crítica

O lugar – Annie Ernaux

A maior parte de nós, na posição de filhos, temos nossas diferenças e conflitos com os nossos pais. Quem nunca se flagrou naquele limbo entre admiração e desprezo; amor e ódio; orgulho e vergonha? Esses sentimentos conflitantes e contraditórios fazem parte do nosso crescimento como indivíduos e do nosso desejo de independência e até mesmo de ruptura com aquilo que é prosaico, velho ou obsoleto. Sim, em determinadas fases da vida, vemos os nossos antepassados assim, principalmente no campo das ideias, onde acreditamos que precisa mesmo haver um rompimento e uma mudança significativa que nos leve a um lugar melhor. Toda essa enxurrada sentimental faz parte do livro de memórias de Annie Ernaux, O lugar (Fósforo Editora, 2021), obra dedicada a contar a história de seu pai.

Nascido nos campos da Normandia, no início do século XX, ele, o pai de Annie Ernaux, deixou a escola para se tornar operário, assim como grande parte dos seus contemporâneos. Casou-se, teve filhos e junto à esposa, montou um comércio. Inicialmente, um café e posteriormente, um café/ mercearia. Por menor que fossem esses lugares, tinham para eles o significado da realização de um sonho – deixar de ser operário, deixar para trás uma vida de humilhações, de privações, pobreza e miséria.

Assim como tantas outras famílias que vieram de um lugar miserável ou que enfrentaram a fome, os pais de Annie desejavam para ela uma vida melhor, com oportunidades de crescimento e fartura. Para agravar um pouco mais essa situação de privações, a família enfrentou a Segunda Guerra Mundial, onde perderam o primeiro café e precisaram recomeçar do zero. As descrições da autora sobre esse período funesto são sucintas, mas grandiosas no sentido de nos fazer refletir sobre a situação e até mesmo buscar mais informações para ter um panorama histórico da época.

O que mais gosto nos livros da escritora é a capacidade que ela tem de mesclar os acontecimentos históricos com a vida comum das pessoas que viveram esses momentos. E também a forma como fatos externos e muito maiores que nós refletem no cotidiano, no dia a dia das famílias. A Segunda Guerra assim como a Revolução Industrial contribuíram de forma contundente na personalidade do pai da autora. Ele reage a tudo com o olhar e do lugar de uma pessoa que não teve nada, que teve que desbravar um mundo para conseguir sobreviver. Uma pessoa que passou por humilhações a vida inteira, desde a linguagem até o câncer que o matou.

Aliás, a linguagem nesse livro é algo muito importante. O pai utilizava um dialeto da Normandia, o patuá, em suas falas coloquiais até se mudar definitivamente para Paris e se forçar a utilizar o francês padrão, com o intuito de não ser ridicularizado. Já Annie, se tornou professora de línguas modernas, aprendeu a língua inglesa na escola, conseguiu ter a vida confortável que o pai sonhava para ela, mas, essas conquistas no lugar de os aproximar, criou um abismo entre os dois. É interessante como ela conta que essa distância começou devagar, sem ela mesma perceber o momento exato, mas o fato é que seus pais não se encaixavam mais na sua vida moderna.

Analisando friamente o relato a nossa primeira reação é criticar e julgar Annie. Entretanto, todos nós já sentimos essa distância entre as gerações. É algo muito natural e intrínseco do ser humano. A diferença está em como vamos lidar com isso, como vamos incluir nossos pais em um lugar onde eles não se encaixam. Porém, apesar de todo esse afastamento, a filha consegue enxergar e respeitar a essência desse homem simples, que nos foi apresentado em menos de 70 páginas, mas de forma intensa e profunda. E essa pessoa tão complexa e marcada pela dor, pela perda e pelo sofrimento fica conosco por um bom tempo, porque esse homem comum representa muitos outros que fazem parte da nossa vida, toda uma geração de pessoas, como o meu pai por exemplo.

Algumas situações que a autora coloca nestas memórias, são facilmente transportadas para os nossos dias. Uma delas se refere às fotos de domingo, que a família gostava de tirar e enviar para os parentes, como uma forma de ostentar suas conquistas. Para tanto, seu pai tirava fotos junto aos seus bens: um carro   popular, o seu comércio e a roupas de domingo. Ou até mesmo mostrando algum alimento ou objeto adquirido há pouco tempo. Esse tipo de relato me lembra muito um hábito que cultivamos atualmente: o Instagram ou qualquer outra rede social de fotos. Nós também queremos mostrar nossa bonança e ostentar nossos feitos. Ou seja, os sentimentos humanos são universais e atemporais, eles apenas se atualizam às novas tecnologias.

Outra passagem marcante do livro são os questionamentos da escritora em relação à sociedade de consumo, que contribui muito para o aumento das desigualdades sociais. Em seu livro posterior, Os anos (Três Estrelas, 2019) ela já aborda esse tema de forma contundente e mais questionadora ainda. Mas aqui, em O lugar, ela vai dizer que a sociedade em que vive a obriga desprezar o modo simples de viver de antigamente como se fosse algo de mau gosto. Esta é outra questão que conseguimos tranquilamente transportar para os dias atuais: vivemos sempre trabalhando muito, ganhando pouco para comprar coisas, coisas estas que se tornam obsoletas em pouquíssimo tempo, que nos fazem trabalhar mais para comprar mais coisas e mostrar para os outros nas redes sociais.

Esse looping infinito nada mais é que o estilo de vida do pai de Annie: ele estava sempre preocupado com a opinião dos outros, com o que os vizinhos, amigos, parentes estavam pensando sobre eles. Por isso, guardava o melhor de si para os de fora e acabava por ser ele mesmo dentro de casa, travando com a esposa diálogos duros e acusatórios, exigindo da filha uma devoção às coisas que custam caro demais e se sentindo feliz por ter como se sustentar com dignidade além de ter o luxo de comer carne quatro vezes por semana. Refletindo sobre esse caso, é perceptível que nós continuamos os mesmos, uns mais outros menos, mas ainda assim, somos frutos das grandes revoluções e das grandes guerras.

A edição da Fósforo Editora ficou muito bonita e caprichada. Gostei bastante da escolha em manter o padrão da edição anterior, feita pela extinta Três Estrelas. Espero que venham outros títulos da autora que é tão querida e tem tanto a nos dizer. Para os leitores fãs de memórias assim como eu, fica a forte recomendação tanto de O lugar, quanto de Os anos. Ernaux tem o dom de captar os sentimentos humanos e mescla-los com os fatos históricos mais marcantes de uma época.

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