É engraçado quando lemos um livro e nos colocamos em uma posição superior de análise: criticamos de forma contundente os personagens, antipatizamos com outros, questionamos porque chegaram ao ponto do conflito, porque não fizeram isso ou aquilo e também sentimos empatia e simpatia por personagens e enredos. Contudo, a nossa relação de diálogo com alguns livros não é essa; os lemos, absorvemos o seu conteúdo e depois, sentimos um incômodo. Nas palavras do próprio Cortázar, “sentimos vontade de jogar o livro na cabeça do escritor”. E a questão é: o que nos causa tanto desconforto?
Cognitivamente falando, o processo de compreensão e inferência durante a leitura ocorre na maioria das vezes, de forma inconsciente. Absorvemos o conteúdo da obra e a processamos cada um a seu tempo. Mas, quando não conseguimos dizer se gostamos ou não de um livro e o que ele nos fez sentir, não conseguimos traduzir em palavras esse sentimento, ele muitas vezes está relacionado a um encontro profundo com o nosso âmago. Explicando melhor, pode tratar-se do efeito espelho – quando você observa alguém fazendo alguma coisa que é comum, que você se identifica, mesmo que odeie se identificar com ela. Dessa forma, repudia, foge e se faz de blasé.
É esse o poder que alguns escritores e alguns livros em especial têm sobre nós: o dom de incomodar. Eu adoro quando os encontro porque eles me fazem olhar para dentro de mim mesma e pensar em como posso mudar, se quero mudar e porque faço o que faço. Na verdade, eles me ajudam a me conhecer melhor. Falando sobre alguns escritores, que no conjunto de sua obra conseguem fazer isso comigo, está em primeiro lugar, Alice Munro, escritora canadense que amo e que me despertou para essa questão. Temos ainda Salinger, Clarice Lispector, Sylvia Plath, Elena Ferrante e Cortázar, que dispensam apresentações. E, finalmente, nossa escritora brasileira contemporânea Carola Saavedra que também tem esse dom de incomodar e abrir os baús da nossa memória.
Mas, esse ensaio nasceu por causa de um personagem específico, magistralmente criado por Cortázar: Horácio Oliveira, um homem chato, ranzinza, desagradável, metido, arrogante, machista e que vive como um adolescente em Paris, sustentado por parentes, amigos ou por freelances que faz eventualmente. Detalhe: nosso “rapaz” já passou dos quarenta anos! A história é ambientada nos anos 1960, havia todo um contexto histórico por trás dos fatos, mas ele continua sendo atual ainda em 2021 porque a sua história, assim como as histórias que fazem pensar dos escritores citados acima, se passa dentro da cabeça do personagem. E os sentimentos humanos são os mesmos em qualquer tempo e em qualquer lugar do mundo.
Em cartas trocadas por Cortázar, contidas na edição nova da Cia das Letras, ele diz que as atitudes de seus personagens no livro são um reflexo das conversas que ele tinha com os seus amigos. Ou seja, nada mais é do que observação do ser humano e de suas ações. O fato é que é desagradável a qualquer um de nós ler os pensamentos dos personagens de Cortázar e perceber que são tão desprezíveis, mas que nós já fizemos algo parecido, que somos capazes de sentir as mesmas coisas e que quando as estamos praticando, muitas vezes não nos damos conta do quão nocivas elas são. Outras vezes, temos sim noção do que pensamos ou fazemos, mas não somos fortes o bastante para não as fazer.
Vou exemplificar alguns pontos com questões do nosso cotidiano. Oliveira, em O jogo da amarelinha, era um homem bastante erudito. Conhecia muito sobre arte, música clássica e jazz, além de literatura canônica e outras manifestações artísticas. Porém, era uma pessoa arrogante, que se gabava o tempo todo de sua erudição e desprezava a falta de conhecimento nesse sentido das outras pessoas. Se achava superior aos outros e era incapaz de sentir empatia por seus amigos e pessoas próximas. Isso me fez refletir sobre nós, no século XXI: somos cada vez mais especialistas em nossas áreas do conhecimento. Dessa forma, quantas vezes na última semana rimos da ignorância de alguém? Mesmo que de longe, quantas vezes criticamos ou nos assustamos com a falta de conhecimento de algum amigo ou parente por não conhecer uma palavra de nosso vocabulário ou alguma obra clássica aclamada?
Se você não leu O jogo da amarelinha e se importa com spoilers, não leia esse parágrafo. Mas, se já leu ou não se importa com spoilers, vamos lá! No fatídico capítulo 28, Oliveira percebe que o bebê de sua namorada está morto na cama dela. O que ele faz a seguir é contar a todos os presentes na sala, menos a ela. E todos eles, em torno de umas 5 pessoas, decidem esperar as duas horas que faltavam para a próxima colherada de xarope do bebê, conversando amenidades, discutindo jazz ou movimentos artísticos, como se nada tivesse acontecido. Quando a moça descobre o bebê morto, todos se retiram, deixando-a sozinha para lidar com os seus problemas.
É claro que essa situação beira o absurdo total e que provavelmente não aconteceria na vida real, mas ela é uma metáfora para o autocentrismo ao qual estamos tão acostumados atualmente. Me lembrei imediatamente de Sylvia Plath e seu vizinho professor, que morava no apartamento de baixo da Fitzroy Road, 23. Ele disse que não gostava dela porque ela o atrapalhou a alugar o apartamento e que depois, nunca foi simpática, nunca perguntou a sua história ou se interessou por sua vida. Nesse ponto, eu penso que eu também nunca conversei com os meus vizinhos. Sei quem são, mas nunca lhes perguntei a sua história. Por outro lado, eles também nunca perguntaram a minha.
Outra questão levantada em O jogo da amarelinha é o estilo de vida adotado pelos amigos do “Clube da serpente”. Me lembro de quando era criança e assistia às novelas de TV que algumas pessoas eram realmente “bon-vivants”, e isso parecia comum, viver de renda, de herança ou simplesmente ser sustentado pelos pais por tempo indeterminado. Porém, a sociedade de consumo nos leva a repensar esse estilo de vida: é preciso produzir, trabalhar, ser proativo e seguir o “sonho americano” para ser no mínimo levado a sério. Esse raciocínio é uma faca de dois gumes. Por um lado, abrimos mão dos nossos sonhos para seguir as regras. Isso certamente a longo prazo, vai nos trazer descontentamento e infelicidade. Por outro lado, ser um bon vivant não paga as contas e além disso, coloca a pessoa em uma situação humilhante e degradante. Talvez um meio termo entre as duas opções seria ideal. Mas, na realidade, é difícil para a maior parte das pessoas conciliar os sonhos e as contas pagas no final do mês.
É engraçado pensar que quando nós lemos muitos livros e nos inteiramos sobre tantos problemas existentes na humanidade, nos colocamos em uma posição de superioridade, como se entendêssemos sobre tudo um pouco e nos tornamos autocentrados demais. Assim, conseguimos julgar os personagens, os enredos, sentir uma forte empatia por esses seres invisíveis que habitam as páginas dos livros. O problema é que quando eles se materializam na nossa frente, nós ficamos parados e não fazemos nada além de dizer ou pensar “sinto muito”.
A verdade é que todos nós somos um pouco Horácio Oliveira. Somos chatos e entediantes (como diz a minha filha de 14 anos). Nos achamos bons demais, quando na verdade somos ridículos. Estamos sempre buscando o céu, esperando uma transcendência que não vai acontecer porque somos pequenos e vamos continuar pulando a amarelinha da vida, do dia a dia, sendo em alguns momentos realmente bons e em outros totalmente maus. Vamos criticar e fugir dos diários da Sylvia Plath quando ela fala abertamente sobre as suas escatologias e sentimentos mais ambíguos. Tudo isso sem nos perguntarmos se ela gostaria que lêssemos seus diários e a julgássemos mesmo depois de morta. Vamos observar e julgar a queda da Família Meneses no clássico Crônica da casa assassinada e pensar “poxa vida! Como eles chegaram nesse ponto”? Mas o que não vamos fazer é olhar para a nossa própria decadência.