crítica

O jogo da amarelinha – Julio Cortázar

“Encontraria a Maga”? Assim começa a jornada – e que jornada – de Horácio Oliveira em seu eu interior, confrontando o leitor com questões existenciais, filosóficas e morais. A primeira vez em que ouvi falar sobre O jogo da amarelinha (Cia das Letras, 2019) foi na Faculdade de Letras. Era perceptível o apreço e o respeito do meu professor por essa obra e pelo escritor. Na época, não me interessei pela leitura, acreditando ser algo chato ou até mesmo pretencioso demais. Das minhas primeiras impressões sobre esse livraço, uma eu errei: o livro não é enfadonho, nem entediante. Muito ao contrário, é uma leitura fluida, rápida e envolvente. A segunda sugestão, eu acertei: sim, é um romance pretencioso, mas executado com a maestria de quem sabe escrever o melhor anti-romance de todos os tempos!

E porque anti-romance? O próprio Cortázar, em entrevistas e comentários sobre a sua obra-prima afirmou que a intenção desse livro era transgredir a forma tradicional do romance, tanto na forma estética, quanto no conteúdo. Por isso ele criou personagens detestáveis, porém de uma humanidade impressionante em um texto que deve ser lido em uma sequência sugerida pelo escritor. O leitor é livre para ler a obra de forma tradicional, começando pelo capítulo 1 e lendo até o capítulo 56, quando a história termina. Essa chave de leitura seria básica, sem muitos aprofundamentos, mas completa, com início, meio e fim.

A outra forma de ler esse livro é saltando os capítulos. Logo nas primeiras páginas de O jogo da amarelinha, há uma tabela com a ordem dos capítulos sugeridos pelo autor. Dessa forma, começamos a ler pelo capítulo 73 e o livro não tem fim, pois ao ler o capítulo 58, o leitor é mandado para o capítulo 131. Finalizando o capítulo 131, é enviado de volta para o capítulo 58, fazendo assim um looping infinito de leitura. O autor dividiu o livro em duas partes, sendo a primeira o livro normal e a segunda, “Capítulos prescindíveis”. Mas, ele deixa claro que os capítulos posteriores ao 56, para quem seguiu a ordem não farão diferença na história. E então nos perguntamos: porque vou ler essa segunda parte, sendo que ela não interfere na história central? E a sacada genial está aqui: por curiosidade, por transgressão ou talvez porque o enredo central não esteja fazendo sentido.

A minha experiência de leitura com O jogo da amarelinha foi em conjunto com o Clube Leia Latinos, organizado pela Professora Jéssica Mattos. No chat da leitura coletiva, via pessoas dizendo “é normal não entender nada de O jogo da amarelinha”? E até mesmo no podcast da Cia das Letras, os participantes relataram esse estranhamento, essa dificuldade de compreender o enredo. Por isso, muitas pessoas que começam lendo na ordem “normal”, sem pular os capítulos, desconsiderando os “capítulos prescindíveis” são levadas a ler esse “outro lado” da obra, buscando uma compreensão do texto e principalmente, tentando entender o que o autor estava tentando fazer com esse livro maluco e ambicioso.

Mas afinal do que se trata esse livro? Basicamente, é uma história de amor que não se concretiza. Isso não é um spoiler, pois a primeira frase do livro já deixa essa não-realização muito clara para o leitor. Vamos acompanhar a trajetória de Horácio Oliveira, um bon-vivant argentino que mora em Paris, nos anos 1960. Ele já passou dos 40 anos, mas leva uma vida desregrada e vazia como se fosse um adolescente. Sua renda vem de freelances que realiza na capital francesa ou da ajuda de parentes e amigos. Ele não tem residência fixa, assim como não tem propósitos de vida claros, objetivos ou qualquer ligação com a vida comum e tradicional das pessoas de sua idade.

Horácio se relaciona com um grupo de latino-americanos que vivem na cidade e que são seus amigos. Dentre essas pessoas está Maga, que seria a namorada dele no começo da história. Os amigos de Horácio são como ele: não fazem nada o dia todo, bebem em excesso e gostam de discutir sobre filosofia, arte, literatura, música, principalmente Jazz e tomar mate para relembrar os pampas. O problema é que eles são teoricamente muito eruditos, mas incapazes de sentir empatia por outras pessoas. Estão sempre zombando e ridicularizando as pessoas que não conhecem determinada obra de arte ou não conseguem inferir as referências mitológicas ou literárias que fazem em seus longos discursos filosóficos. São pessoas desagradáveis e cruéis, arrogantes e antipáticas e que se sentem superiores a todo o resto da sociedade.

Seria impossível ler algo nesses termos se não fosse a Maga. Ela é diferente desse grupo de amigos, que se autodenomina como “Clube da Serpente”, apesar de fazer parte dele. Maga sofre por não ser “tão inteligente” quanto Oliveira, que a trata muito mal, de forma sexista, hostil e irônica. Ela é um contraponto aos amigos e questiona a forma como agem diante da vida e principalmente para que servem tantos conhecimentos, sendo que eles não são utilizados para o bem, não servem para humanizar as pessoas que a cercam, mas apenas para um duelo de egos e de vaidade.

Em meio a esse caos e principalmente em meio aos conflitos existenciais de Horácio, uma tragédia acontece. Esse fato irá separar definitivamente Maga e Oliveira, transformando a vida deste último em uma busca sem fim. O autor aborda de forma contundente as perdas da vida, os erros, os arrependimentos e nos confronta com a verdade nua e crua de que só damos valor às coisas e às pessoas quando as perdemos. Dessa forma ele vai contrapor o leitor, através do jogo da amarelinha, com o nosso desejo de chegar ao céu, atravessando todo o tabuleiro, pulando de um pé só, saltando casas e sempre, quando estamos perto do céu, algum revés nos faz voltar duas casas.

Cortázar utiliza a metáfora do jogo da amarelinha para a vida comum das pessoas. Ele questiona se o céu ou o inferno acontecem aqui na Terra mesmo ou se precisamos morrer para chegar até eles. O autor também nos leva a crer que tanto o céu quanto o inferno podem ser um estado de espírito, uma condição humana de busca por algo que não sabemos exatamente o que é e que nunca vamos descobrir. As discussões que ele propõe através de diálogos e monólogos dos personagens abarca todas essas questões existenciais e filosóficas sobre a humanidade, a ética, a moral e os bons costumes.

Oliveira não quer ter um trabalho formal, cumprir uma jornada de 8 horas em um emprego do qual não gosta, casar-se com alguém por quem não sente afeto ou mesmo admiração, alguém que não vai leva-lo ao céu, como ele deseja. Também não gosta de crianças e não quer ter uma porção de filhos para mostrar à sociedade. Ele quer continuar sendo um bon-vivant, ler os seus preciosos livros, escutar Jazz e tomar mate (de preferência argentino, pois “o mate vendido em Paris é uma porcaria”). Entretanto, a vida não é assim. Temos que encara-la e crescer. E nós bem sabemos que a vida de adulto é complicada, difícil e pouco feliz.

Depois dessa experiência, Cortázar passou a figurar como um dos escritores que quero ler tudo o que já escreveu na vida. Achei esse romance genial, inteligente, bem construído e muito reflexivo. Tenho certeza de que me lembrarei por muitos anos do capítulo 28, onde a tragédia acontece e do capítulo 41, que nos faz caminhar na corda bamba junto com os personagens. Os capítulos prescindíveis apresentam um belo trabalho de metalinguagem, onde o leitor compreende um pouco mais sobre a feitura dessa obra e as intenções do escritor ao elaborar tantas metáforas, tantos diálogos e trazer tantas questões em um único livro. A edição da Cia das Letras está lindíssima, com um corte colorido, remetendo ao Jazz e ao piano. Além da estética, traz também vários textos extras que nos ajudam a inferir mais conhecimentos sobre o escritor e o processo de criação desse livro. O jogo da amarelinha entrou para os favoritos do ano e da vida. É um livro inesquecível, sagaz e inteligente.

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