crítica

O processo – Franz Kafka

Para tentar desvendar o mundo Kafkiano, é preciso entender um pouco do contexto em que o autor viveu, como uma forma de interpretação da sua obra. Franz Kafka nasceu no período do Império Austro-Húngaro, em 1883, na cidade de Praga, atual República Tcheca. Filho de judeus, escapou por pouco dos campos de concentração nazistas, pois faleceu aos 41 anos, vítima de tuberculose, no ano de 1924. Deixou um grande legado em obras, que foram publicadas em sua maioria postumamente por seu melhor amigo e editor Max Brod.

O período em que Kafka viveu foi marcado por uma grande instabilidade política, advinda dos conflitos existentes no Império Austro-Húngaro, que incluíam a busca constante desses povos por uma identidade nacional de cada país que compunha esse império. Durante a Primeira Guerra Mundial, com o assassinato da rainha, chega ao fim a união dos países que formavam o Império Austro-Húngaro e inicia-se uma nova jornada, marcada por diversas mudanças pós revolução industrial na Alemanha, que impacta a vida de todos os cidadãos do leste europeu e seu estilo de vida.

Além dessas questões políticas, sociais e econômicas, existiam muitas correntes novas de pensamentos que impactavam diretamente as artes, tais como o existencialismo, o fim da religião, a psicanálise e o darwinismo. Todas essas linhas de pensamento são muito importantes para a compreensão e a interpretação de O processo (Cia das Letras, 2020). O darwinismo em especial, abre uma chave de leitura para essa obra, no sentido da linguagem processual, direta, ríspida, crua e impessoal. Ou seja, há uma cadeia alimentar, onde o mais forte se sobrepõe ao mais fraco e aqueles que estão em uma posição inferior nessa cadeia, sempre perderão para os mais fortes. Ao longo do romance, percebemos essa questão das esferas de poder e da sobreposição dos mais fortes o tempo todo.

Mas afinal, do que se trata O processo? Essa é uma obra em que acompanhamos o Sr. Josef K. em sua saga eterna para compreender a sua prisão arbitrária que acontece no primeiro parágrafo do romance.

Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum” (KAFKA, 2020, pg. 9)

Logo de cara já ficamos cientes de que se trata de um processo público, pois, enquanto os guardas o prendiam, havia uma multidão do lado de fora acompanhando tudo. A partir de então, nós leitores e Josef K. vamos tentar entender o que está acontecendo, qual a acusação que pesa sobre o protagonista e como ele vai sair dessa situação insólita.

Além do desconforto de ser preso ao acordar, na frente de todo mundo, o Sr. K. não é informado sobre as motivações dessa prisão, o que nos remete a muitos fatos que ocorreram anos depois da escrita desse romance, tais como a perseguição aos judeus na Alemanha ou às cenas humilhantes de degradantes das ditaduras na América Latina. Poderíamos dizer que Kafka previu o futuro? Talvez. Mas, de acordo com o historiador Laurence Ress (O holocausto, 2017), a perseguição aos judeus e o antissemitismo já aconteciam antes mesmo de Hitler chegar ao poder. Pessoas muitas vezes eram presas apenas por serem judias.

Outro ponto que não podemos deixar de fora nesse romance são as mulheres de Kafka. Elas são sempre descritas como corpos, pessoas libidinosas, que estão sempre ou provocando os homens ou apenas servindo a eles de forma sexual ou como empregadas. Em O processo, são quatro personagens femininas e todas elas são retratadas como loucas, perdidas ou talvez misteriosas e até mesmo ardilosas demais. É uma retratação estranha e incômoda para o leitor do século XXI. E dialoga muito com uma das linhas interpretativas do romance, que seria uma alegoria do relacionamento de Kafka com Felice Bauer, moça da qual ele foi noivo por duas vezes e, coincidentemente, O processo foi escrito na época de seu último término com ela.

As pessoas mais próximas ao escritor identificaram muitos aspectos no texto de O processo com o relacionamento frustrado que ele teve com Felice. Neste caso, o tribunal inalcançável seria a própria noiva e o processo, suas tentativas de conquista-la e compreendê-la. Faz até um certo sentido, porém, este romance rompe as barreiras afetivas e se aproxima de nós como algo muito realista devido à quantidade de burocracia e de mecanização de tarefas contidas aqui. Além disso, o autor descreve cenas muito cotidianas, que fazem com que acreditemos nesse realismo da obra.

Há uma construção de um ambiente cotidiano, próximo do leitor. As descrições de cenas do dia a dia como uma de um grupo de meninas passando na rua, limpando as mãos no avental, rindo e conversando umas com as outras, nos lembra bastante as cenas urbanas, pessoas reais e verossímeis. Por outro lado, há também uma ambientação onírica, que se mescla com o realismo, deixando esse romance em uma zona nebulosa, confusa e ao mesmo tempo questionadora: poderia ser tudo isso um sonho do Sr. K?

Esse contexto onírico dialoga com os temas da psicanálise e abre mais uma chave de leitura para O processo. É comum ao longo da prosa nos depararmos com cenas insólitas, que nos remetem à pesadelos, tais como o Sr. K. abrir uma porta e se deparar com um episódio de tortura em seu local de trabalho ou a invasão dos agentes ao quarto da colega do Sr. K. no dia de sua prisão e por fim as repartições públicas que estão instaladas nas casas das pessoas, misturando o público e o privado.

Além disso, os ambientes descritos no romance são em sua maioria compostos por muitas escadas, corredores escuros, salas abafadas, locais que remetem às esferas de poder, com púlpitos, desníveis de andares e uma constante sensação de sufoco, de desordem e de confusão. Os ambientes externos também refletem essa áurea noir: tempo chuvoso, nublado, com névoas, representando assim o estado de espírito do Sr. K., que vive intensamente as consequências de uma possível calúnia, já que, de acordo com o narrador, ele é inocente.

Outra possibilidade de leitura é a questão do processo jurídico que não é jurídico. Há um tribunal maior ao qual ninguém tem acesso e que desestrutura a existência do nosso protagonista. Neste aspecto, o romance se aproxima mais uma vez do leitor e da realidade, mostrando a mecanização das ações e consequentemente a desumanização do processo como um todo. Dessa forma, chegamos ao conceito de banalidade do mal, observado pela filósofa Hanna Arendt:

“(…) devido à massificação da sociedade, criou-se uma multidão incapaz de fazer julgamentos morais, razão que explica porque aceitam e cumprem ordens sem questionar (…) O mal torna-se assim banal. A banalidade do mal é a mediocridade de não pensar” (Brasil Paralelo, “Entenda o conceito de banalidade do mal em Hanna Arendt”, acessado em 27 de abril de 2022)

Assim, conectamos também a obra ao conceito freudiano do “homem ser o lobo do homem”, ou seja, havendo uma possibilidade de ascensão, ou de progresso, ou mesmo de se salvar ou se libertar de uma situação desconfortável, mesmo que isso custe a dor do outro, o ser humano é capaz de agir a seu favor e contra o seu semelhante, como em uma cadeia alimentar, pensando apenas em si mesmo. Esses conceitos estão bastante evidenciados na obra de Kafka.

Essa banalidade do mal é apresentada através do espancador, o algoz que não pensa, não questiona, apenas age, destruindo a dignidade de seus colegas que estavam sendo punidos apenas porque o Sr. K. reclamou no tribunal que eles haviam comido o seu café da manhã e tomado posse de suas roupas de baixo no momento de sua prisão. Na sequência dessa ação, descobrimos que esse é um procedimento padrão dos agentes, fora das regras, claro, mas que nunca haviam sido questionadas por nenhum detido e assim continuavam fazendo aquilo como se fosse a praxe. Como podemos observar, esses motivos são muito pequenos e certamente banais para uma sessão de tortura, de espancamento dos agentes. O Sr. K., sentindo-se culpado e mal por aquela situação, tenta retirar as acusações ou até mesmo subornar os espancadores, mas não dá certo, é a regra.

O capítulo mais emblemático do romance é A catedral, onde o Sr. K. tem um diálogo muito filosófico com um sacerdote, representando o plano transcendental. É como se neste momento ele estivesse diante da lei e pudesse entender o que ele estava vivendo, sendo esta uma alegoria da lei, ou da própria vida, com suas idiossincrasias que não somos capazes de transcender. Há um paralelo entre este capítulo com a obra Diante da lei, que mostra um camponês em frente a uma porta, guardada por um porteiro onde ele deseja entrar, mas é proibido pelo guardião. O camponês espera que alguém faça algo por ele até ficar moribundo. A pergunta do camponês é porque eu anseio entrar na lei e ninguém mais apareceu para fazer o mesmo? A resposta é paradoxal, tanto insólita, quanto óbvia: porque essa porta é sua. Só você pode entrar por ela, você não entrou, então eu a fecho e vou embora. Esse é o cerne da discussão entre o Sr. K. e o sacerdote: quem está certo? Como transcender ao plano maior?

Chegamos a uma conclusão de que o Sr. K., assim como o homem em geral, está insatisfeito com o imanente, mas não consegue atingir o transcendente. Assim como o Tenente Giovanni Drogo em O deserto dos tártaros, que está insatisfeito com a sua vida e com a inércia do seu posto, mas não tem coragem de ir embora, permanece ali até ser tarde demais. Essas alegorias da vida, que se remetem à nossa zona de conforto são muito ricas em debates filosóficos, porque a própria obra nos obriga a olhar para essas situações sob uma nova perspectiva e assim nos faz buscar respostas para elas e talvez uma possível solução. Um dos trechos mais interessantes do romance, estava riscado pelo autor e talvez, nunca tivesse sido publicado, que é onde ele fala sobre as repetições do dia a dia e de como estamos sempre dormindo quando algo importante acontece:

Alguém disse – não posso mais me lembrar quem foi – que é maravilhoso o fato de que, quando se acorda de manhã cedo, ao menos em geral, encontra-se tudo no mesmo lugar que na noite anterior. No sono e no sonho, ao menos na aparência, a pessoa se acha num estado essencialmente diferente da vigília, e como aquele homem disse, com muita razão, é necessária uma infinita presença de espírito, ou melhor: presteza para, ao abrir os olhos, apreender tudo o que está ali, de certo modo, no mesmo lugar em que foi deixado ao anoitecer. Por isso, o instante do despertar é também o instante mais arriscado do dia; uma vez superado, sem que a pessoa tenha sido deslocada do seu lugar para algum outro, ela pode então passar tranquila o dia inteiro”. (KAFKA, 2020, pg. 307/308).

Kafka certamente sabia o que estava dizendo nesse texto denso e reflexivo. Ele cursou a Faculdade de Direito devido à sua condição judia, acreditando que a profissão lhe garantiria uma posição social e até mesmo uma certa anistia, ou proteção contra o antissemitismo. Depois de trabalhar como advogado por um tempo, passou em um concurso público e foi trabalhar em uma repartição, onde vivia constantemente a burocracia e seus efeitos. Talvez por ter essa familiaridade com as instituições públicas, o escritor conseguiu passar tão bem os ambientes e a sensação de impotência do homem comum diante dessas esferas de poder que nada resolvem.

Nas horas vagas, Kafka se dedicava à escrita. Seu grande sonho era mesmo ser um escritor, mas seus pais não viam esta como uma profissão honrada, apenas como um passatempo ou um hobbie. Ainda assim não desistiu de escrever. Mesmo que para conseguir, precisasse passar muitas noites em claro. Porém, via os seus escritos como desabafos, o que pode explicar a inconclusão de tantos deles, como é o caso de O processo. Dessa forma, temos um romance inacabado, mas com um final chocante e que nos faz pensar muito. Além disso, vemos bastante do escritor em sua obra e também um diálogo entre todos os outros textos do autor. Ler Kafka, nas palavras da psicanalista Noemi Moritz Kon, representa:

“(…) uma opção consciente pela aliança com o eterno Eros, unindo-nos também a Marx e Freud, para enfim estabelecer um verdadeiro pacto civilizatório, um pacto que não seja nem excessivamente repressivo, nem desigual, que não seja montado sobre a égide da exclusão e da escravização de tantos e tantos por apenas alguns; um pacto que não desdenhe e explore os outros seres vivos e as forças naturais de nosso planeta, e que seja capaz de trazer o equilíbrio e a colaboração entre as pulsões de vida e as de morte, entre o prazer e a renúncia necessária para alcançarmos, enfim, a satisfação coletiva possível”.

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2 thoughts on “O processo – Franz Kafka”

  1. Que resenha brilhante, Angelina! Os paralelos a Freud, Hanna Arendt, ao “Deserto dos Tártaros” foram geniais! Falando em Arendt, eu acredito que ela (se viva) definiria nosso atual momento brasileiro como um perfeito exemplo de banalização do mal, infelizmente…

    1. Tatiane, obrigada! E ainda ficaram de fora muitas outras correlações que eu poderia fazer com esse livraço do Kafka! Rsrs. Mas, a resenha ficaria mais gigante ainda!
      Também acho que a Hanna Arendt definiria nosso Brasil assim, neste momento tão hostil que vivemos. É triste pensar que a educação segue em ladeira abaixo e que as pessoas estão cada vez menos se importando com o coletivo e pensando de forma individual e narcisista. Minhas últimas leituras me fizeram pensar muito sobre isso e fico imaginando o que podemos fazer para contribuir de forma ativa para um mundo melhor e desconstruir essa maldade intrínseca que vem ganhando força com os discursos de ódio espalhados por aqui… Mas, vamos juntas, uma hora encontraremos o caminho!

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