por outro lado, Nastácia é uma personagem bem típica de Dostoiévski, que é a mulher ou a pessoa que carrega as dores do mundo, ou seja, mesmo sem cometer delitos ou crimes, ou pecados mesmo, ela se sente extremamente culpada por tudo de ruim que acontece à sua volta. É como se fosse uma sina, como se ela não merecesse uma chance ou a felicidade. Precisa realmente sofrer e pagar pelo “pecado original”. Essa é uma questão/ ideia que acompanha muitas mulheres ao longo dos séculos e que foi construída socialmente, a culpa por aquilo que não fez.

Obviamente O idiota não é uma história feliz e singela. Muito ao contrário: é um romance trágico, triste, complexo e com uma narrativa no estilo de Dostoiévski mesmo. Há muitos monólogos interiores, o uso constante do discurso indireto livre, atitudes exageradas dos personagens e sentimentos exacerbados, que beiram à loucura. De acordo com o crítico Nikolai Tchirkóv, opinião com a qual eu concordo totalmente, as pessoas que têm uma vida linear, sem muitos problemas ou conflitos, terão mais dificuldade em compreender a obra de Dostoiévski, que tem como foco as pessoas pobres, os humilhados, os ofendidos, os caluniados e os excluídos. O autor vai retratar o sofrimento, a dor profunda, a miséria e principalmente o que o ser humano é capaz de fazer para conseguir aquilo que quer, seja uma mulher, dinheiro, poder ou qualquer outra coisa.

O idiota não é um livro difícil de ler. Ao contrário, a leitura flui facilmente. A complexidade do romance está em compreender a profundidade das análises sociais e psicológicas dos personagens que o autor faz aqui. É uma leitura densa, onde o leitor imerge na cabeça daquelas figuras e se permitindo, consegue compreender o âmago do seu sofrimento e da sua dor. Assim como em O apanhador no campo de centeio, onde aprendemos um pouco com o Holden, mesmo alguns achando-o chato, aqui em O idiota, podemos também aprender com o Príncipe Míchkin a sermos mais humanos, mais sinceros e através da empatia, pensar um pouco mais no próximo e menos em nós mesmos como indivíduos. Com a leitura desse romance, torna-se óbvio o quanto o sentimento de coletividade está se perdendo ao longo do tempo, principalmente com o advento do capitalismo selvagem e de tudo o que o dinheiro pode comprar. Não acho que devemos ser o Príncipe Míchkin, ou o Dom Quixote ou Jesus Cristo. Mas acredito que podemos melhorar muito como pessoas e, romances como O idiota podem nos ajudar nessa transformação.

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