literatura

O problema da polifonia nas narrativas

Você certamente já ouviu falar sobre as vozes narrativas em um texto, as vozes do discurso, os tipos de narrativas e de narradores e também sobre polifonia, discurso indireto livre e fluxo de consciência. Sim, estudamos todos esses conceitos para o vestibular e também no final do ensino fundamental, mas o fato é que, quem não trabalha com a linguagem, esquece mesmo as diferenças entre cada um deles e assim, muitos textos considerados polifônicos passam batidos com a mesma voz. Vou explicar: o objetivo da polifonia é diferenciar as vozes do discurso, individualizando cada personagem, dando a ele características próprias em sua fala, mostrando a sua origem, os seus pensamentos e posicionamentos diante da vida. Portanto, para utilizar esse recurso, o escritor em questão deve se esmerar em pesquisas e estudos linguísticos para dar o tom certo aos seus personagens, mantendo a verossimilhança do seu texto.

Esse recurso linguístico não precisa ser utilizado na literatura e nas narrativas para o desenvolvimento dos personagens. Antigamente, antes do movimento modernista, a polifonia não era muito recorrente nas obras literárias. Charles Dickens, Charlote Brontë, Jane Austen e tantos outros escritores do século XIX não utilizavam a polifonia e nem mesmo o discurso indireto livre em seus textos. Os personagens eram desenvolvidos por um narrador onisciente em terceira pessoa e os diálogos eram feitos através do discurso direto, ou seja, tinha um travessão e a fala do personagem. O desenvolvimento do enredo, da ambientação e das idiossincrasias dos personagens ficavam a cargo do narrador e esse sistema de narrativa funciona muito bem ainda nos dias atuais. Não tem erro nessa estrutura textual: basta que o autor consiga desenvolver uma boa história e diálogos interessantes para manter a atenção do leitor.

Outra forma de desenvolver personagens sem o uso da polifonia é a instância narrativa em primeira pessoa. Neste caso, teremos sempre um narrador não confiável, pois ele vai dar a sua versão dos fatos e os outros personagens não terão o seu direito de resposta, digamos assim. Consideramos o narrador em primeira pessoa não confiável porque quando nós contamos a alguém uma história ou algum fato cotidiano, usamos a nossa fala e o nosso posicionamento de mundo para contar algo às pessoas. Pode ser que um outro indivíduo, que também presenciou ou vivenciou o mesmo fato que nós, veja a história de uma outra forma. Para exemplificar, temos o icônico Dom Casmurro, onde na cabeça de Bentinho, Capitu o traiu com o seu melhor amigo Escobar. O leitor nunca vai saber ao certo se ela traiu ou não. Neste tipo de narrativa, entram as memórias e as autobiografias, provocando sempre uma grande polêmica. Um forte exemplo contemporâneo de memórias provocativas e incômodas é a série Minha Luta do escritor norueguês Karl Ove Ksnaugard, que está sendo processado por sua família que não concorda com a versão dele dos fatos que os envolve.

Proust talvez seja o pai desse estilo de narrativa em primeira pessoa, com direito a divagações, fluxo de consciência e uso e abuso do discurso indireto livre. Além de prolixo ao extremo, é impossível uma pessoa guardar em sua mente diálogos tão longos e tão cheios de camadas e opiniões como o jovem Marcel em seu Em busca do tempo perdido. O discurso indireto livre é utilizado quando existe um narrador onisciente ou um narrador personagem, como no caso de Proust e, sem aviso prévio, ele acessa os pensamentos de outros personagens e os insere na sua narrativa. Virgínia Woolf utilizava muito esse recurso em seus livros, assim como James Joyce. Porém é um estilo diferente daquele utilizado por escritores pós-modernos, principalmente aqueles que escrevem suspense e mistério, como Stephen King, que faz um trabalho de escrita brilhante com narradores oniscientes em terceira pessoa, associado ao discurso indireto livre.

A diferença principal entre os modernistas como Proust, Virgínia Woolf, Joyce e os pós-modernos como King, é que os primeiros escreviam romances experimentais com fluxo de consciência – quando o leitor entra dentro da cabeça dos personagens e acompanha os seus pensamentos, com a confusão que eles são. É como se fosse uma reprodução escrita das nossas divagações constantes. Ou seja, agora estou pensando neste texto que estou escrevendo. Mas, de repente, posso lembrar que tenho uma reunião na escola da minha filha daqui a uma hora e que preciso me organizar para sair. Esses saltos que a nossa mente dá de um pensamento ao outro foram reproduzidos na literatura por escritores modernistas que utilizavam a experimentação e o fluxo de consciência. Esse recurso narrativo ainda é muito presente na literatura pós-moderna, porém, precisa ser muito bem feito para funcionar. Caso contrário, o livro não será compreendido pelo leitor.

Já no caso dos livros de suspense e mistério, que utilizam o recurso do narrador onisciente em terceira pessoa mais o discurso indireto livre, os saltos de um pensamento para outro não são reproduzidos. Porém, o narrador, em determinado momento passa a falar em primeira pessoa, acessando os pensamentos do personagem para compor o seu desenvolvimento. Após aquela divagação, que mostra os sentimentos do personagem e um pouco mais da sua construção e da sua essência, a instância narrativa volta para a terceira pessoa e segue o enredo do livro. Esse estilo de escrita não é tão complicado quanto parece. Na verdade, a maioria dos livros contemporâneos que lemos são escritos assim. É um recurso tão potente e que funciona tão bem, que o leitor nem percebe que está sendo feito. Geralmente são textos fluidos e facilmente compreendidos.

Mas, e a polifonia? Onde ela entra? A polifonia é um recurso narrativo, que segundo Bakhtin foi criado por Dostoiévski no século XIX e reproduzido muitas vezes ao longo do século XX. No livro Noites Brancas, temos duas vozes narrativas bem diferentes uma da outra, as duas em primeira pessoa. O primeiro narrador, O sonhador, tem uma narrativa melancólica, triste e parece vir de uma mente perturbada. As frases são frenéticas, ele não elabora muito as suas falas, tornando-as confusas. Já Nástienka, segunda narradora, tem uma voz calma, ela narra a sua história de forma tranquila, triste, mas organizada, pausada, sendo mais fácil ao leitor compreendê-la. Isso é a polifonia perfeita.

Dostoiévski explorou esse estilo narrativo na maioria de suas obras. Em Os irmãos Karamázov, temos uma voz distinta para cada personagem e é impressionante como o leitor reconhece cada um deles sem que o narrador onisciente nos diga quem está falando o que. Por outro lado, quando um texto polifônico não diferencia as vozes do discurso, o autor geralmente utiliza um recurso de identificar o narrador em primeira pessoa. Na literatura pós-moderna temos inúmeros exemplos desse tipo de texto e de obras muito aclamadas e famosas. Em Herdeiras do mar, um livro que foi muito comentado no ano de seu lançamento, encontramos esse recurso polifônico mal elaborado. A história é narrada por duas irmãs, Hanna e Emi, com capítulos intercalados, que são identificados no título de cada um. É um belo enredo, com uma trama extremamente triste e necessária, porém, estilisticamente falando, é um livro mal escrito.

O mesmo acontece com Torto Arado do brasileiro Itamar Vieira Jr. As protagonistas Bibiana e Belonisa narram em primeira pessoa suas histórias, também extremamente necessárias e intensas, porém com a mesma voz. O autor justifica sua escolha alegando que o povo quilombola tem a mesma voz. Entretanto, há controversas. Se analisarmos as pessoas que convivem conosco, no mesmo bairro e até na mesma casa, suas falas e expressões idiomáticas são diferentes. No caso de Torto Arado ainda temos um outro ponto a favor do seu texto: uma das irmãs tem a língua decepada logo no início do primeiro capítulo. Então, sua irmã passou a ser a sua voz. E neste caso, a falta de individualidade dos personagens no texto pode ser justificada.

Existe ainda uma forma mais complexa de polifonia, que seria mais ou menos o que faz Dostoiévski – a forma mais difícil de acertar – que é quando o autor não identifica o narrador em primeira pessoa e ele começa a narrar, mas de repente, a narrativa volta para uma instância em terceira pessoa, confundindo assim o leitor. Quando mal elaborado, temos uma mistura de fluxo de consciência, através do discurso indireto livre com uma narrativa em terceira pessoa, com foco na opinião de um determinado personagem, porém, todos os personagens têm a mesma voz. Certamente todos já lemos livros com essas características. Vou citar alguns como exemplo. Pátria, um dos meus livros favoritos da vida, apresenta esse problema estético. O capítulo começa com um narrador em primeira pessoa, que não identificamos de cara e de repente, a narrativa passa a ser feita em terceira pessoa, sob o ponto de vista desse personagem. Esse tipo de narrativa é muito cansativa e faz muitos leitores desistirem do livro. Quando li Pátria, em uma leitura coletiva, muitas pessoas do grupo abandonaram a leitura por causa dessa narrativa truncada e complexa. Apesar dos problemas estéticos, o livro tem uma história impressionante e muito impactante.

O mesmo acontece com A república dos sonhos da Nélida Piñon. A princípio, esse problema não incomoda tanto, mas, à medida em que vamos avançando na narrativa, o texto torna-se muito enfadonho. As frases são truncadas, as vozes são iguais, não há um fluxo de consciência, mas um narrador em primeira pessoa, que de repente passa a se referir a si mesmo em terceira pessoa, deixando a fluência da leitura muito comprometida. Nélida foi uma escritora brasileira e, pensando nesse aspecto de sua escrita, observo que muitos alunos do ensino fundamental e médio encontram dificuldades em ler os nossos clássicos por causa desse rebuscamento das narrativas. O mesmo acontece com a literatura clássica de Portugal. Quando lemos Eça de Queiroz ou Camilo Castelo Branco, observamos essas idiossincrasias linguísticas que deixam o texto truncado e difícil de ler. Já Machado de Assis, por exemplo, escrevia de uma forma mais clara, com frases objetivas e utilizando-se de narradores em terceira ou em primeira pessoa, o que facilita bastante a compreensão de seus livros. Claro que o vocabulário deles é do século XIX, porém, a questão estilística faz toda a diferença na hora da leitura.

Mas, para não dizer que não falei das flores, vamos aos livros polifônicos perfeitos, que utilizam esse recurso com maestria. Além de Dostoiévski, que utiliza a polifonia de forma brilhante em todos os seus livros, também podemos destacar A caixa preta do escritor israelense Amós Oz. Neste romance epistolar, temos várias vozes trocando cartas e bilhetes ou fazendo ligações uns para os outros e, é facilmente perceptível quando um adolescente de 17 anos está escrevendo, ou quando um homem mais ignorante está se expressando. As vozes das mulheres também têm a sua marca de oralidade, assim como a do professor universitário. Domenico Starnone, escritor italiano, também diferencia de forma magnífica as vozes dos personagens em seu livro Laços. Não é necessário que o autor nos indique a mudança de narrador, pois, sua voz já nos mostra isso. Neste livro, temos uma história sobre o divórcio conturbado de um casal, onde o marido, a esposa e a filha contam as suas versões dessa briga. Alice Walker em A cor púrpura, também um romance epistolar, diferencia as vozes do discurso de forma espetacular, destacando as marcas da oralidade nas falas (cartas) de sua protagonista Celie e apontando a erudição de sua irmã Netie.

A cereja do bolo fica por conta de Willian Faulkner. A partir do momento que lemos qualquer livro do autor, mas principalmente O som e a fúria, compreendemos perfeitamente o que é polifonia e fluxo de consciência. O autor não precisa dizer que a instância narrativa foi mudada. É notório. A fala de cada personagem tem a sua marca, as suas características próprias e são únicas. Ler Faulkner é difícil e complexo, mas acho que o único escritor que se compara aqui é João Guimarães Rosa com o seu perfeito Grande serão: veredas. Rosa utiliza a oralidade de forma diferente de Faulkner, porém, ele consegue escrever um livro de mais de 500 páginas em um fluxo de consciência cheio de expressões orais próprias de uma região brasileira, contando um causo para um ouvinte e que prende o leitor do começo ao fim. É mesmo a reprodução de uma conversa. Assim como faz o escritor norte-americano em Absalão, Absalão! Há uma conversa, onde o narrador conta a história de alguém para um ouvinte, que seria no caso, o leitor. São maravilhosos! E depois de lê-los, fica complicado aceitar algo menor que isso.

Para que a polifonia funcione e cumpra a sua missão na literatura, que é individualizar cada personagem, dando a eles camadas, aumentando a sua complexidade, marcando as suas origens, sotaques e expressões idiomáticas, o escritor precisa se esmerar na linguagem para não cometer falhas que podem prejudicar a sua obra. Pode parecer que não, mas mesmo o leitor que não observa essas questões linguísticas e estéticas, se incomoda com um texto truncado ou mal escrito. Às vezes, vejo alguns produtores de conteúdo digital dizendo a seguinte frase “a escrita de fulano de tal é uma delícia”. Eu, particularmente, não gosto dessa expressão e, portanto, não a uso. Porém, o que essa pessoa quer dizer, é que o livro é bem escrito e que a fluência de leitura é muito boa, que o texto se desenvolve de forma natural e que assim, o leitor não sente vontade de parar de ler. Diferentemente de quando estamos lendo um livro mais denso, mais complexo e cheio de falhas estéticas, que a todo momento nos distraímos e perdemos o fio da meada, fazendo assim, com que a leitura não flua. Dessa forma, é notório que todos nós, sendo ou não da área das linguagens, sabemos diferenciar uma boa história de uma mais ou menos e de uma boa escrita e outra nem tão boa assim. O melhor de tudo é compreender um pouco mais sobre as nossas opiniões literárias e falar sobre elas com mais propriedade.

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