crítica

O invencível verão de Liliana – Cristina Rivera Garza

Liliana Rivera Garza foi vítima de um feminicídio aos 20 anos de idade, no ano de 1990, na Cidade do México, morta por seu ex-namorado Ángel Gonzáles Ramos. Naquela época, o crime cometido contra a vida da jovem Liliana não recebia essa alcunha e o culpado nunca foi punido. Após ceifar a vida de uma pessoa que não gostaria mais de se relacionar com ele, Ángel fugiu pelos telhados de sua casa, emigrou para os Estados Unidos e nunca ficou preso um dia sequer pelo que fez. A história de Liliana é muito comum nos países latino-americanos, onde infelizmente, há muita violência, além de existir um mito de culpabilidade da vítima ou de seus pais, como se apenas um estereótipo de mulheres tivesse esse final infeliz.

Trinta anos depois da tragédia de Liliana, sua irmã Cristina vence seus medos, receios e até mesmo a sensação de vazio e de impotência provocadas pelo luto e decide contar a breve história da jovem que sonhava ser arquiteta, preservando a história de seu país de seus ancestrais; daquela que ficou conhecida na faculdade por sua alegria, sua inseparável jaqueta de couro preta, seus óculos redondos e sua máquina fotográfica para registrar momentos imperdíveis; além da moça que era também poeta, escrevia cartas para as pessoas que amava – e também alguns enigmas – e que acima de tudo, tinha uma enorme vontade de viver, de viajar, de conhecer o mundo. Liliana, a partir do olhar de sua irmã, de seus pais e amigos, foi uma joia que brilhava e, de acordo com a máxima do pessimismo, “tudo o que brilha deve ser destruído”, esse foi o fim da doce Liliana, que deixou para trás um legado de saudades, desenterrado por sua irmã, em um romance que flerta com o jornalismo investigativo literário e reproduz os últimos anos de vida de Liliana.

O título do romance já é por si só lindo e muito expressivo, porém, quando compreendemos o seu contexto e de onde ele foi retirado, fica ainda mais encantador. O poema predileto de Liliana lhe foi apresentado por sua irmã Cristina e se chama O verão, escrito por ninguém mais, ninguém menos que Albert Camus (a freguesia desse site já sabe que o escritor é um queridinho por aqui, mas eu ainda não conhecia o seu legado na poesia). E, lendo o poema, ficam claras as intenções de Cristina com esse romance, ela quer mostrar ao público que sua irmã nunca mereceu a morte, que ela foi uma pessoa querida e especial. Sim, tinha defeitos, mas nada nesse mundo justifica esse tipo de ação – estilo de roupas que a mulher usa, número de relacionamentos que teve, orientação sexual e grau de instrução.

Parece estúpido dizer isso, mas, para as más línguas, as idas e vindas no relacionamento entre Liliana e Ángel são apontados como justificativa para o crime. O fato do pai da jovem ser um homem culto, professor que cursava doutorado fora do país e ser liberal com as filhas também aparece como um motivo para essa barbaridade. Algumas músicas da época, citadas no livro, faziam referência a esse amor Wetheriano, onde se o ser amado não pode ficar com o eu lírico, é melhor que esteja morto. Aqui no Brasil, na mesma época, músicas populares tinham letras ultrarromânticas também e não era difícil criar essa ideia de que a morte seria a solução para o fim do amor.

Nos dias atuais, ainda vemos essas referências de forma mais sutil nos filmes e séries, principalmente nas comédias românticas. Talvez hoje, tenhamos mais senso crítico para observar tudo isso e não nos deixar enredar por tramas mirabolantes, onde a vida de uma pessoa se limita ao amor. Mas naquele tempo, a informação não circulava como hoje e era necessário que as pessoas tivessem interesse em buscar o conhecimento para expandir seus horizontes. O problema vai mais longe: há o inconsciente coletivo que predominava na época: o machismo arraigado, a ideia de que a mulher não deveria estudar, os estereótipos do machão que não leva desaforo para casa e o padrão de comportamento que era esperado de todos.

Liliana fugia à regra. Era livre e queria continuar sendo. Se apaixonou por Ángel por ele ser diferente dos outros rapazes de sua cidade; deixou o namorado por que evoluiu, conheceu outras formas de vida e o projeto esposa e mãe no interior já não a saciava. Para Ángel, a vida deveria ser a mesma de sempre. Não tendo nota para entrar na faculdade, foi trabalhar no comércio dos pais. Como ganhava pouco, se envolveu em contravenções e logo conseguiu ter uma arma. Não interagia com os novos amigos de Liliana. Quando a visitava, fazia questão de ser inconveniente e grosseiro com as pessoas, demonstrando o seu desprezo ou inveja por todos. Liliana sempre foi o oposto das rabugices do namorado – agradável, sensível, amigável, vivia cercada de pessoas, cativava a todos à sua volta, era responsável, sem ser chata, mas queria desbravar o mundo.

Entende-se por desbravar o mundo não apenas viajar e conhecer lugares, mas principalmente pessoas. Liliana vivia cercada de gente e era fácil se apaixonar por ela. Teve muitos pretendentes, com alguns chegou a se relacionar, mas quando percebia que o affaire estava ficando sério, terminava e se afastava. Em passagens do seu diário, ela menciona a sombra de Ángel que a perseguia com frequência, tanto na realidade quanto nos sonhos. É relatado que Liliana tentou terminar com ele diversas vezes, mas ele sempre voltava. Alguns amigos e parentes afirmam que viram marcas suspeitas de violência em seu corpo, mas ela dizia ter caído ou esbarrado em algo – comportamento bastante comum em vítimas de violência e abuso. É notório que a jovem tentou se libertar de seu algoz, mas não conseguiu fazê-lo e ninguém nunca saberá o porquê.

Diante de tanta falta de compreensão do caso, Cristina volta ao México. Ela vive nos Estados Unidos há mais de trinta anos. Vai até a procuradoria e pede o arquivo do processo da irmã:

Se não fosse porque estamos indo em busca do processo de uma jovem assassinada, essa caminhada poderia ser confundida com um passeio no meio da semana. A rua Ámsterdam é lendária em La Condesa, uma colônia porfirista fundada em 1905 que ainda ostenta suas antigas mansões art déco ou art noveau, agora inseridas entre prédios de apartamentos com grandes janelas e roof gardens. (…). Nós sempre damos voltas dentro de um óvalo. Somos sempre um cavalo correndo para salvar a vida. (…) vamos em direção à Michocán até seu cruzamento com a Cacahuamilpa, onde viramos à esquerda, depois à direita na Yucatán e no Eje 2 Sur. (…). Quase no mesmo instante, viramos à esquerda e depois à direita para entrar na Álvaro Obregón. (…). Um quilômetro depois, viramos à esquerda na Cuauhtémoc e entramos na Doctores: da Dr. Velasco para a Dr. Jiménez e, a partir daí, em ruas cada vez mais estreitas e cheias de carros mal estacionados, até o número 56 da rua General Gabriel Hernández. (…). É fácil amar uma cidade onde tudo acontece ao mesmo tempo. Onde todo o tempo é tempo real” (GARZA, 2021, pág. 12,15)

Buscando esse arquivo tão antigo, esquecido nos porões da procuradoria, Cristina traz à tona inúmeros casos de feminicídio na América Latina. Ela quer justiça, mas também, compreensão. Ela quer desmistificar o homicídio de mulheres com uma justificativa patriarcal por trás, que abona o crime com a alcunha de “passional”. Ela deseja gritar que a irmã não merecia morrer, que junto com ela morreram também uma parte de seus pais e da própria Cristina. Ela quer que todos entendam que ninguém deve morrer pelo simples fato de ser mulher. Ela quer dizer que Ángel sufocou sua irmã com um travesseiro, mas que a sociedade o ajudou, de forma inconsciente, a segurar essa arma contra o peito de Liliana e de tantas outras Lilianas.

No México, dez feminicídios são cometidos todos os dias e, embora ao longo dos anos essa notícia tenha se tornado comum, o estupro de uma adolescente, perpetrado por membros da polícia local dentro das próprias patrulhas oficiais, desencadeou a indignação novamente. (…). exausta, farta, enfurecida até o limite – jogou purpurina rosa em sua cabeça. O gesto, tão espetacular quanto inocente, ganhou um novo nome para o movimento feminista que reúne mais e mais mulheres, cada vez mais jovens, mulheres que cresceram numa cidade e num país que não para de assediá-las e não as deixa em paz. Mulheres sempre à beira da morte. Mulheres morrendo e, no entanto, vivas. Com lenços amarrados no rosto e tatuagens nos antebraços e ombros, as mulheres reivindicaram o direito de permanecer vivas neste solo tão manchado de sangue, tão dilacerado pelos espasmos dos terremotos e da violência” (GARZA, 2021, pág. 15)

Para conseguir fazer esse relato, a autora revirou as caixas do processo, leu tudo o que encontrou ali, papéis, diários, cadernos… procurou organizá-los em uma sequência lógica temporal e a partir de seu prévio conhecimento sobre a irmã, construiu uma narrativa. Ela também deu voz aos amigos de Liliana, aos seus desabafos, muitas vezes incômodos e aos seus pais, que nunca haviam se pronunciado sobre o crime. Certamente foi um processo libertador e doloroso ao mesmo tempo, que gerou uma linda homenagem à irmã. Durante o trajeto de Cristina pelas ruas da Cidade do México, ela vai conduzindo o leitor através de suas descrições encantadoras, que não escondem a sujidade das ruas e nem a violência do lugar, mas que ganham uma nova roupagem através de suas palavras. Nunca vou esquecer o “céu irritantemente azul” mencionado por ela em diversas frases e que ficaram ecoando na minha cabeça, assim como a música Em la ciudad de la furia da banda argentina Soda Stereo, que parece perfeita para essas ocasiões das caminhadas de Cristina atrás da verdade e da justiça.

O livro é um romance híbrido, como eu disse, lembra um pouco o estilo da Eliane Brum e do Truman Capote em sua não-ficção. Porém, foi classificado como romance porque ela reproduz os diálogos, os pensamentos e algumas ações dos envolvidos através da narrativa em primeira pessoa. O escritor mexicano Felipe Garrido fez um comentário negativo em relação ao livro de Cristina Garza, alegando que “o romance é ruim por falta de desenvolvimento de personagens”. Segundo o autor, Garza “deu pouco espaço para o assassino e assim não tem como compreender o caso”. Ela respondeu à crítica dizendo que seu romance não é sobre Ángel ou sobre o homicídio, que é sobre a vida de Liliana, sua irmã e a única pessoa que interessa no caso. É impressionante como mesmo em uma situação tão terrível, que envolve toda uma questão pessoal, um homem ainda acha que tem que ensinar tudo a nós. Felipe fez com Cristina a mesma coisa que fizeram com Rebecca Solnit, levando-a a escrever o seu livro de ensaios Os homens explicam tudo para mim. Uma pessoa que nem sequer conheceu Liliana queria ensinar à autora como escrever o seu próprio livro. Pode parecer algo pequeno, mas é assim que as violências de gênero se espalham, ganham força e terminam em morte.

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