crítica

O pintassilgo – Donna Tartt

Vencedor do Prêmio Pulitzer de 2014, O pintassilgo (Cia das Letras, 2014) recebeu vários elogios e também muitas críticas, estas, em sua maioria, voltadas às digressões da autora ao longo das mais de 700 páginas do romance. Antes de adentrar em seu enredo e falar sobre as reflexões que ele proporciona, quero salientar que, este é um livro para quem gosta de prolixidade e está acostumado a ler calhamaços. Uma das características dos livros grandes são as partes que podemos chamar de “desnecessárias” e que nos entediam, nos deixam com sono. Isso acontece em grandes clássicos como Dickens, Victor Hugo, Charlote Brontë e em contemporâneos como Auster, King e tantos outros. Mas, ao final dessas leituras, temos sempre muitas questões para pensar e esses personagens nos acompanham por muito tempo de tão reais que se tornam.

Neste romance que mistura um pouco de drama com suspense e mistério, Tartt vai contar a história de Theo Decker, um adolescente de 13 anos que perde a mãe durante um atentado a bomba em um museu de Nova York e vai ter de lidar com o luto ao longo de muitos anos. O tema central aqui é como em um minuto a vida de uma pessoa pode mudar para sempre e principalmente como cada um reage às tragédias e ao inesperado. É como se o leitor fosse convidado a entrar na cabeça de Theo e viver com ele esse luto, caminhar por cada beco escuro que ele percorre, desbravar o deserto de Las Vegas, que pode ser lido como uma metáfora do vazio de sentido da vida do menino e finalmente, encontrar a luz e um motivo para viver que ele tanto buscou.

Logo no primeiro capítulo do livro temos uma descrição minuciosa da explosão no museu, quando a mãe de Theo morre e ele conhece outra personagem central do romance, a jovem Pippa. Incentivado pela emoção do último momento vivido com a mãe ele leva para casa o quadro O pintassilgo, do pintor holandês Carel Fabritius, que se torna o fio condutor da trama. É interessante pensar em como nos apegamos a alguns objetos e a determinadas pessoas após um evento traumático. Pode ser comparado aos nossos objetos favoritos da infância, que nos ajudavam a dormir e a vencer o medo do escuro. É esse significado que o quadro e Pippa ganharão para Theo após a perda da mãe.

Em um primeiro momento, o menino é adotado pelos pais de um amigo rico, o que não dá muito certo, mas ele cria laços com essas pessoas que serão importantes em sua vida ao longo da narrativa. Os sentimentos de Theo ficam cada vez mais confusos e assim ele vai perdendo suas referências de vida e de lugar, como se fosse se afastando da sua personalidade antiga, olhando para si como alguém de fora. Através de Pippa, Theo conhece um homem que vai leva-lo ao submundo da arte e transforma-lo em um grande conhecedor de objetos antigos. Essa relação é muito bonita e ajuda-o a encontrar sentido em meio ao caos. Este será sempre um dos lugares seguros para o protagonista.

Depois de uma temporada vivendo na Park Avenue com a família adotiva, Theo se muda para Las Vegas e reencontra um pai ausente, que ele mal conhece, casado com uma jovem mulher, onde levam uma vida sem lei. Esse é o momento mais crítico do livro porque as cenas são fortes, pesadas, degradantes. É aqui também que entra um personagem controverso, um pouco estereotipado, mas, que leva o leitor a diversas reflexões sobre o abandono, a diáspora e o vazio de sentido da vida de algumas pessoas. Esse personagem é o Boris. Alguém capaz de despertar no leitor os mais diversos sentimentos: desde o ódio, a repulsa, até a compaixão, a vontade de cuidar e de implorar aos pais que tenham mais responsabilidades, que não deixem os seus filhos sozinhos no mundo.

Apesar das cenas de Las Vegas serem as mais polêmicas, onde muitas pessoas abandonam esse livro, elas foram para mim, as mais importantes. É certo que cada leitor fará uma análise diferente desse texto, de acordo com suas vivências, com sua bagagem cultural e seu repertório. E talvez devido às minhas experiências pessoais, eu tenha compreendido o que é o abismo da mente e da vida de Theo nesse período. Me flagrava pensando o tempo todo como ele, um garoto promissor, de quem todos esperavam muito estava enveredando por uma estrada errada, se afundando em drogas e cercado por pessoas quebradas. Imaginava como seria a vida dele se a mãe continuasse viva, se eles não tivessem entrado no museu naquela manhã.

As discussões não param por aí. O núcleo de personagens de Las Vegas é rico em problemas da vida, em não saber enfrentar as adversidades, em fugir da realidade através das drogas, álcool, remédios para dormir, sexo e contravenções. O leitor é presenteado em meio a esse percurso lastimável que Theo está enfrentando com citações de Dostoievski, feitas pelo Boris, que lê os clássicos no idioma original, como uma forma de honrar suas raízes e saber a que lugar pertence. Ele é um sobrevivente da diáspora em uma terra estranha e hostil. A madrasta de Theo também é um exemplo de alguém tentando sobreviver. Ela se submete a situações inenarráveis para abrir os olhos todos os dias e isso nos faz pensar em quantas Xandras estão por aí, com suas vidas destruídas muitas vezes por nada, o que mostra a crueldade das sociedades que criamos.

O pintassilgo é um livro que fala sobre a vida, sobre as pessoas, sobre luto, obsessão, sobrevivência. Fala também sobre a dor, a superação e os encontros casuais que muitas vezes se tornam reviravoltas no cotidiano. É um romance cheio de referências artísticas, literárias e metáforas sofridas, porém belas e que nos levam à reflexão. O destino de Theo teria sido outro, caso a explosão não acontecesse. Mas, no final, ele consegue superar os traumas e viver com dignidade. Claro que carregando consigo uma bagagem pesada demais, que muitas vezes, quase o derruba novamente. Porém, ele segue lutando em nome de todas as vidas ceifadas pela dor, pelo ódio e pelas drogas.

Donna Tartt criou nessa narrativa personagens complexos, cheios de camadas e verossímeis. Aproximando-se um pouco do mistério e do suspense – característica presente em suas obras anteriores – ela desenvolveu um romance de formação inspirado nos grandes romances do século XIX. Para os leitores que não se animarem devido ao número de páginas e digressões, em 2019 saiu uma adaptação do livro para o cinema, que está disponível na HBO. Recomendo muito também o filme, que apresentou as partes mais importantes da história de forma menos sombria. Mas, ainda assim, prefiro o livro. Alguns críticos chamam O pintassilgo de clássico instantâneo, outros de exagerado e perdido e eu, chamo apenas de um livro que faz pensar e muito.

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